"La dificultad no debe ser un motivo para desistir sino un estímulo para continuar"

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A volta do parafuso - Henry James - Livro em portugués

A VOLTA DO PARAFUSO Henry James PREFÁCIO CAPÍTULO I CAPÍTULO 2 CAPÍTULO 3 CAPÍTULO 4 CAPÍTULO 5 CAPÍTULO 6 CAPÍTULO 7 CAPÍTULO 8 CAPÍTULO 9 CAPÍTULO 10 CAPÍTULO 11 CAPÍTULO 12 CAPÍTULO 13 CAPÍTULO 14 CAPÍTULO 15 CAPÍTULO 16 CAPÍTULO 17 CAPÍTULO 18 CAPÍTULO 19 CAPÍTULO 20 CAPÍTULO 21 CAPÍTULO 22 CAPÍTULO 23 CAPÍTULO 24 HENRY JAMES HENRY JAMES A VOLTA DO PARAFUSO Título original: THE TURN OF THE SCREW EDITORA LANDMARK 2012 COPYRIGHT 2004-2012 BY EDITORA LANDMARK LTDA. PRIMEIRA EDIÇÃO: THE TURN OF THE SCREW : WILLIAM HEINEMANN PUBLISHING COMPANY, LONDRES: 13 DE OUTUBRO DE 1898 PUBLICADO INICIALMENTE EM SÉRIE: THE TURN OF THE SCREW: COLLIER’S WEEKLY: AN ILLUSTRATED JOURNAL EM 1898 DIRETOR EDITORIAL: FABIO CYRINO DIAGRAMAÇÃO E CAPA: ARQUÉTIPO DESIGN+COMUNICAÇÃO TRADUÇÃO E NOTAS: FRANCISCO CARLOS LOPES REVISÃO: FRANCISCO DE FREITAS DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) (CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO, CBL, SÃO PAULO, BRASIL ) JAMES, HENRY (1843-1916) A VOLTA DO PARAFUSO - THE TURN OF THE SCREW / HENRY JAMES; {TRADUÇÃO, INTRODUÇÃO E NOTAS FRANCISCO CARLOS LOPES} - - SÃO PAULO: EDITORA LANDMARK, 2004. A Volta do Parafuso – The Turn of the Screw – de Henry James, foi primeiramente publicado em formato de folhetim, em edições do jornal Collier’s Weekly, em 1898. Enquadra- se bem no gênero novela, em que Henry James foi particularmente bem-sucedido, constituindo um paradigma desse formato “curto demais para ser um romance e longo demais para ser um conto”. Fez enorme sucesso e tornou-se um dos trabalhos mais populares do autor, mas, provocou polêmica, porque nunca ficou claro se a preceptora, que narra a história de um casal de crianças possuído pelos espíritos de um criado de quarto e uma antecessora de sua função num casarão antigo em Bly, interior da Inglaterra, viu os espíritos de fato ou os fantasiou. Pelo viés da análise freudiana da reprimida sexualidade da era vitoriana, a preceptora, cheia de romantismo exaltado e sem experiência sexual alguma, podia ser vista como narradora altamente “suspeita”. Com sua carga de sugestividade e seu poder de causar calafrios, no entanto, A Volta do Parafuso tornou-se um modelo de narrativa de terror psicológico e foi adaptada para o cinema em 1961, pelo diretor inglês Jack Clayton, com roteiro de William Archibald e Truman Capote. O filme foi denominado Os Inocentes e é considerado um dos mais belos exercícios de terror psicológico já feitos no cinema, além de constituir um vigoroso exemplo de adaptação cinematográfica bem-sucedida de uma obra-prima literária. “SINISTRA E PEÇONHENTA” Fazer sinopse da história contada por um clássico muitíssimo conhecido é tolo, mas é preciso levar em conta o pouco que se lê no Brasil e que há muita gente nova para quem essa novela, embora muito citada, pode ser solenemente desconhecida. Eis a situação: uma mulher jovem, solteira, filha de um pároco de um vicariato rural, vai a Londres atender a um anúncio em que se oferece emprego para uma preceptora. O tio de um casal de crianças órfãs, solteiro, bonitão e mundano, precisa de uma moça para cuidar dos pequenos, que são, para ele, um grande incômodo. O que ele exige? Que a moça que se dispuser ao trabalho vá para uma propriedade, Bly, no interior da Inglaterra, e fique lá, cuidando das crianças, sem aborrecê-lo de modo algum com os problemas, podendo – na verdade, devendo – resolver tudo sem que a vida brilhante dele em Londres seja perturbada. É uma exigência absurda e egoísta, mas ele é encantador, percebe que ela é suscetível a esse encanto e um contrato obviamente chantagista é feito. Ela rumará para a propriedade, fará amizade com uma servidora rude e confiável, descobrirá que as crianças são excepcionalmente inteligentes e belas. Até que certas verdades, nada agradáveis, começarão a aparecer. Isso ajuda e é pouquíssimo. Em Henry James, a trama pode ser pequena ou nenhuma, visto que o decisivo é a maneira pela qual é narrada. E, nesse caso, estamos diante de umaarapuca finamente armada: a narrativa, decididamente, é suspeita. No preâmbulo, estamos em uma sala vitoriana em que uma história de fantasmas foi contada e um seu ouvinte promete ao grupo atento que tem uma muito mais terrível para narrar, excitando a todos. As suspeitas podem começar já aí, visto que esse narrador – que faz da coisa um teatro bem calculado – aparece sob as luzes duvidosas da manipulação e está envolvido pessoalmente com a coisa. É mais indireto: a história aconteceu com uma mulher que foi governanta de sua irmã e que ele conheceu quando pequeno. Na verdade, apaixonou-se por ela. E ela – naturalmente, a jovem que pegou a vaga de preceptora a que nos referimos – lhe deixou o manuscrito em que conta tudo. É preciso acreditar na fidelidade desse manuscrito. Mas, pode-se duvidar à vontade, na medida em que se vai conhecendo a narrativa da preceptora. Tem-se a impressão de um mecanismo de sedução que gira em muitas direções – tudo é extremamente ambíguo, tudo está implicado em alguma outra coisa e a narrativa tem que ser já vista como algo que nasce sob o signo da arbitrariedade – dos personagens e do autor. Essa preceptora é um dos personagens mais ambíguos de um escritor pródigo em ambiguidades. Deitou-se tinta a fartar sobre seu caráter duvidoso e sobre sua condição de virgem vitoriana cheia de imaginação e frustração sexual em doses idênticas. Incumbida do casalzinho de órfãos, ela descobrirá que há, por trás deles, duas figuras que moraram em Bly e de cuja existência já não se fala mais: Peter Quint, o criado de quarto do tio, que a contratara, e a senhorita Jessel, a preceptora anterior das crianças. Os dois estão mortos. A descoberta é pavorosa, mas, muito à maneira ambígua (e, como tradutor, garanto que sentia uma espécie de sorrisinho de James pairando nessas construções irônicas), é feita quando, numa tarde, devaneando romanticamente, ela imagina que seria emocionante encontrar-se com a bela figura do tio que a impressionara nas cercanias da casa. Sua fantasia se concretiza, e ela encontra um homem desconhecido. Não era, naturalmente, o seu contratante. Era um espectro, o que ela não sabe. Mas a motivação romântica, mesmo através do horror que sentirá quando a verdade lhe for revelada pela servidora, permanecerá – o homem era bonito. Vestia roupas que visivelmente não eram dele. “São do patrão”, dirá, acabrunhada, a criada que bem o conheceu. Ela o julgou, a princípio, um intruso intolerável – na verdade, era alguém da casa. E assim começará a desesperadora tentativa de proteger as crianças de verem o fantasma – mais tarde, fantasmas – até que outra descoberta, mais aterradora, se imporá: as crianças sabem e, na verdade, escondem que sabem, encontrando-se com os espectros furtivamente. É caso para enlouquecer, e não é de todo implausível que o manuscrito tenha sido engendrado por uma mulher louca. O que é imaginado, o que é verdadeiro, nessa história? O público se dividiu enormemente com essa questão. A Volta do Parafuso teve grande repercussão, foi acolhido com admiração e polêmica, desde o início. Oscar Wilde, ninguém menos que ele, disse que era “uma pequena história maravilhosa, sinistra e peçonhenta”. É uma história poderosamente sugestiva e que pode ir sendo descascada, camada por camada, sem que um miolo unívoco seja atingido. Wilde deve ter levado bem em conta as amplas possibilidades de perversão sexual que contém. Peter Quint, monstro, é um homemdesejado. Mantinha um caso com a preceptora anterior – caso no mínimo escandaloso (do ponto de vista dos criados, que nada podiam fazer a não ser testemunhar e fuxicar) e que era testemunhado (mais tarde, sugere-se que imitado) pelas crianças. Os outros empregados não podiam falar dele, para não chatear o patrão, que o deixara lá para tomar ares do campo e sarar de alguma doença não explicada. Que espécie de intimidade era essa com o patrão, de quem usava as roupas? Morto, ele é um duplo do tio “gentleman”, duplo letal e paródico, que surge para a preceptora cheia de sonhos como a realidade sórdida que há por trás de seus ingênuos ideais românticos. Não é preciso ir muito longe para se imaginar homossexualidade nessa relação do criado de quarto com seu patrão, até porque persiste, nas impressões posteriores da preceptora, a sugestão de que o menino, Miles, fora expulso do colégio por dizer coisas estranhas aos colegas, com atitudes nitidamente influenciadas por seu convívio com o morto. Homossexualidade, incesto, pedofilia e o que mais se quiser estão nas suspeitas da preceptora e nas do leitor, às margens de uma história vitoriana de fantasmas. Num folhetim com jeito de apelar para a habitual cumplicidade de leitoras e adular o ego feminino, James conseguiu colocar tudo isso com suprema elegância, poesia e com uma peçonha de mestre. O PRINCIPAL SUSPEITO Sexo e morte são os assuntos dessa novela, na verdade. E estão organicamente interligados, porque é evidente, no contexto de puritanismo vitoriano em que a história transcorre, que a narradora é um pouco como uma personagem de Charlotte Brontë (pensa-se em Jane Eyre), tomada por anseios românticos, encontrando, numa atmosfera típica do romance feminino inglês – o casarão vetusto em que há um mistério – não o galã sonhado, mas um morto que não perdeu seu atrativo sexual. James estava consciente desse ângulo paródico e se refere à hipótese-clichê do “parente louco” no texto. Nesse contexto, sexo só poderia aparecer na forma de um demônio. Não haveria lugar para ele de uma maneira sã na cabeça de uma filha de pároco rural cheia a um só tempo de imaginação e preconceitos. Sente-se nela uma espécie de curiosidade imensa quanto a um assunto que a apavora – o trecho em que lê um romance um pouco picante de Fielding deixa isso bastante claro. Sexo, então, teria que ser algo reprimido, indesejado e apavorante – um fantasma. Naturalmente, tal fantasma tem uma atração irresistível e essa tensão entre monstro e fauno de Peter Quint dá ao texto riquezas ambíguas sem conta. Ele, o fantasma, é sempre comparado a um animal, mas é, ao mesmo tempo, exatamente por conter tudo de instintivo e permissivo, ou seja, de execrável, que encarna aquilo que a preceptora desejou – sem permitir que lhe subisse à consciência – no tio gentleman, e, depois, no menino de cuja educação cuida (o tempo todo ela se relaciona com o pequeno como se fosse um homem adulto, sedutor, em miniatura). As implicações dessa história não param de se estender, em múltiplas direções, nenhuma delas inocente, uma vez que as interpretações ficaram (e ficam) por conta da fineza – e da grossura – dos leitores. No filme Os Inocentes, Truman Capote foi um dos roteiristas, esua percepção de literato deve explicar em parte a felicidade dessa adaptação, que termina de maneira decididamente menos ambígua, com a preceptora beijando na boca o menino que lhe morre nos braços. Capote deu forma até um pouco grosseira a uma conjetura. Essas dúvidas com relação à veracidade da narrativa e à sanidade mental da narradora, que por vezes se transformaram em outras tantas duvidosas certezas, marcaram a análise da novela. E por isso é surpreendente encontrar, em A arte do Romance, de James, recentemente lançado no Brasil, o autor em nada se referindo às decantadas neuroses da preceptora, dizendo que sua intenção, ao escrever a novela, era fazer uma história de fantasmas menos previsível, um entretenimento em que prevalecesse um tom de “trágica, mas requintada perplexidade”. Entre as intenções de James e as interpretações que a novela suscitou, há um abismo curiosamente... jamesiano. Essas leituras em aberto, capaz de levarem a grandes acertos e enormes absurdos, na certa deliciaram o autor. Mais (ou menos) apropriadamente, talvez, pode-se dizer que, entre os fantasmas aí tecidos, encontra-se um outro, nada desprezível: o da própria Literatura, que se ergue, no lugar do real, como uma fonte de possibilidades vertiginosas. A Volta do Parafuso tem dois narradores e, quem sabe Deus, quantos infernais giros interpretativos; os deleites pantanosos que oferece parecem não ter limites. O principal suspeito, sem dúvida, é James, o artífice de um artifício que, a partir de si, se espatifa em milhares de espelhos que se refletem e hipóteses que se erguem e se desdizem. É a eficácia do parafuso. É o prazer de criar outros mundos, com uma perigosa e sedutora autonomia, que a Literatura nos dá. A VOLTA DO PARAFUSO PREFÁCIO O relato nos mantivera ao redor do fogo, suficientemente sem fôlego, mas exceto pela óbvia observação de que este era horrível, como um estranho conto, em véspera de Natal numa velha casa, deve essencialmente ser, não me lembro de ter havido comentário algum até que alguém arriscou dizer que era o único caso que conhecera em que uma tal aparição tinha ocorrido a uma criança. Era o caso, posso dizer, de uma aparição que ocorrera numa velha casa exatamente como aquela em que estávamos reunidos na ocasião – uma aparição de espécie medonha vista por um menininho que dormia num quarto com sua mãe e que despertou-a aterrorizado; despertou-a não para dissipar sua aflição e acalmá-lo para que voltasse a dormir, já que ela, antes de consegui-lo, se encontrou diante da mesma visão que o tinha abalado. Foi essa observação que arrancou de Douglas – não imediatamente, mas no transcorrer da noite – uma réplica que teve uma consequência interessante para a qual chamo a atenção. Outra pessoa contou uma história de pouco efeito, quando observei que ele não ouvia. Tomei isso como um sinal de que ele tinha alguma coisa para nos revelar e que teríamos apenas que esperar por ela. De fato, esperamos mais duas noites; mas, naquela mesma ocasião, antes que nos dispersássemos, ele nos contou o que passava por sua cabeça. “Concordo inteiramente – a respeito do fantasma de Griffin, fosse ele o que fosse – que o fato de ter aparecido primeiro a um menino de tão pouca idade lhe dá uma característica particular. Mas essa não é a primeira ocorrência desse tipo encantador que envolva uma criança, ao que eu saiba. Se uma criança faz dar outra volta ao parafuso, o que diriam vocês de duas?” “Diríamos que dariam duas voltas, com certeza!” – alguém exclamou – “E que também gostaríamos de saber sobre elas.” Revejo Douglas ali diante do fogo, para o qual dera as costas, encarando seu interlocutor com as mãos enfiadas nos bolsos. “Até agora, só eu soube. É horrível demais”. Várias vozes declararam, naturalmente, que isso dava à coisa um valor extremo e nosso amigo, com arte sutil, preparou seu triunfo lançando olhares sobre todo o resto da plateia e continuou: “Está além de qualquer descrição. Não conheço nada com que possa ser comparado”. “Em termos de puro terror?”, lembro-me que perguntei. Ele pareceu querer dizer que não era tão simples assim; pareceu estar perdido numa luta mental para qualificar a coisa. Passou sua mão sobre seus olhos e fez um pequeno esgar de estremecimento. “Em termos de pavor – pavor além da conta!” “Oh, que delícia!”, exclamou uma das mulheres. Ele não a notou; olhou-me, mas como se, ao invés de mim, ele estivesse vendo aquilo de que falara. “Em termos de monstruosidade oculta, de horror e de dor”. “Bem, então”, disse eu, “sente-se imediatamente e comece a contar”. Ele voltou para o pé do fogo, afastou uma acha com o pé, olhando-a por um instante.Falou como se nos olhasse novamente: “Não posso começar. Antes, tenho que dar providências na cidade”. Houve um gemido de desânimo geral e muita reprovação em reação a isso, depois dos quais ele, a seu modo preocupado, explicou. “A história está escrita. Ficou numa gaveta bem fechada – não saiu de lá por muito tempo. Podia escrever ao meu criado enviando a chave, ele me enviaria o pacote assim que o achasse”. Era a mim em particular que ele parecia querer propor isso – parecia quase apelar para uma ajuda a fim de acabar com suas próprias hesitações. Tinha quebrado uma espessa camada de gelo, uma formação que vinha se fazendo há mais de um inverno; tinha tido razões para seu longo silêncio. Os outros ficaram ressentidos com o adiamento, mas era exatamente sua dose de escrúpulos que me encantava. Instiguei-o a escrever pelo primeiro correio e a combinar conosco uma pronta leitura; então lhe perguntei se a experiência em questão tinha acontecido com ele. A isso respondeu rapidamente. “Graças a Deus, não!”. “E o relato é seu? Foi você que o escreveu?” “Fiquei apenas com a impressão. Guardei-a aqui” – ele bateu em seu coração. “Nunca a perdi”. “Então, o manuscrito...?” “O manuscrito está numa tinta velha e apagada, na mais bela de todas as letras”. Ele revolveu o fogo novamente. “Letra de uma mulher. Ela morreu há vinte anos. Mandou-me essas páginas antes da morte”. Todos ouviam-no agora, e claro que não faltou alguém para fazer malícia ou extrair a infalível dedução. Mas, se pôs a dedução de lado sem sorrir, também o fez sem irritar-se. “Ela era uma pessoa do maior encanto, mas era dez anos mais velha que eu. Era a governanta de minha irmã”, disse mansamente. “Era a mulher mais agradável que conheci em sua posição; teria sido digna de posições bem mais elevadas. Foi há muito tempo, e a coisa se deu bem antes de eu conhecê-la. Eu estava em Trinity, e a encontrei em casa no meu segundo verão. Fiquei muito lá naquele ano – foi uma bela temporada; nas suas horas de folga, passeávamos e conversávamos no jardim – conversas nas quais ela me deixava atônito com sua inteligência e beleza. Ah, não riam: eu gostava imensamente dela e até hoje fico feliz em pensar que ela também gostava de mim. Se não gostasse, nunca teria me contado. Nunca contara a história a ninguém. Não que o dissesse, mas eu sabia que não contara. Eu tinha certeza; eu via. Vocês saberão facilmente o porquê, quando a ouvirem.” “Por que a coisa tinha sido tão pavorosa?” Ele continuou a encarar-me. “Você saberá facilmente”, ele repetiu: “você saberá”. Encarei-o também. “Compreendo. Ela estava apaixonada.” Riu pela primeira vez. “Você é perspicaz. Sim, estava apaixonada. Quer dizer: tinha estado. Isso transpareceu – ela não poderia ter contado a sua história sem que isso transparecesse. Notei, e ela notou que eu notei, mas nenhum de nós tocou no assunto. Lembro a hora e o lugar – um canto de gramado, a sombra de grandes faias e a tarde longa e quente de verão. Não era cenário para um arrepio; mas...!” Afastou-se do fogo e voltou a recostar-se em sua cadeira.“Receberá o pacote na manhã de quinta-feira?”, perguntei. “Creio que na segunda remessa”. “Bem, então – depois do jantar...” “Vocês todos estarão aqui?” Lançou um olhar para todo o grupo novamente. “Ninguém irá embora?” A pergunta continha uma nota de esperança. “Todo mundo vai ficar!” “Eu vou – e eu vou!”, exclamaram as senhoras cuja partida já estava marcada. A Senhora Griffin, contudo, mostrou-se carente de um pouco mais de esclarecimento. “Por quem será que ela estava apaixonada?”. “A história dirá”, incumbi-me de responder. “Oh, mal posso esperar pela história!” “Ela não dirá”, disse Douglas. “Não de um modo literal, vulgar”. “Mais uma lástima, então. Esse é o único modo pelo qual entendo as coisas.” “Você não contará, Douglas?”, alguém perguntou. Ele pôs-se de pé novamente. “Sim – amanhã. Agora preciso dormir”. E, rapidamente, apanhando um castiçal, ele se afastou, deixando-nos um pouco desconcertados. Ouvimo-lo subindo a escada do extremo do salão de lambris escuros onde nos encontrávamos e onde a Senhora Griffin falou. “Bem, se eu não sei por quem ela estava apaixonada, por quem ele estava eu sei.” “Ela era dez anos mais velha”, disse o marido. “Raison de plus” – naquela idade! Mas é bonito, esse longo silêncio em que ele se manteve.”. “Quarenta anos!”, Griffin acrescentou. “E por fim esse desabafo”. “O desabafo”, retornei, “fará da noite de quinta-feira uma ocasião muito especial”, e todo mundo concordou comigo de tal modo que, tendo isso em consideração, perdemos a atenção para tudo mais. A última história, embora incompleta e sugerindo muito mais o início de uma série, tinha sido contada; apertos de mãos e o que alguém chamou de “apertos de castiçais” foram trocados, nos despedimos e fomos dormir. Soube no dia seguinte que uma carta contendo a chave tinha sido mandada a seu apartamento em Londres, pelo primeiro correio; mas apesar – ou talvez por causa – da eventual difusão desse fato, deixamo-lo tranquilo até depois do jantar, até uma certa hora da noite que de fato pudesse combinar com o tipo de emoção no qual depositávamos nossas expectativas. Então ele se tornou tão comunicativo quanto desejávamos e deu-nos realmente motivos para ficarmos esperançosos. Escutamo-lo novamente diante do fogo no salão, ali mesmo onde, na noite anterior, tinha-nos mantido num assombro bem-educado. Parecia que a narrativa que prometera ler-nos requeria algumas palavras de introdução para ser melhorcompreendida. Permitam-me dizer que essa narrativa, numa transcrição fiel que fiz muito tempo depois, é a que se lerá neste livro. Pobre Douglas, antes de sua morte – quando ela era já iminente – entregou-me o manuscrito que lhe chegou no terceiro desses dias e que, no mesmo lugar, na noite do quarto, começou a ler para nosso pequeno grupo silencioso e atento. As senhoras de partida marcada que tinham afirmado categoricamente que ficariam, naturalmente, graças aos céus, não ficaram: partiram, devido a compromissos já estabelecidos, morrendo de curiosidade, como diziam, curiosidade produzida pelos toques com que ele nos tinha cativado. Mas isso, por fim, apenas tornou sua pequena plateia mais compacta e seleta, mantendo-a, em torno da lareira, sujeita a uma emoção em comum. O primeiro desses toques estabelecia que o manuscrito partia de um ponto em que a história já tinha, de certa maneira, começado. Tínhamos que ter em mente o fato de que sua velha amiga, a mais velha de várias filhas de um pobre pároco rural, aos seus vinte anos, à procura de seu primeiro trabalho como preceptora, fora para Londres, agitada, para responder em pessoa a um anúncio que já a tinha colocado em contato, através de correspondência, com o anunciante. Ao apresentar-se para o teste numa casa em Harley Street, o possível futuro patrão provou-se um cavalheiro, um homem solteiro ainda bem jovem, uma figura que, como tal, nunca tinha lhe aparecido em sua vida de mocinha irrequieta e sonhadora de um vicariato em Hampshire. Pode-se facilmente adivinhar seu tipo; felizmente, nunca desaparece. Era bonito e ousado e gentil, espontâneo e alegre e acolhedor. Ele a encantou, inevitavelmente, pelo que tinha de galante e esplêndido, mas o que a encantou mais que tudo e deu a ela a coragem que exibiu mais tarde, foi ele ter posto a coisa em tais termos que seria como um favor que ela lhe fizesse, uma obrigação pela qual ele contrairia uma dívida de gratidão com ela. Fantasiou-o rico, mas perdulário, extravagante – via-o todo resplandecente em alta moda, em bela aparência, mantendo hábitos de luxo, cativante para as mulheres. Sua residência na cidade era um casarão repleto de lembranças trazidas de viagens e troféus de caça; mas era para a sua casa no campo, um antigo recanto de família em Essex, que ele queria que ela imediatamente fosse. Ele tinha ficado tutor de um casal de pequenos sobrinhos, cujos pais tinham morrido na Índia; o pai era um seu irmão mais jovem, militar, que ele perdera há dois anos atrás. Essas crianças estavam, pelo mais estranho dos acasos para um homem em sua posição – sozinho e sem experiência apropriada ou um pingo de paciência para esses fins – pesando em suas mãos. Tudo tinha sido uma enorme preocupação e, quanto ao que lhe tocava, fora de dúvida, um sem-fim de equívocos, mas ele se compadecia imensamente da sorte dos pequenos e fizera quanto pudera; mandara-os para a sua outra casa, tendo em vista que era melhor para eles estarem no campo, e mantivera-os lá desde o início com quem melhor pudesse cuidar deles, privando-se de alguns de seus servidores e indo, sempre que podia, ver como as coisas iam se arranjando. A coisa mais espinhosa era que as crianças não tinham outros parentes e que seus próprios negócios mantinham-no ocupado a maior parte do tempo. Instalara-os em Bly, um lugar que era saudável e seguro, colocando à frente dos trabalhos domésticos uma mulher excelente, a Senhora Grose, a quem estava certo que ela apreciaria e que fora primeiro uma criada de sua mãe. A Senhora Grose fazia vezes de governanta e estava incumbida de cuidar da menininha, a quem, por não ter filhos, era, felizmente, muito apegada. Havia um monte degente para ajudá-la, mas certamente a pessoa que tivesse a função de preceptora seria dotada de autoridade suprema. Nas férias, ela teria que cuidar também do rapazinho, que estava no colégio – era jovem demais para isso, mas que se podia fazer? – e, como estavam prestes a começar, ele poderia voltar de uma hora para outra. No início, tinha havido uma jovem que cuidava do casalzinho, mas, por desgraça, tinham-na perdido. Trabalhara com eles muito bem – era uma pessoa respeitabilíssima – até a sua morte, o que de pior podia acontecer então, pois não lhes deixou outra solução senão mandar o pequeno Miles para o colégio. A Senhora Grose, desde essa perda, fez o que pode por Flora em termos de ensinar-lhe o devido; e havia, além dela, uma cozinheira, uma criada, uma granjeira, um velho pônei, um velho que cuidava da estrebaria e um velho jardineiro, todos igualmente respeitáveis. Douglas tinha chegado a essa altura da história, quando alguém fez uma pergunta. “E de que morreu a primeira preceptora? – de tanta respeitabilidade?”. Nosso amigo respondeu prontamente. “Isso será esclarecido. Não vou adiantar nada.” “Perdão – pensei que era exatamente isso que você estava fazendo.”. “No lugar da sucessora”, sugeri, “eu teria querido saber se o emprego implicaria em...” “Perigo de morte?”. Douglas completou meu pensamento. “Ela queria saber sim, e soube. Vocês saberão amanhã o que ela soube. Naquele momento, naturalmente, a perspectiva lhe pareceu ligeiramente sombria. Ela era jovem, novata, nervosa: tinha pela frente um panorama de obrigações muito sérias e escassa companhia, uma solidão realmente grande. Hesitou – pediu alguns dias para meditar e considerar. Mas o salário oferecido ultrapassava suas expectativas modestas, e numa segunda entrevista decidiu encarar a situação e aceitou”. Nesse trecho, Douglas fez uma pausa que, em benefício do grupo, motivou-me a observar – “A moral dessa história foi que a sedução do belo homem funcionou, naturalmente. Ela sucumbiu.” Ele levantou-se e, como na noite anterior, andou rumo ao fogo, revolveu uma acha com o pé e ficou por um instante de costas para nós. “Ela viu-o apenas duas vezes”. “Sim, mas é isso que embeleza a sua paixão.” Nisso, Douglas, para minha surpresa, virou-se para meu lado. “Realmente, era o que a embelezava. Houve outras candidatas ao emprego”, continuou, “que não sucumbiram. Ele lhe falou francamente de suas dificuldades – para as outras, as condições tinham sido proibitivas. Mostravam-se assustadas. O trabalho parecia monótono – parecia estranho; e mais ainda por causa de sua principal condição.” “Que era... ?” “Que a contratada nunca o perturbasse – mas isto nunca, nunca: nem apelar nem queixar-se nem escrever sobre coisa nenhuma; teria que resolver as questões sozinha, receber o dinheiro das mãos do procurador, assumir o encargo todo e deixá-lo em paz. Ela prometeu fazê-lo, e mencionou-me que quando, por um momento, aliviado, deliciado, ele apertou sua mão, agradecendo-a pelo sacrifício, ela se sentiu recompensada.”“E isso foi tudo que ela obteve como recompensa?”, uma senhora perguntou. “Ela nunca mais o viu”. “Oh!”, suspirou a senhora; o que, como nosso amigo se afastou novamente, foi a única palavra de importância sobre o assunto que nos restou até que, na noite seguinte, no canto da lareira, na melhor cadeira, ele abriu a apagada capa vermelha de um álbum pouco volumoso, de bordas douradas, de um gênero fora de moda. Tudo durou muito mais que uma noite, mas na primeira ocasião a mesma senhora tinha outra pergunta a fazer. “Que título tem?” “Não lhe dei nenhum”. “Oh, eu tenho um!”, afirmei. Mas Douglas, sem me dar atenção, tinha começado a ler com um uma clareza tão límpida que era como se estivesse fazendo uma transposição para os nossos ouvidos da beleza da letra da autora. CAPÍTULO I Recordo todo o início como uma sucessão de altos e baixos, como uma pequena gangorra de emoções desencontradas. Depois do entusiasmo com que atendi ao apelo dele na cidade, tive sob todos os aspectos alguns dias muito difíceis – vi-me novamente cheia de dúvidas, chegando a ter certeza de que fizera a coisa errada. Neste estado de espírito passei as longas horas de trepidações e solavancos dentro de uma diligência que me levava até o ponto de parada onde um veículo proveniente da casa devia me apanhar. Eu contava com esta providência, que de fato foi tomada, e finalmente me acomodei numa carruagem que me conduziu por um fim de tarde de Junho. Viajar nessa hora, num belo dia, através de uma região cuja doçura de verão parecia me oferecer uma acolhida amigável, fez com que minhas forças se recuperassem e, quando entramos numa alameda, encontraram um alívio que não era mais que a prova do quanto andavam combalidas. Suponho que tinha esperado, ou temido, alguma coisa tão profundamente melancólica que o que encontrei foi uma grata surpresa. Recordo, como uma impressão das mais agradáveis, a fachada ampla e clara, janelas abertas e cortinas frescas e um par de criadas à minha espera; lembro o gramado e as flores luminosas e o ruído das rodas no cascalho e as copas unidas das árvores acima das quais, lá no alto, no céu dourado, as gralhas voavam em círculos e grasnavam. O cenário tinha uma imponência que o tornava muito diferente da terra natal sem atrativos de que eu provinha, e imediatamente surgiu à porta, de mãos dadas com uma menina, uma pessoa comum que saudou-me com uma mesura tal que era como se eu fosse a esposa de um visitante ilustre. Em Harley Street eu obtivera uma noção vaga do lugar, e isso, como recordo, fez-me julgar o proprietário muito mais que um cavalheiro, visto que o que eu estava por desfrutar agora podia ser algo muito além do que ele me descrevera. Não tive decepção até o dia seguinte, porque uma sensação de triunfo apoderou-se de mim depois que fui apresentada à minha jovem aluna. A garotinha que acompanhava a Senhora Grose pareceu-me uma criatura tão encantadora que achei uma grande sorte ter que cuidar dela. Ela era a criança mais bela que eu já vira, tanto que me pus a pensar por que meu patrão não teria me falado dela mais detalhadamente. Dormi pouco naquela noite – estava excitada demais; me espantava também a generosidade com que estava sendo tratada. O quarto grande e impressionante, um dos melhores da casa, a cama ampla e de gala, como a achei, as cortinas estampadas, os altos espelhos nos quais, pela primeira vez, via-me de corpo inteiro, tudo me deslumbrava – como o extraordinário encanto de minha pequena discípula – e me parecia arrebatador. Ficou claro, desde o princípio, que eu teria com a Senhora Grose uma relação diferente daquela que, na diligência, viera me causando cismas. A única coisa que poderia ter me infundido algum receio nesse primeiro encontro era a clara circunstância de ela estar tão alegre por me receber. Em menos de uma hora, percebi que ela estava tão alegre – era uma mulher corpulenta, simples, direta, limpa e sadia – que esforçava-se para disfarçá-lo, para que essa alegria não transbordasse. Pensei com estranheza sobre o porquê desse desejo de ocultá-la e, se me estendesse na reflexão e na suspeita, eu ficaria ainda mais inquieta. Mas era um alívio que não pudesse haver inquietação em relação a uma coisa tão beatífica quanto a imagem radiante da garotinha, visão cuja beleza angelical tinha sido a causaprovável de uma inquietude que, antes de amanhecer, fez-me várias vezes sair da cama e vagar pelo meu quarto para ter uma noção mais compenetrada do ambiente, para observar, de minha janela aberta, o esmaecer da aurora de verão, para tomar ciência de outras partes do resto da casa enquanto ouvia, na escuridão que se diluía, os primeiros pássaros começando a trinar, e supunha ouvir algo mais, a recorrência de um ou dois sons menos naturais não lá fora, mas no lado de dentro. Houve um momento em que acreditei ter reconhecido, débil e distante, o grito de uma criança; houve também outro em que tive como que o começo da consciência de que passos leves passavam atrás da porta. Mas essas cismas não eram acentuadas a ponto de não poderem ser postas de lado, e é apenas à luz, ou à sombra, dos fatos subsequentes, que agora retornam à minha memória. Vigiar, ensinar, “formar” a pequena Flora era uma perspectiva evidente demais de vida feliz e produtiva. Ficara combinado lá embaixo que, depois da primeira noite, ela passaria a ficar ali comigo, e a pequena cama branca já tinha sido colocada junto à minha para esse fim. Eu teria a guarda total dela e ela tinha ficado pela última vez com a Senhora Grose levando ambas em conta o meu inevitável desajustamento e a timidez natural da menina. A despeito dessa timidez – a que ela mesma, do modo mais estranho do mundo, se referia com franqueza e coragem, sem o menor sinal de embaraço, com a profunda e doce serenidade de um anjo de Rafael, colocando-a em questão e atribuindo a si a responsabilidade – eu tinha certeza de que ela gostaria de mim. A Senhora Grose mostrava um prazer evidente, que já me fizera gostar dela, constatando a minha admiração e deslumbramento quando eu me aproximava da mesa de jantar com quatro altos candelabros e a minha pequena discípula, sentada numa cadeira alta, com um babadouro no pescoço, observava-me com atenção radiosa por cima do pão e do leite. Naturalmente havia coisas a que, na presença de Flora, só podíamos aludir obscuramente, com uma troca de olhares gratos e admirados. “E o menino – ele se parece com ela? É extraordinário assim também?” Convinha não lisonjear diretamente uma criança. “Oh, senhorita, muito. Se a senhora acha disso da menina!” – e lá ficava ela com um prato na mão, embevecida com nossa companheira, que nos olhava de uma para outra, os olhos celestiais sem nenhuma espécie de desconfiança de nós. “Sim; e aí...?” “Vai ficar arrebatada com o pequeno gentleman!” “Bem, acho que foi para isso que vim – para ficar arrebatada. Mas, estou com um pouco de medo”, lembro-me de ter tido o impulso de acrescentar, “Fico facilmente arrebatada. Já o fiquei, em Londres”. Revejo o rosto amplo da Senhora Grose considerando o que eu acabara de dizer. “Em Harley Street?” “Em Harley Street, sim”. “Bem, senhorita, não é a primeira – e não será a última.” “Oh, não tenho a pretensão”, consegui rir, “de ser a única. Meu aluno, segundoentendo, deve chegar amanhã?” “Amanhã não, senhorita: chega na sexta-feira. Virá pela diligência, como a senhora, sob vigia do guarda, e depois, a mesma carruagem que a trouxe vai pegá-lo”. Disse então que o mais apropriado, cordial e amistoso a fazer, pela ocasião da chegada da carruagem, era que eu fosse esperar por ele na companhia da irmãzinha; a ideia agradou tanto a Senhora Grose que eu interpretei seu agrado como se fosse uma promessa calorosa – graças aos céus, nunca desmentida! – de que estaríamos unidas em todas as questões. Oh, ela realmente estava muito alegre pela minha presença! O que eu senti no dia seguinte, suponho que não fosse nada que pudesse ser chamado com justiça de uma reação ao prazer de minha chegada; era muito mais, provavelmente, uma ligeira opressão causada por uma avaliação mais completa dos acontecimentos, ponderando uma por uma as circunstâncias. Elas tinham, como eram, uma extensão e um volume para os quais eu não me preparara e na sua presença eu me sentia um tanto amedrontada e também um tanto orgulhosa. As lições, devido a essa agitação, sofreram um atraso; refleti que meu primeiro dever era, pelas artes mais sedutoras que pudesse inventar, o de conquistar a atenção da menina. Passei o dia ao ar livre, tendo-a ao meu lado; dispus com ela, para sua grande satisfação, que era ela, apenas ela, quem deveria mostrar-me o lugar. Mostrou-o passo a passo e aposento a aposento e segredo a segredo, com uma tagarelice cômica, deliciada e infantil que teve o resultado de, em menos de uma hora, tornar-nos imensamente amigas. Jovenzinha como ela era, fui arrastada, ao longo de nossa pequena excursão, por sua confiança e coragem em ir abrindo caminho, mostrando aposentos vazios e corredores escuros, escadas em espiral que me obrigavam a parar para tomar fôlego, o que fiz também no alto de uma torre quadrada, de ameias, devido a tonturas, a sua música matinal, a sua disposição para dizer mais coisas que as que me perguntava me causando tanto interesse quanto aturdimento. Não voltei a ver Bly desde o dia em que deixei o lugar, e ouso dizer que para meus olhos mais experientes, ele apareceria, agora, em sua dimensão exata de acanhamento. Mas, enquanto minha pequena guia, com seu cabelo dourado e seu vestido azul, dançava diante de mim mostrando-me cantos e passagens, eu tinha a visão de um castelo de romance habitado por um duende rosado, um lugar que, pela diversão de uma mente infantil, tomaria todo o aspecto de um livro de fábulas ou contos de fadas. Aquilo já não seria uma historinha fantástica que me fizera adormecer e sonhar? Não; era uma casa grande, feia e antiga, mas cômoda, que continha elementos de uma construção ainda mais remota, em parte substituídos e em parte reutilizados, na qual eu tinha a impressão de que estávamos meio perdidos, como um punhado de passageiros num navio à deriva. Nesse navio era como se eu estivesse, estranhamente, segurando o leme! CAPÍTULO 2 Essa ideia me voltou quando, dois dias depois, fomos, eu e Flora, esperar o pequeno gentleman, que era como a Senhora Grose o chamava; voltou-me devido a um incidente, que ocorrendo logo na segunda noite, deixara-me desconcertada. O primeiro dia havia sido, no geral, como expliquei, bem tranquilizador; mas fui vendo-o transformar-se e trazer uma intensa apreensão.O correio, de noitinha – chegando com atraso – continha uma carta dirigida a mim, que, contudo, na letra do meu patrão, era composta por poucas palavras e incluía outra carta, endereçada a ele, com o lacre ainda intacto. “Reconheço aí a letra do diretor do colégio, e ele é um terror de maçante. Leia, por favor; entenda-se com ele por mim; mas lembre-se de não me informar. Nem uma palavra. Estou viajando!” Rompi o lacre com um esforço tão grande que parecia que não ia acabar-se nunca; levei a carta fechada para o meu quarto lá em cima e só me senti disposta a atacá-la quando já estava para dormir. Teria feito melhor se esperasse para fazê-lo na manhã seguinte, pois seu efeito foi me dar uma segunda noite de insônia. Como não havia ninguém com quem me aconselhar, no outro dia, fiquei angustiada; a angústia chegou, por fim, a tal ponto, que tomei a decisão de abrir-me pelo menos com a Senhora Grose. “Que significa isto? O menino foi expulso do colégio”. Ela lançou-me um olhar que por um momento estranhei; então, visivelmente, com uma ligeira inexpressividade, pareceu recuperar-se. “Mas eles não são todos... ?” “Mandados para casa – sim. Mas só pelo período das férias. No caso de Miles, pode ser que nunca mais volte.” Conscientemente, enquanto eu a fitava, ela enrubesceu. “Não vão querê-lo mais?” “Foi rejeitado de forma absoluta.” Nesse ponto ergueu os olhos, que tinha desviado de mim; vi-os ficarem cheios de lágrimas. “O que ele fez?” Hesitei; achei mais simples lhe estender a carta – contudo, isso fez com que, sem apanhá-la, colocasse as mãos atrás de si. Balançou a cabeça tristemente. “Essas coisas não são para mim, senhorita”. Minha confidente não sabia ler! Tremi com minha falha, que atenuei como pude, e abri minha carta novamente para repetir-lhe o que soubera; então, hesitando e dobrando-a novamente, recoloquei-a em meu bolso. “Ele é mesmo um garoto mau?” As lágrimas estavam ainda lá, em seus olhos. “Os senhores do colégio afirmam isso?” “Não entram em detalhes. Simplesmente dizem com pesar que será impossível mantê-lo. Isso só pode ter um significado”. A Senhora Grose ouvia com emoção contida; absteve-se de perguntar que significado seria esse; de tal modo que, para colocar a coisa de um modo inteligível em sua presença, continuei: “Que ele pode ser prejudicial para os outros alunos”. A essa altura, com um desses sobressaltos comuns em gente simples, ela inflamou-se.“O Senhor Miles! ele, prejudicar alguém!” Havia tal transbordamento de boa-fé em sua expressão que, mesmo sem ter visto o menino, meus próprios receios fizeram com que eu recuasse ante o absurdo da ideia. Vi-me, para ser solidária com minha companheira, dizendo sarcasticamente: “Prejudicar seus pobres coleguinhas inocentes!”. “É terrível que se diga coisas tão cruéis! Ele tem apenas dez anos”, gemeu a Senhora Grose. “Sim, sim; seria inacreditável”. Tal declaração deixou-a evidentemente satisfeita. “Veja-o primeiro, senhorita. Depois, verá se é possível acreditar nisso!”. Senti um recrudescimento da impaciência que já tinha por vê-lo; foi o começo de uma curiosidade que, por todas as horas subsequentes, chegava a ponto de doer. Pelo que percebia, a Senhora Grose tinha consciência do efeito que suas palavras me causaram, e reforçou-as com toda a segurança. “Pode-se pensar o mesmo da pequena senhora. Abençoada seja!”, acrescentou – “olhe para ela!” Virei-me e vi Flora, a quem, há dez minutos, deixara na sala de estudos com uma folha de papel branco, um lápis e o dever de copiar uns “O’s” bem redondos e que agora aparecia para dar uma espiada pela porta aberta. A seu modo de criança, expressava um grande desapego às tarefas desagradáveis, e , apesar da existência destas, me olhava com a irradiação de sua infância como se esta fosse um mero resultado do afeto que por mim sentia, o que redundava na necessidade de obedecer-me. Não precisei mais que essa visão para sentir a força inequívoca da comparação da Senhora Grose, e, agarrando minha aluna nos braços, cobri-a de beijos nos quais havia um soluço de arrependimento. Apesar disso, pelo resto do dia esperei por uma ocasião oportuna para aproximar-me de minha companheira, especialmente pela noitinha, quando cismei que ela parecia estar preferindo me evitar. Apanhei-a, lembro, na escada; descemos juntas, e na base eu a detive, abraçando-a e colocando a mão em seu ombro. “O que a senhora me disse pela manhã, eu tomei como afirmação de que nunca viu o menino se comportar mal”. Lançou a cabeça para trás; a essa altura, ela, com honestidade, bem claramente, já havia tomado uma atitude. “Oh, nunca não – eu não pretendia dizer uma coisa dessas!” Fiquei perplexa outra vez. “Então, a senhora viu ...?” “Sim, senhorita, graças a Deus!” Refleti e aceitei. “A senhora quer dizer que um menino que nunca...?” “Não é um menino para mim!” Abracei-a com mais força. “A senhora gosta que os meninos sejam travessos?”. E, antecipando sua resposta, disse: “Eu também!”, rapidamente acrescentei: Travessos sim, mas não a ponto de contaminar...” “Contaminar?” – a palavra a deixou atarantada. Expliquei-a. “Corromper”.Arregalou os olhos, compreendendo; mas a coisa causou nela uma risada estranha. “Tem medo que ele corrompa a senhorita?” Colocou a questão com um humor tão leve e audacioso que imitei sua risada, um pouco tolamente, sem dúvida, ficando apreensiva pelo ridículo que poderia passar. Mas no dia seguinte, quando a hora de tomar o carro se aproximava, apanhei-a em outro ponto da casa. “Como era a moça que esteve aqui antes de mim?” “A última preceptora? Era também jovem e bela – quase tão jovem e tão bela como a senhorita”. “Então, espero que a juventude e a beleza dela tenham lhe ajudado!” – deixei escapar. “Ele parece nos preferir jovens e belas!” “Oh, ele preferia”, a Senhora Grose concordou: “era assim que gostava de todas!” Mal tinha falado essas palavras, procurou emendar-se. “Digo que esse é o jeito dele – do patrão.” Fiquei alarmada. “Mas de quem a senhora falou primeiro?” Ela estava pálida, mas recuperou-se. “Ora, dele, claro.” “Do patrão?” “De quem mais poderia ser?” Era tão clara a inexistência de alguém mais que no momento seguinte eu já tinha esquecido a minha impressão de que ela dissera acidentalmente mais do que queria; e simplesmente perguntei o que queria saber. “Ela via alguma coisa no menino... ?” “Que fosse errada? Nunca me falou nada.” Tive um escrúpulo, que venci. “Ela era cuidadosa, nesse particular?” A Senhora Grose pareceu esforçar-se por lembrar bem. “Em certos aspectos – sim”. “Mas não em todos?” Ela voltou a pensar. “Bem, senhorita – ela se foi. Não vou ser faladeira.” “Entendo a sua posição”, apressei-me em responder; mas logo a seguir, pensei que não haveria mal em aproveitar e prosseguir: “Ela morreu aqui?” “Não – tinha ido embora”. Não sei o que havia nesse laconismo da Senhora Grose que o tomei como um pouco ambíguo. “Foi-se embora para morrer?” A Senhora Grose olhou para fora da janela, esquivando-se, mas eu achei que, hipoteticamente, tinha o direito de saber o que era esperado das jovens que se empregavam em Bly. “A senhora quer dizer que ela ficou doente e foi para casa?”. “Não ficou doente aqui, que me lembre. Saiu no fim do ano para ir para casa, como disse, tirando uma folga, o que, pelo tempo que tinha trabalhado aqui, estava no seu direito. No seu lugar, ficou uma outra mulher – uma empregada que também era uma moça boa e inteligente; e foi essa que tomou conta das crianças nesse intervalo. Mas, nunca voltou, e noexato momento em que eu esperava por ela, o patrão me comunicou que estava morta.” Pensei e pensei naquilo. “Mas, morreu de quê?” “Ele nunca me falou! Mas, por favor, senhorita”, disse a Senhora Grose. “Preciso continuar com meu trabalho”. CAPÍTULO 3 O fato de, a seguir, ela ter me dado às costas não foi, felizmente, para as minhas justas preocupações, uma descortesia que pudesse estorvar o crescimento de nosso afeto mútuo. Depois que eu trouxe Miles para casa, ficamos mais íntimas que nunca devido à minha estupefação e meu abalo, pois achava monstruoso que uma criança como aquela que eu acabava de conhecer estivesse proibida de ficar no colégio. Cheguei um pouco atrasada ao nosso encontro e senti, enquanto ele permanecia numa espera ansiosa de mim diante da porta da estalagem na qual a diligência o deixara, que o via, naquele instante, sem tirar nem pôr, com a mesma irradiação de frescor, com a mesma indiscutível fragrância de pureza que percebera ao conhecer sua irmã no primeiro momento. Ele era incrivelmente bonito, e o que a Senhora Grose tinha dito era a pura verdade: sua presença fazia com que nada a não ser uma ternura apaixonada subsistisse. O que atingiu meu coração ali, na ocasião, foi algo divino que nunca encontrei no mesmo grau em outra criança – seu indescritível jeitinho de não conhecer neste mundo nada que não fosse amor. Era impossível que alguém carregasse uma má reputação com maior doçura e inocência, e quando voltava para Bly ao seu lado continuei perplexa – ou melhor, indignada – ao lembrar-me da carta horrível que deixara trancada numa gaveta do meu quarto. Assim que pude trocar algumas palavras em particular com a Senhora Grose, declarei a ela que tudo aquilo era grotesco. Ela me entendeu rapidamente. “A senhorita está falando daquela acusação cruel?”. “Não procede. Minha cara, olhe para ele!” Ela sorriu de minha pretensão de ser a descobridora do encanto do menino. “Pode ter certeza de que não faço outra coisa, senhorita! Então, o que a senhorita vai dizer?”, ela acrescentou prontamente. “Em resposta à carta?” Eu já tinha me decidido. “Nada.” “E ao tio do menino?” Fui incisiva. “Nada.” “E ao próprio menino?” Fui maravilhosa. “Nada.” Ela enxugou os lábios vigorosamente com o avental. “Então, ficarei do seu lado. O que acontecerá, veremos.” “Veremos!”, repeti com ardor, estendendo-lhe a minha mão para que selássemos o nosso pacto. Ela me deteve mais um pouco, e então ergueu o avental novamente com a mão que ficara livre. “A senhorita se importaria se eu tomasse a liberdade...?” “De beijar-me? Não!” Tomei a boa criatura em meus braços e, depois que tínhamos nos abraçado feito irmãs, nos sentimos ainda mais fortalecidas e indignadas. Foi assim que as coisas se passaram durante certo tempo: um tempo tão cheio que,quando tenho que recordá-lo com precisão, preciso fazer uso de toda arte para torná-lo um pouco mais nítido. O que me causa espanto, em retrospecto, é ter eu aceitado uma tal situação. Tinha combinado, com minha companheira, ver o que poderia suceder, e estava sob o efeito de um encanto que aparentemente podia aplainar as extensões e consequências de um esforço tão grande. Eu estava flutuando sobre uma grande onda de fantasia e piedade. Achava simples, na minha ignorância e confusão, e talvez na minha presunção, assumir que poderia lidar com um menino cuja educação para o mundo estava ainda em seu início. Ainda hoje me sinto incapaz de recordar que plano eu tracei para o fim das suas férias e o reinício de seus estudos. Estava teoricamente estabelecido que ele teria aulas comigo naquele verão encantador; mas agora sinto que, por várias semanas, quem tomou lições fui eu. Aprendi – sem dúvida, era a primeira vez – uma coisa que não conhecera em minha vida limitada, sufocada; aprendi a me divertir, a ser divertida, e a não pensar no dia de amanhã. Foi a primeira vez, de certa maneira, que conheci espaço e ar livre e liberdade, que conheci toda a música do verão e todo o mistério da natureza. E havia consideração – e essa consideração era doce. Oh, era uma armadilha – não deliberada, mas profunda – para a minha imaginação, para a minha sensibilidade, talvez para a minha vaidade; enfim, para o que em mim fosse mais vulnerável. A melhor maneira de descrever a situação é dizer que eu tinha baixado minha guarda. Davam- me tão pouco trabalho – eram de uma gentileza extraordinária. Eu especulava – mas ainda assim com uma certa vagueza – como o áspero futuro (pois todos os futuros são ásperos!) iria tratá-los e feri-los. Eram a saúde e a felicidade em flor; e, no entanto, era como se eu estivesse incumbida de cuidar de um par de grandes do reino, dois legítimos príncipes para os quais, visando o bom andamento, tudo tivesse que ser exclusivo, protetor, e a única forma, em minha fantasia, que os anos futuros poderiam assumir para eles, era a de um prolongamento aristocrático daquele jardim e daquele parque. Sem dúvida, deve ser pela irrupção que se verificou depois, que a lembrança desse período antecipatório me parece cheia de um encanto tranquilo – de um tipo de quietude em que algo se engendra e se prepara. A mudança na verdade surgiu como a irrupção de uma fera. Nas primeiras semanas os dias se encompridavam; os melhores em geral me proporcionavam o que eu chamava de “minha hora”, e era a hora em que, finalizados os ritos de chá e cama para os meus alunos, eu tinha, antes de me recolher, um pequeno intervalo para ficar sozinha. Por muito que eu gostasse da companhia de ambos, essa era a hora do dia de que eu mais gostava; e gostava mais que tudo quando, enquanto a luz se diluía – ou melhor, quando o dia tardava a morrer e os últimos pios dos últimos pássaros vinham das velhas árvores, ecoando pelo céu avermelhado – podia passear pelos arredores e gozar, com um senso de propriedade que me divertia e lisonjeava, da dignidade e da beleza do lugar. Nesses momentos, era um prazer para mim, sentir-me tranquila e justificada; sem dúvida, talvez, para pensar que, devido à minha discrição, meu plácido bom senso e meu decoro de alto nível, eu estava dando prazer – se é que ele levava isso em conta! – à pessoa a cujas exigências me ajustara. Eu fazia o que ele ardentemente esperara e diretamente me pedira, e que eu pudesse, afinal, fazê-lo, provara-se uma alegria maior que a esperada por mim. Em resumo, ouso dizer que me via como uma jovem admirável e me consolava na fé de que isso ficaria evidente algum dia. Bem, eu precisava ser de fato admirável para encarar as coisas admiráveis que semanifestaram no princípio. Aconteceu abruptamente, numa tarde, bem no meio de “minha hora”: as crianças tinham se recolhido e eu saíra para o meu passeio. Um dos pensamentos que me acompanhavam nesses momentos, que não vacilo em anotar, era de que seria encantador como numa história romântica deparar-me com alguém, de repente. Alguém apareceria lá na curva do caminho, ficaria diante de mim, sorridente e aprovador. Eu não pedia mais que isso – queria apenas que ele soubesse; e o único meio de saber que ele sabia seria ver isso, e o efeito luminoso e agradável disso, no seu belo rosto. Isso estava bem presente na minha imaginação – digo, o rosto – quando, na primeira dessas ocasiões, no fim de um longo dia de Junho, estaquei ao sair de um dos arbustos e deparar-me com a casa. O que me prendeu no lugar – e com um choque maior que qualquer visão permitiria – foi a percepção de que minha fantasia, num lampejo, tinha se concretizado. Ele estava lá! – mas num ponto alto, para além do gramado e bem no topo da torre para a qual, naquela primeira manhã, Flora me conduzira. Essa torre era uma das duas – estruturas quadradas, incongruentes, ameadas – que eram definidas, por alguma razão, como a velha e a nova, embora eu visse pouca diferença entre elas. Situadas em flancos opostos da casa, eram provavelmente extravagâncias arquitetônicas, redimidas em certa medida por não estarem de fato completamente deslocadas nem terem uma altura muito pretensiosa, datando, em sua antiguidade de mau gosto, de alguma moda romântica que já se tornara um passado respeitável. Eu as admirava, entregava-me a fantasias com elas, porque todos podiam se impressionar com as duas em certo grau, especialmente quando, na obscuridade, suas ameias imponentes se sobressaíam. Essa figura produziu em mim, no claro crepúsculo, bem me recordo, dois diferentes ofegos de emoção, que foram, distintamente, o choque de minha primeira e o de minha segunda surpresa. Minha segunda foi uma percepção violenta do engano da minha primeira: o homem diante dos meus olhos não era a pessoa que eu precipitadamente supusera ser. A coisa chegou a mim num aturdimento de visão que mesmo hoje, depois de todos esses anos, não há visão alguma com que eu a possa comparar. Um homem desconhecido num lugar solitário é um objeto evidente de medo para uma jovem criada em casa; e a figura que me encarava era – em segundos tive certeza disso – como ninguém de cuja imagem me lembrasse. O próprio lugar, além disso, do modo mais estranho do mundo, tornou-se, num instante, devido à sua aparição, um grande ermo. Ao menos para mim que me esforço para contar a coisa com uma determinação que nunca tive, a sensação do momento me retorna inteira. Era como se, enquanto eu absorvia tudo – o que eu podia absorver – todo o resto do cenário estivesse ferido de morte. Ouço novamente, enquanto escrevo, a quietude intensa em que caíram os sons da noitinha. As gralhas pararam de grasnar no céu dourado e a hora perdeu, no ato, todo o seu murmúrio ameno. Mas não houve outra mudança na natureza, ao menos que fosse uma que via com estranha nitidez. O dourado ainda estava no céu, a clareza no ar, e o homem que olhava para mim de lá das ameias era tão definido quanto um quadro numa moldura. Pensei, com rapidez extraordinária, em cada pessoa que ele poderia ser e que não era. Confrontamo- nos na distância que estávamos tempo suficiente para eu me perguntar quem ele poderia ser e sentir, em consequência de minha incapacidade de encontrar uma resposta, um assombro que, instante após instante, ia se fazendo mais intenso.O grande problema, ou um deles, é, em relação a certas coisas, saber depois quanto tempo duraram. Bem, no meu caso, pensem os senhores o que quiserem, duraram enquanto eu revolvia um punhado de possibilidades, nenhuma das quais fazia muita diferença, de que havia ali na casa – e por quanto tempo, acima de tudo? – uma pessoa cuja existência eu ignorava. Duraram enquanto eu lidava com o pensamento de que meu trabalho exigia que não houvesse tal ignorância nem tal pessoa. Duraram enquanto esse visitante, em todo caso – e havia um toque de estranho à vontade, como lembro, no sinal familiar de ele não usar chapéu – pareceu fixar-me, lá de seu posto, com o mesmo questionamento, a mesma avaliação sob a luz crepuscular, que sua própria presença provocava. Estávamos distantes demais um do outro para nos falarmos, mas haveria um momento no qual, pela proximidade, alguma interpelação, quebrando o silêncio, seria o resultado inevitável de nossa troca direta de olhares. Ele estava num ângulo da torre que se distanciava da casa, muito ereto, o que chamava a minha atenção, com as duas mãos apoiadas no beiral. Via-o como vejo agora as letras que traço nesta página; então, exatamente, depois de um minuto, como se precisasse exibir-se, ele lentamente mudou de lugar – passou, sem deixar de olhar implacavelmente para mim, para o canto oposto da plataforma. Sim, tive a percepção mais aguda de que durante essa passagem, nunca tirou seus olhos de cima de mim, e posso ver neste momento o modo como sua mão, enquanto ele se ia, passava de uma das ameias à outra. Ele parou na outra extremidade, mas por tempo menor, e mesmo enquanto se afastava mantinha os olhos fixos em mim. Desapareceu; foi tudo que pude ver. CAPÍTULO 4 Não que eu não esperasse, naquela ocasião, ver ainda mais, porque me sentia tão assustada quanto resoluta. Haveria um “segredo” em Bly – um mistério de Udolfo[1] ou um demente, um parente não mencionado mantido em insuspeitado confinamento? Não sei dizer por quanto tempo pensei e pensei nisso, ou quanto tempo, numa confusão de curiosidade e medo, permaneci onde tinha tido aquele choque; lembro apenas que quando entrei na casa a escuridão já tomara conta. No intervalo, a agitação certamente se apossou de mim de tal modo que devo ter, em minhas voltas pelo lugar, perambulado o equivalente a umas três milhas; mais tarde eu ficaria tão mais esmagada pelas circunstâncias que aquele mero aflorar de um alarma pareceria uma emoção humana comum. A parte mais singular disso de fato – singular como o resto – foi a maneira como me portei, no hall, ao encontrar-me com a Senhora Grose. O quadro me retorna à memória no meio de toda a agitação – a impressão, como tive em minha volta, do amplo espaço revestido de branco, generosamente iluminado e com seus retratos e o tapete vermelho, e a boa aparência de surpresa de minha amiga, que imediatamente revelou ter sentido a minha falta. Percebi de imediato, em contato com ela, na sinceridade inequívoca, no alívio que meu aparecimento lhe deu, que ela não sabia de nada que pudesse ter relação com o incidente sobre o qual eu já estava pronta para lhe falar. Não supusera que seu rosto consolador me reanimaria, e de certo modo avaliei a importância do que vira pelo fato de então vacilar para relatá-lo. Nada nessa história toda me parece tão esquisito quanto o fato do começo do meu terror verdadeiro vir acompanhado de um desejo de poupar minha companheira. Assim, no agradável hall, tendo seus olhos sobre mim, eu, por alguma razão que não podia exprimir, realizei uma revolução interior – alegando um pretexto vago para minha demora e, com a desculpa da bela noite, do orvalho abundante e dos meus pés molhados, fui para meu quarto o mais rápido possível. Lá, as coisas mudaram de figura; lá, por muitos dias, o assunto reassumiu seu aspecto fora do comum. Dia após dia, deparava-me com horas – ou eram apenas momentos, roubados aos meus deveres comuns – em que precisava de isolamento para refletir melhor. No entanto, não era porque eu estivesse mais nervosa do que supunha, mas porque estava com um medo acentuado de ficar assim; porque a verdade com que eu tinha que lidar agora era, clara e simplesmente, a de que eu não podia chegar à conclusão alguma quanto à identidade do visitante com quem eu estivera de modo tão inexplicável e, como me parecia, tão íntimo, em contato. Levou pouco tempo para que eu percebesse que podia fazer uma inquirição discreta e sondar, sem alarde, alguma complicação doméstica. O choque que eu sofrera possivelmente aguçara todos os meus sentidos; ao cabo de três dias, como resultado de atenção redobrada, concluí com certeza que os criados não tinham me enganado nem pregado uma peça. Do que quer que eu tivesse visto, nada se sabia ao meu redor. Só se podia tirar uma dedução lógica: alguém tomara uma liberdade das mais grosseiras. Era isso que eu me dizia, repetidamente, ao mergulhar no meu quarto e trancar a porta. Tínhamos sido, coletivamente, devassados por um intruso; algum viajante inescrupuloso, curioso por velhas moradias, entrara sem ser notado, gozara o panorama de seu melhor ponto de observação e se evadira de modo tão furtivoquanto entrara. Se havia me lançado um olhar tão ousado e fixo, não era mais que parte de sua indiscrição. A boa coisa, no fim de tudo, era que nunca mais teríamos notícias dele. Mas não era coisa tão boa, admito, para me impedir de achar que era meu trabalho encantador que tornava tudo o mais tão desprovido de significado. Meu trabalho encantador era minha vida com Miles e Flora, e nada me fazia gostar tanto dele quanto a sensação de que me ajudaria a enfrentar qualquer problema. O atrativo da minha pequena missão era uma alegria constante, levando-me a pensar na inutilidade dos temores que tivera no início, do desgosto que sentira ao imaginar a provável monotonia do que seria meu ofício. Não havia monotonia e nem labuta; como poderia não ser encantadora uma tarefa que se apresentava como uma proposta diária de beleza? Era tudo que há de fantasia nos quartos de crianças e tudo que há de poético em suas salas de estudo. Não quero dizer com isso, claro, que estudávamos apenas fábula e poesia; quero dizer que não consigo expressar de outra maneira o tipo de interesse que meus companheiros me inspiravam. Como posso descrevê-lo exceto dizendo que ao invés de tornar-se um hábito – maravilha para uma preceptora: invoco a confraria para testemunhar! – eu era levada a fazer sempre novas descobertas. Havia, sem dúvida, uma direção, nas quais essas descobertas não iam além: aquela da obscuridade que pairava sobre a questão da conduta do menino no colégio. Prontamente, foi-me concedido encarar o mistério sem me angustiar. Talvez fosse mais verdadeiro dizer que – sem uma palavra – o próprio menino o esclareceu. Tornou a acusação inteiramente absurda. Minha conclusão floresceu com o rubor de sua inocência: ele era apenas bom e delicado demais para o pequeno, horrível e sujo mundo escolar, e pagara um preço por isso. Refleti agudamente que, por parte da maioria, a percepção de tais diferenças e qualidades superiores – e essa maioria pode incluir mesmo diretores estúpidos e sórdidos – resulta em vingança. Ambas as crianças tinham uma doçura (era sua única deficiência, mas isso nunca deixou Miles abobado) que os tornava – como dizê-lo? – quase impessoais e certamente fora da possibilidade de serem castigados. Eram como os querubins de anedota, que não tinham – moralmente, pelo menos – um lugar em que a gente pudesse aplicar umas palmadas. Lembro- me de sentir na presença de Miles em especial que ele, tal como se apresentava, parecia não ter tido uma história. De crianças em geral esperamos que tenham-na pouco, mas havia nesse belo menino alguma coisa extraordinariamente sensível, e, no entanto, extraordinariamente feliz, coisa que, mais que em qualquer outra criatura de sua idade que eu tenha conhecido, me atingia como se passasse por um renascimento diário. Não tinha sofrido por um momento sequer. Tomei esse fato como uma prova direta de que ele não tinha sido castigado. Se tivesse sido perverso, ele teria “pego” a coisa, e eu a pegaria pelo reflexo – eu teria encontrado algum sinal. Eu nada encontrava, e, portanto, ele era um anjo. Nunca falava de seu colégio, nunca mencionava um camarada ou um professor; e eu, de minha parte, estava desgostosa demais para aludir a eles. Claro que eu estava enfeitiçada, e a parte mais maravilhosa da história é que, mesmo naquele tempo, eu sabia perfeitamente disso. Mas eu me entregava ao feitiço; era um antídoto para qualquer sofrimento, e eu tinha vários. Naqueles dias, recebera cartas de casa, que me diziam que as coisas por lá não iam bem. Mas, com minhas crianças, que mais no mundo importava? Era a questão que eu me colocava nos fiapos de isolamento que conseguia. Eu estava ofuscada por sua beleza.Num certo domingo – para prosseguir – choveu com tal intensidade e por tantas horas que não pudemos seguir para a igreja; em consequência, como o dia ia se esvaindo, combinei com a Senhora Grose que, se à noitinha houvesse melhora, iríamos juntas para o ofício posterior. Felizmente, a chuva parou, e eu me preparei para a caminhada, que, através do parque e tomando a boa estrada para a aldeia, me tomaria uns vinte minutos. Descendo para encontrar minha companheira no hall, lembrei-me de um par de luvas que tinha precisado de remendos e os tinha recebido – com uma publicidade talvez pouco edificante – enquanto eu estava com as crianças num chá, servido aos domingos, em caráter excepcional, na sala de jantar dos “adultos”, que era um templo frio de mogno e bronze. As luvas tinham caído lá, e eu voltei para recuperá-las. O dia estava bem cinzento, mas a luz da tarde ainda resistia, o que me permitiu, ao cruzar a soleira, não apenas reconhecer numa cadeira perto da ampla janela, as coisas que fora buscar, mas também tomar consciência de uma pessoa que estava do outro lado da janela olhando para dentro. Bastou pisar no aposento; minha visão foi instantânea; tudo estava lá. A pessoa que olhava diretamente para dentro era aquela que me aparecera. Aparecia novamente não vou dizer com uma nitidez maior, porque era impossível, mas com uma proximidade que representava um avanço em nossa relação e me fazia, enquanto o olhava, prender minha respiração e gelar. Ele era o mesmo – era o mesmo, e visto, dessa vez, como fora visto na anterior, da cintura para a cima, porque a janela, embora a sala de jantar se situasse no térreo, não descia até o nível do terraço onde ele estava. Seu rosto estava encostado ao vidro, e no entanto o efeito dessa visão mais acurada foi, estranhamente, apenas me provar como tinha sido intensa a que tivera dele na primeira vez. Ficou ali por poucos segundos – que duraram o bastante para me convencer de que também tinha me visto e reconhecido; mas era como se eu o estivesse olhando há anos e o conhecesse desde sempre. Contudo, aconteceu dessa vez uma coisa que não acontecera anteriormente; seu olhar em meu rosto, varando o vidro e atravessando o aposento, foi tão profundo e implacável quanto naquela vez, mas desviou-se por um momento no qual ainda pude vê-lo fixando-se sucessivamente em várias outras coisas. Ali mesmo tive o choque adicional da certeza de que não era só por mim que viera. Viera para ver outra pessoa. O lampejo dessa consciência – porque era consciência no meio do pavor – produziu em mim o efeito mais extraordinário, provocando, enquanto eu ali estava, uma súbita reação de dever e coragem. Digo coragem porque eu estava, sem dúvida nenhuma, fora de mim. Rumei diretamente para fora, alcancei a porta da casa, subi, passando pelo terraço o mais rápido possível, e, dando a volta, observei o lugar todo. Mas foi uma observação de nada – meu visitante tinha desaparecido. Parei, quase desmaiei, com o alívio que isso me dava; mas queria estar ciente de tudo – dava-lhe tempo para reaparecer. Chamo a coisa de tempo, mas quanto durou? Não posso hoje falar logicamente da duração dessas coisas. Essa espécie de medida deve ter me abandonado: não podiam ter durado quanto na verdade me pareceram durar. O terraço e o lugar todo, o gramado e o jardim mais além, tudo que eu podia ver do parque, estavam vazios, de um vazio completo. Via os arbustos e as grandes árvores, mas me lembro de sentir com muita clareza que nenhum deles ocultava o homem. Estava ou não estava ali: não estava, se eu não o via. Agarrei-me a essa ideia; a seguir, instintivamente, ao invés de retornar do modo como tinha chegado, me aproximei da janela. Surgira-me confusamente aideia de que devia me colocar no mesmo lugar onde ele aparecera. Foi o que fiz; coloquei meu rosto no vidro e olhei, tal como ele tinha olhado, para dentro do aposento. Nesse exato momento, como se para me provar a extensão com que ele se aproximara, tal como eu fizera, a Senhora Grose entrou. Com isso tive uma imagem completa de uma repetição do que já ocorrera. Ele me viu como eu tinha visto meu visitante; deteve-se assustada, tal como eu me detivera; transferi a ela um pouco do choque que recebera. Ela empalideceu, e isso fez com que me perguntasse se eu teria ficado branca daquele mesmo jeito. Em resumo, arregalou os olhos e foi recuando bem do meu modo, e eu sabia que, dando a mesma volta que eu dera, viria ter até mim. Fiquei onde estava, pensando em muita coisa. Mas há apenas uma que quero mencionar. É eu ter perguntado a mim mesma por que ela também ficara assustada. [1] Referência a uma das obras-primas da literatura inglesa do século XVII, Os Mistérios de Udolfo, de autoria da escritora britânica Ann Ward Radcliffe (1764-1823), de caráter fantástico e um dos precursores do movimento gótico do século XIX, tendo influenciado toda uma geração de escritores, entre eles Edgar Allan Poe. (N. T.) CAPÍTULO 5 Oh, fiquei sabendo assim que, tendo contornado a casa, ela apareceu. “Em nome de Deus, o que aconteceu?” Ela avermelhara e perdera o fôlego. Não disse nada até que ela se aproximou bastante de mim. “Comigo?”. Devo ter feito uma grande cara. “Estou demonstrando?”. “A senhorita está branca como uma folha. Está medonha.” Refleti; diante da situação, podia encarar qualquer inocência sem nenhum escrúpulo. Minha necessidade de respeitar a pureza da Senhora Grose já saíra dos meus ombros, e se hesitei naquele instante, não foi em razão do que tinha a lhe revelar. Estendi-lhe a minha mão e ela a tomou; abracei-a com força por um momento, gostando de senti-la bem pertinho. Havia uma espécie de amparo no tímido arfar de sua surpresa. “Na certa a senhora veio me apanhar para ir à igreja, mas não posso.” “Aconteceu alguma coisa?”. “Sim. A senhora vai saber. Eu estava muito esquisita?” “Lá na janela? Pavorosa!” “Bom”, disse, “Eu fiquei apavorada”. Os olhos da Senhora Grose diziam com simplicidade que isso ela não queria ficar, mas que sabia muito bem sua obrigação de subalterna para não estar pronta para compartilhar comigo qualquer inconveniência. Oh, estava bem evidente que ela teria que compartilhar! “O que a senhora viu há um minuto atrás na sala de jantar foi um efeito disso. O que eu vi – um pouquinho antes – foi muito pior”. Sua mão me apertou. “O que foi?” “Um homem extraordinário. Olhando para dentro.” “Que homem extraordinário era esse?” “Não tenho a menor ideia.” A Senhora Grose lançou olhares ao redor inutilmente. “Então, aonde ele foi parar?” “Sei menos ainda.” “A senhorita já o tinha visto?” “Sim – uma vez. Na velha torre.” Ela só conseguia me olhar com mais força. “Quer dizer que é um desconhecido?” “Completamente.” “Mesmo assim, não me contou?” “Não. Tinha motivos para não falar. Mas agora que a senhora está sabendo...” Os olhos da Senhora Grose mediram essa responsabilidade. “Ah, não sei não!”, ela disse com simplicidade. “O que eu é que eu poderia saber, se nem a senhorita tem uma ideia?”.“Não tenho ideia, mesmo.” “A senhorita só o viu lá na torre?” “E aqui mesmo, agora há pouco.” A Senhora Grose olhou ao redor novamente. “O que ele estava fazendo na torre?” “Ele só estava lá, e ficou me olhando.” Ela pensou um pouco. “Era um cavalheiro?” Achei que não tinha que pensar. “Não.” Ela olhou-me com um espanto maior. “Não.”. “Não era ninguém daqui? Ninguém da aldeia?” “Ninguém – ninguém. Eu não lhe disse, mas averiguei.” Suspirou, com um alívio vago: isso era, estranhamente, um pouco melhor. Mas, não adiantava muito. “Mas, se não é um cavalheiro...” “O que ele é ? Um horror.” “Um horror?” “Ele – Deus me ajude se eu lá sei o que ele é!” A Senhora Grose olhou ao redor mais uma vez; fixou seus olhos na distância escurecida, e, reanimando-se, voltou-se para mim com uma inconsequência repentina. “É hora de a gente estar na igreja.” “Oh, não tenho vontade de ir!” “Não vai lhe fazer bem?” “Não faria bem a eles.” – Fiz um sinal com a cabeça na direção da casa. “As crianças?” “Não posso deixá-las aqui, agora.” “A senhorita tem medo... ?” Disse com audácia. “Tenho medo dele.” O rosto amplo da Senhora Grose mostrou-me, diante do pronunciado, pela primeira vez, o brilho distante de um reconhecimento que começava a se delinear; disso percebi que nascia nela uma ideia que eu não lhe tinha dado e que era ainda obscura para mim. Recordo agora que pensei naquilo como se fosse uma coisa que ela poderia me revelar; senti que essa coisa estava ligada com a vontade que ela demonstrava agora de saber mais. “Quando foi que o encontro aconteceu – lá na torre?” “No meio deste mês. Nesta mesma hora.” “Quase de noite.”, disse a Senhora Grose. “Oh não, não muito. Vi o homem como vejo a senhora neste momento.” “Então, como foi que ele entrou?”“E como foi que saiu?”, eu dei uma risada. “Não tive chance de perguntar! Na tarde de hoje”, prossegui, “ele não conseguiu entrar.” “Ele fica só olhando?” “Espero que fique só nisso!” Ela agora tinha soltado a minha mão; afastou-se um pouco. Esperei um instante; depois, exclamei: “Vá para a igreja. Adeus. Preciso ficar aqui, vigiando” Ela encarou-me lentamente. “Teme pelas crianças?” Trocamos um longo olhar. “E a senhora não?” Em vez de responder, ela se aproximou da janela e, por um minuto, colocou seu rosto contra o vidro. “A senhora está vendo como ele me via”, fui dizendo. Ela não se movia. “Quanto tempo ele ficou aqui?” “Até que eu saí. Saí para encontrá-lo.” A Senhora Grose por fim se virou, e havia um interesse maior em seu rosto. “Eu não ia conseguir sair e vir para cá.” “Nem eu!”, ri novamente. “Mas, vim. Sei o meu dever.” “Eu também sei o meu”, ela respondeu; e acrescentou: “Como ele é?“ “Morro de vontade de descrevê-lo. Mas não se parece com ninguém.” “Ninguém?”, repetiu. “Ele não usa chapéu.” Vendo então em seu rosto que, a esta afirmação, ela já ia, com uma consternação maior, formando o quadro de uma pessoa, eu rapidamente acrescentei pincelada depois de pincelada. “Ele tem cabelo ruivo, bem ruivo e crespo, e um rosto pálido, alongado, com feições regulares, e suíças curtas, esquisitas, tão ruivas como o cabelo. As sobrancelhas são um pouquinho mais escuras; parecem particularmente arqueadas, como que dotadas de boa capacidade de movimento. Seus olhos são penetrantes, estranhos – de um modo medonho; mas só sei com clareza que eles são pequenos e muito fixos. A boca é larga, e os lábios são finos, e, a não ser pelas suíças curtas, ele é bem barbeado. Me deu a impressão de parecer-se com um ator.” “Um ator!” Era impossível relembrar qualquer coisa parecida a um ator na fisionomia da Senhora Grose nesse momento. “Nunca vi nenhum, mas é mais ou menos assim que os imagino. Ele é alto, elegante, ereto”, eu continuei, “mas nunca – nunca mesmo! – um cavalheiro.” O rosto de minha companheira tinha empalidecido à medida que eu falava; ela dava piscadelas de nervosismo e sua boca estava aberta. “Um cavalheiro?”, balbuciou, confusa, estupefata: “um cavalheiro, ele?” “Então, você o conhece?” Ela tentava visivelmente controlar-se. “Mas, ele é bonito?”Vi o meio de ajudá-la. “Muito bonito, sim.” “E vestido...?” “Com roupas dos outros. São apropriadas, mas não são dele.” Ela emitiu, sem fôlego, um gemido afirmativo. “São do patrão!” Tirei proveito. “Você o conhece?” Vacilou um instante. “Quint!”, exclamou. “Quint?” “Peter Quint – seu criado de quarto, quando ele estava aqui.” “Quando o patrão estava aqui?” Ainda balbuciando, mas recomposta, ela juntou todas as peças. “Nunca usou seu chapéu, mas usou – bom, demos por falta de vários coletes! Os dois estavam aqui – no ano passado. Aí, o patrão foi-se embora, e Quint ficou sozinho.” Seguia suas palavras, mas fraquejava um pouco. “Sozinho?” “Sozinho com a gente”. E acrescentou, como se isso lhe viesse de uma profundeza ainda mais profunda, “Como mordomo.” “E que foi feito dele?” Ela demorou tanto a responder que fiquei ainda mais intrigada. “Ele também se foi”, disse por fim. “Foi para onde?” Sua expressão, nesse momento, tornou-se extraordinária. “Só Deus sabe! Ele morreu.” “Morreu?”, eu quase gritei. Ela pareceu decidida a ser bem resoluta, a ficar bem firme para revelar a coisa espantosa. “Sim. O Senhor Quint morreu.” CAPÍTULO 6 Foi necessária mais de uma passagem como essa para colocar-nos em face daquilo com que tínhamos agora que conviver – minha terrível suscetibilidade a impressões do tipo de que tivéramos tão vívido exemplo, e, por conseguinte, o conhecimento – metade consternação metade compaixão – que minha companheira tinha dessa suscetibilidade. Houve, naquela noite, depois da revelação que me deixara prostrada por uma hora, uma suspensão da ida à igreja para restar apenas um ofício de lágrimas e votos, de rezas e promessas, culminância de juras e compromissos mútuos que fizemos ao nos recolhermos à sala de estudos onde nos trancamos para pôr o caso em claro. O resultado de nossa tentativa de esclarecimento foi simplesmente o de reduzir a nossa situação a seus elementos mais básicos e precisos. Ela própria nada vira, nem a sombra de uma sombra, e ninguém mais na casa passava pelos apuros exclusivos da preceptora; no entanto, ela aceitou, sem diretamente me acusar de falta de sanidade mental, a verdade tal como eu lhe apresentara, e terminou por me mostrar, nesse terreno, uma ternura apreensiva, uma compreensão do meu mais que duvidoso privilégio, das quais a simples lembrança permaneceu comigo como a mais doce das compaixões humanas. O que ficou combinado entre nós, em virtude disso, naquela noite, foi que teríamos que enfrentar as coisas juntas; e eu nem estava certa se não caberia a ela, apesar de sua isenção, a parte mais pesada do encargo. Eu sabia naquele momento, acho, como sabia depois, o que seria capaz de desafiar a fim de proteger meus alunos; mas demorei mais para ficar completamente certa de que minha honesta parceira estaria preparada para honrar um contrato tão difícil. Eu era uma companhia bem estranha – tal como a minha companheira; mas à medida que vou relembrando aquilo por que passamos, vejo quanto em comum encontramos na única ideia que, por sorte, podia firmar-nos. Era a ideia, o segundo movimento, que me lançou, por assim dizer, para fora da câmara privada do meu terror. Eu podia respirar ar livre do lado de fora, pelo menos, e a Senhora Grose estaria lá, me acompanhando. Recordo agora perfeitamente o modo peculiar pelo qual a minha força me voltou antes que nos despedíssemos naquela noite. Tínhamos repassado várias vezes cada detalhe daquilo que eu vira. “Disse que ele estava procurando alguém – alguém que não era a senhorita?” “Ele estava procurando o pequeno Miles.” Uma clareza poderosa tomara conta de mim. “Era ele que o homem estava procurando.” “Mas, como a senhorita sabe disso?” “Eu sei, eu sei, eu sei!”. Minha exaltação crescia. “E você sabe, minha cara!” Ela não o negou, mas eu não precisava mais que isso. Prosseguiu, depois de considerar: “O que aconteceria se ele o visse?” “O pequeno Miles? É bem o que ele quer!” Ela pareceu de novo muito assustada. “O menino?”“Que Deus não permita! O homem. Quer aparecer para eles.” Que ele pudesse fazê-lo era uma ideia tenebrosa, e, no entanto, eu conseguiria evitá- lo; foi o que consegui praticamente provar, enquanto estendíamos nossa conversa. Tinha certeza absoluta de que veria novamente o que já vira, mas algo em mim dizia que me oferecendo corajosamente como o único objeto dessa experiência, aceitando-a, desafiando-a, superando-a, valeria como bode expiatório e garantiria a tranquilidade de meus companheiros. As crianças, em particular, eu daria um jeito de defendê-las e faria de tudo para poupá-las. Recordo uma das últimas coisas que disse naquela noite para a Senhora Grose. “Me intriga que meus alunos nunca tenham mencionado...“ Ela olhou-me fixamente enquanto eu refletia. “Que ele esteve aqui e o período que passaram com ele?” “O período que passaram com ele, e o nome, a presença, a história dele, de modo nenhum.” “Oh, a menina não recorda. Nunca soube nada.” “Sobre a morte dele?”, refleti com certa intensidade. “Ela não. Mas Miles pode se lembrar – ele deve saber.” “Ah, não pergunte nada a ele!”, a Senhora Grose rogou. Devolvi-lhe o olhar que me lançara. “Não precisa ter medo”. Continuei a refletir. “É uma coisa meio esquisita”. “Que ele nunca tenha falado do homem?” “Nunca fez a mínima alusão. E a senhora me garante que eles eram ‘grandes amigos’?” “Oh, mas não era coisa de Miles!”, a Senhora Grose declarou enfaticamente. “Era lá da cabeça do Quint. Brincar com ele, digo – mimá-lo”. Fez uma pausa; acrescentou: “Quint era muito abusado.” A afirmação me deu, ao lembrar a minha visão do rosto dele – ah, que rosto! – um súbito revolto de desgosto. “Abusado com meu menino?” “Abusado demais com todo mundo!” Não analisei no momento essa descrição, levando em conta o fato de que poderia aplicar-se aos vários membros da casa, à meia dúzia de criadas e criados que ainda pertenciam à nossa pequena colônia. Mas, para amenizar a nossa apreensão, havia o fato feliz de que nenhum boato, nenhum mexerico de cozinha, na memória de todos, brotara desse velho e plácido casarão. Não tinha nome duvidoso nem má fama, e a Senhora Grose, pelo jeito, queria apenas agarrar-se a mim e tremer silenciosamente. Como recurso derradeiro, ainda a submeti a um teste. Foi quando, à meia-noite, ela já estava com a mão à porta da sala de estudos pronta para sair. “Então, posso ficar certa – é de grande importância para mim - que o indivíduo era reconhecidamente mau?” “Oh, não era de conhecimento geral. Eu sabia – mas o patrão, não.”“E a senhora nunca lhe contou?” “Bem, ele não gostava de mexericos – ele odiava reclamações. Era muito seco com coisas desse tipo, e se as pessoas eram boas para ele...” “Não se importaria com o resto?”. Isso combinava muito bem com a impressão que eu tivera dele: não era dado a enfrentar problemas, nem exigia muito talvez das companhias que ele escolhia. Apesar disso, dei um aperto em minha interlocutora. “Pois afirmo que eu teria contado!” Ela sentiu minha discriminação. “Reconheço que estava errada. Mas, é que eu tinha medo” “Medo de quê?” “Medo do que aquele homem poderia me fazer. Quint era tão inteligente – era tão penetrante!” Senti o impacto dessa afirmação mais do que provavelmente demonstrei. “Não sentia medo de outras coisas? Da influência dele... ?” “Influência dele?”, repetiu com uma expressão de angústia e expectativa enquanto eu hesitava. “Sobre os nossos preciosos inocentes. Eles estavam sob sua responsabilidade.” “Não, não sob a minha!”, ela respondeu decidida e aflitivamente. “O patrão confiava nele e deixou-o aqui porque ele não andava bem de saúde e supunha que o ar do campo podia lhe trazer melhora. Assim, ele podia dizer tudo que quisesse. Sim,” – ela confessou – “até sobre eles.” “Sobre eles – aquela criatura?”, tive que reprimir um gemido desesperado. “E a senhora suportava isso?” “Não, não suportava – e ainda não suporto!” E a pobre mulher rompeu em lágrimas. Um controle rigoroso, a partir do dia seguinte, haveria de ser seguido na vigilância das crianças; contudo, quantas vezes e com que paixão, ao longo da semana, não voltamos as duas a abordar o assunto! Por muito que tivéssemos discutido naquela noite de Domingo, fiquei, principalmente nas horas que se seguiram – porque pode-se imaginar que mal dormi – ainda obcecada pela sombra de alguma coisa que ela não tinha me contado. Eu não fizera reserva sobre nada, mas havia algo que a Senhora Grose me escondera. Ademais, pela manhã, tive a certeza de que ela o fizera não por falta de franqueza, mas porque havia medos em todos os lados. De fato, em retrospecto, parece-me que, quando o sol da manhã ia alto, eu já tinha nervosamente lido nos fatos que se apresentavam a nós todo o significado que eles assumiriam nos acontecimentos mais cruéis que se seguiram. O que me revelavam era acima de tudo a exata figura do homem vivo – o morto podia esperar um pouco! – e os meses que ele tinha passado em Bly, os quais, somados, formavam um período consideravelmente extenso. A conclusão dessa época ruim se deu apenas quando, no raiar de uma manhã de inverno, Peter Quint foi achado, por um trabalhador que saía para a tarefa matinal, rigidamente morto naestrada da aldeia: uma catástrofe explicada – ao menos superficialmente – por um ferimento visível que trazia na cabeça; tal ferimento bem podia ter sido causado – e, numa avaliação final, tinha sido – pelo fato de, no escuro em que mergulhara depois de deixar uma taverna, ter pegado o caminho errado, deparando-se com uma ladeira coberta de gelo traiçoeiro, ao pé da qual seu corpo jazia. A ladeira de gelo escorregadio, o desvio enganoso no escuro e a bebida contavam muito – praticamente, no fim do inquérito e dos mexericos desencontrados, explicavam tudo; mas havia questões em sua vida – passagens e perigos estranhos, desordens secretas, vícios mais que suspeitos – que teriam revelado muita coisa mais. Mal sei como colocar a minha história em palavras que possam ser uma pintura crível do meu estado de espírito; mas eu estava naqueles dias literalmente disposta a encontrar alegria no extraordinário arroubo de heroísmo que a ocasião exigia de mim. Vejo agora que tinha sido solicitada a fazer um trabalho admirável e difícil; e haveria uma grandeza em deixar bem à vista – oh, pelo ângulo mais apropriado! – que eu poderia me sair bem onde outras moças tinham fracassado. Era uma imensa ajuda para mim – confesso que devo aplaudir-me nessa visão em retrospecto! – que eu visse meu trabalho com tanta firmeza e simplicidade. Eu lá estava para proteger e defender as pequenas criaturas mais desamparadas e graciosas do mundo e o apelo de seu desamparo tornou-se subitamente muito mais explícito, afetando-me o coração com um sofrimento profundo e constante. Estávamos juntos naquele isolamento; estávamos unidos pelo perigo. Eles não tinham ninguém além de mim, e eu – bem, eu tinha a eles. Era, em suma, uma oportunidade magnífica. Essa oportunidade se apresentava a mim numa imagem ricamente literal. Eu era um biombo – devia ficar diante deles. Quanto mais eu visse, menos eles veriam. Passei a vigiá-los numa ansiedade abafada, numa expectativa dissimulada que poderia, se continuasse por muito tempo, ter-se tornado algo como a loucura. O que me salvou, vejo agora, foi que as coisas tomaram outro rumo. Não duraram enquanto ansiedade – foram suplantadas por provas horríveis. Provas, sim digo surgidas no momento em que pude me dar conta de tudo. O momento data de uma certa hora da tarde que eu costumava passar nos arredores com o mais jovem de meus alunos. Deixáramos Miles sozinho na casa, estendido lá numa almofada no vão de uma ampla janela; manifestara desejo de finalizar a leitura de um livro, e eu ficara feliz de encorajar esse propósito num rapazinho cujo único defeito era ser, às vezes, ativo em excesso. Sua irmã, ao contrário, se dispusera prontamente a sair, e eu passeei com ela por mais ou menos uma hora, procurando a sombra, porque o sol ia alto e o dia estava anormalmente calorento. Enquanto andávamos, tive de novo a consciência de como, tal o irmão, ela conseguia – e isso era a coisa especial dessas crianças – deixar-me sozinha sem parecer que me abandonava e acompanhar-me sem que isso parecesse assédio. Não eram nunca importunos, mas tampouco eram ausentes. Minha vigilância a eles limitava-se a observá-los divertirem-se à larga sem mim: isso era um espetáculo que pareciam preparar ativamente e que me requeria como admiradora. Eu entrava num mundo de sua invenção – eles não tinham tempo de ficar recorrendo à minha; assim, meu tempo era tomado com ser, para eles, alguma coisa ou pessoa notável que a brincadeira de um dado momento requeria e que era, devido à minha posição superior, uma privilegiada, elevada e honrosa sinecura. Esqueço-me o que representava naquela vez; recordo apenas que eu era alguma coisa muitoimportante e silenciosa e que Flora brincava com muito empenho. Estávamos à beira de um lago, e, como tínhamos há pouco começado a estudar geografia, o lago passara a ser o Mar de Azov. Nessas circunstâncias, de repente, tornei-me consciente de que, da outra margem do Mar de Azov, tínhamos ambas um espectador interessado. A maneira com que essa percepção chegou a mim foi a mais estranha do mundo – mas não mais estranha que a certeza em que rapidamente se transformou. Eu tinha me sentado com algum pedaço de trabalho de costura na mão – porque fazia o papel de um ou outro alguém que podia sentar-se – num velho banco de pedra que ficava diante do lago: e nessa posição eu comecei a sentir com segurança, embora sem contar com uma visão direta, a presença, a uma certa distância, de uma pessoa. As velhas árvores, o espesso matagal, faziam uma grande e agradável sombra, mas tudo estava difuso sob a claridade da hora quente e tranquila. Não havia ambiguidade em nada; nenhuma, pelo menos, na convicção que me vi formando, de um momento para outro, de que eu veria algo bem diante de mim do outro lado do lago em consequência de erguer meus olhos, se o fizesse. Nesse momento, eles estavam presos à costura com a qual eu estava ocupada, e posso sentir novamente agora o espasmo do meu esforço para não tirá-los dali enquanto não me sentisse firme para tomar uma decisão a respeito. Havia um objeto anormal à vista – uma figura cujo direito de estar em nossa presença eu questionei instantânea e apaixonadamente. Recordo que considerei as hipóteses, dizendo a mim mesma que nada era mais natural que, por exemplo, aparecer ali um dos homens do lugar, ou mesmo um mensageiro, um carteiro ou um entregador de mercadorias da aldeia. Esse pensamento teve pouco efeito sobre a convicção real que se formara em mim – mesmo sem olhar – sobre o caráter e a atitude de nosso visitante. Nada mais natural que a coisa fosse justamente o que as outras de modo algum o eram. Da identidade precisa da aparição eu me asseguraria assim que o pequeno relógio de minha coragem marcasse o instante propício; enquanto isso não acontecia, com um esforço que era bastante agudo, transferi meus olhos para a pequena Flora, que estava, no momento, a uns dez passos de mim. Meu coração parou por um momento quando me interroguei com espanto e terror se ela também não estaria vendo; prendi a respiração esperando dela algum grito, algum súbito sinal inocente de interesse ou de susto, mas nada veio; então, primeiro – e há nisso algo mais medonho que no resto que tenho que relatar – fui tomada pela sensação de que, naquele minuto, ela tinha parado de fazer qualquer ruído; segundo, pela sensação de que, naquele mesmo minuto, ela tinha dado as costas para a água, continuando sua brincadeira. Essa foi sua atitude quando por fim a olhei – olhei para ela com a convicção firme de que estávamos ambas, ainda, debaixo de um olhar pessoalmente interessado. Ela pegou um pedaço de madeira chata, no qual havia um pequeno orifício que naturalmente sugerira a ela a ideia de ali enfiar outro pedaço que podia representar um mastro, fazendo do conjunto um barco. Nesse átimo de segundo, enquanto a olhava, ela estava muito concentrada em tentar colocá-lo no lugar. Minha percepção do que ela estava fazendo me amparou por alguns segundos, até que me senti pronta para o que viesse. Então, ergui meus olhos de novo – e encarei o que tinha de encarar. CAPÍTULO 7 Lancei-me sobre a Senhora Grose tão logo que pude, depois disso; e não posso exprimir de maneira inteligível o quanto sofri nesse intervalo. Ainda ouço meu grito ao atirar- me em seus braços: “Eles sabem – é monstruoso demais: eles sabem, eles sabem!”. “Mas o quê, pelo amor de Deus...?”, senti a sua incredulidade enquanto me abraçava. “Sabem tudo que nós sabemos – e sabe Deus que mais!” Então, enquanto ela me soltava de seus braços, relatei-lhe tudo, num relato que talvez apenas nesse momento teve completa coerência até para mim mesma. “Há duas horas atrás, no jardim” – eu mal podia me articular – “Flora viu!” A Senhora Grose recebeu essa afirmação como se tivesse levado um soco no estômago. “Ela contou à senhorita?”, perguntou, angustiada. “Nem uma palavra – e isso é que é horrível. Ela guardou para ela! Uma criança de oito anos, e que criança!” A estupefação da coisa ainda escapava à minha capacidade de expressão. A Senhora Grose, naturalmente, podia apenas ficar cada vez mais boquiaberta. “Então, como é que a senhorita sabe?” “Eu estava lá – vi com meus olhos: vi que ela sabia perfeitamente.” “Sabia da presença dele?» “Não – da presença dela.” Eu sabia que falava de coisas as mais estranhas, porque percebia o lento reflexo delas sobre o rosto de minha companheira. “Uma outra pessoa – desta vez; mas, uma figura tão horrível e monstruosa quanto a primeira: uma mulher de preto, lívida e assustadora – com um jeito, com uma cara! – na outra margem do lago. Eu estava lá com a menina – e estávamos tranquilas; nesse momento, ela veio.” “Veio como – veio de onde?” “Do lugar de onde eles vêm! Ela apenas apareceu e ficou lá – mas não muito perto.” “E não se aproximou?” “Oh, mas causava o efeito e dava a sensação de estar tão perto quanto a senhora neste instante!” Minha amiga, num estranho impulso, recuou um passo. “Era alguém que a senhorita nunca viu?” “Sim. Mas era alguém que a menina conhecia. Alguém que a senhora conhecia.” Então eu disse, para mostrar o quanto havia refletido sobre o assunto: “Minha antecessora – a moça que morreu.” “A Senhorita Jessel?” “A Senhorita Jessel. Não acredita em mim?”, insisti. Em sua aflição, ela se virava de um lado para outro. “Como a senhorita pode tercerteza?” A pergunta arrancou de mim, devido ao meu nervosismo, uma explosão de impaciência. “Então pergunte à Flora – ela tem certeza!” Mas, mal tinha falado isso, recuperei- me. “Não, pelo amor de Deus, não! Ela responderá que não – ela mentirá!” A Senhora Grose não estava tão aturdida que não protestasse instintivamente. “Ah, como é que a senhorita sabe?” “Porque estou bem certa. Flora não quer que eu saiba.” “Deve ser para poupá-la, então.” “Não, não – há funduras e funduras nisso! Quanto mais avanço, mais vejo, e, quanto mais vejo, mais temo. Não sei o que não veja – o que não tema!” A Senhora Grose procurava seguir meus raciocínios. “Quer dizer que teme ver a mulher novamente?” “Oh, não; isso é o mesmo que nada – agora!” Eu expliquei. “O que temo é não poder vê-la.” Mas minha companheira parecia apenas pálida. “Eu não entendo a senhorita.” “Bem, temo que a menina a veja– e ela certamente pode fazê-lo – sem que eu o saiba.” Diante da pintura dessa possibilidade a Senhora Grose quase desmaiou, mas logo se recompôs, como se tirasse forças de algo que lhe dizia que, se recuássemos uns passos que fossem, o pior aconteceria. “Querida, querida, não vamos perder a cabeça! Afinal, a menina não se importa...!” Ainda tentou fazer uma piadinha lúgubre. “Talvez ela até goste!” “Gostar de tais coisas – aquele pedacinho de gente!” “Isso não é bem a prova de sua abençoada inocência?”, minha amiga corajosamente perguntou. Por um instante, aquilo quase me convenceu. “Oh, devemos nos agarrar a isso – decididamente! Se não é prova do que a senhora disse, é prova de Deus sabe o quê! Porque a mulher é o horror dos horrores.” A Senhora Grose, ouvindo isso, fixou seus olhos no chão por um minuto; depois, ergueu-os. “Diga-me como é que sabe”, falou. “Então, admite que era isso que ela era?”, perguntei. “Diga-me como é que sabe”, minha amiga simplesmente repetiu. “Como é que sei? Pelo que vi! Pelo que ela mostrava.” “Quer dizer que ela a encarava tão feio assim? ” “Não me encarava – eu até teria suportado. Não me deu nem um relance de olhar. Fitava apenas a menina.” A Senhora Grose tentava visualizar a coisa. “Fitava?”“Ah, com uns olhos tão medonhos!” Ela olhou para os meus como se pudessem evocar aqueles aos quais me referia. “Quer dizer, olhos de aversão?” “Deus nos proteja. De algo bem pior.” “Pior que aversão?” – isso a deixou perdida. “Com uma determinação – indescritível. Com uma intenção furiosa.” Ela empalideceu. “Intenção?” “De agarrar a menina.” A Senhora Grose – com seus olhos detidos nos meus – teve um estremecimento e afastou-se em direção à janela; enquanto ficou ali, olhando para fora, completei meu esclarecimento. “É isso que Flora sabe.” Pouco depois, ela virou-se. “A pessoa estava de preto, como disse?” “De luto – meio pobre, quase maltrapilha. Mas – sim – tinha grande beleza.” Eu agora reconhecia até onde tinha levado, golpe após golpe, a vítima de minha confidência, porque ela visivelmente pesava cada detalhe. “Oh, bonita – muito, muito”, eu insisti; “maravilhosamente bonita. Mas infame.” Ela voltou-se lentamente para mim. “A Senhorita Jessel – era infame.” Mais uma vez colocou minha mão entre as suas, apertando-as como se o gesto me pudesse fortalecer contra o acréscimo de inquietação que suas revelações me provocariam. “Os dois eram infames”, disse, por fim. Por um momento, voltávamos a analisar juntas a questão; e encontrei alívio em poder encará-la agora tão diretamente. “Admiro a sua grande decência em não haver falado até agora; mas chegou a hora de me contar tudo”, disse. Ela pareceu aquiescer, mas manteve-se em silêncio; vendo isso, continuei: “Preciso saber agora. De que ela morreu? Vamos, alguma coisa havia entre eles.” “Não havia alguma coisa. Havia tudo.” “Apesar da diferença...?” “Sim. Apesar da diferença de classe, de posição” – ela afirmou, pesarosamente. “Ela era uma dama.” Lembrei do que ocorrera; revi a mulher. “Sim – ela era uma dama.” “E ele tão terrivelmente inferior”, disse a Senhora Grose. Senti que não devia, na sua companhia, pressioná-la demais sobre o lugar de um criado na hierarquia; mas não via nada que me impedisse de aceitar a avaliação de minha companheira sobre o rebaixamento de minha antecessora. Havia um meio apropriado de lidar com o assunto, e eu o adotei; tinha claro à minha frente – como uma evidência – o falecido criado do nosso patrão, inteligente, bonito; e também despudorado, seguro de si, mimado, depravado. “O sujeito era um cão”.A Senhora Grose considerou o caso como se fosse talvez uma questão de matizes. “Nunca vi um indivíduo como ele. Fazia o que queria.” “Com ela?” “Com todos.” Era como se agora a própria Senhorita Jessel tivesse aparecido diante de minha amiga. Por um instante, julguei perceber, na sua evocação, a mulher que eu vira lá no lago; e declarei, decididamente: “Devia ser também o que ela queria!” No rosto da Senhora Grose lia-se que era bem essa a verdade, mas ela afirmou ao mesmo tempo: “Pobre mulher – pagou caro por isso!” “Então, a Senhora sabe do que ela morreu?”, perguntei. “Não – não sei nada. Eu não queria saber; ficava feliz por não saber; agradeci aos céus por ela ter saído daqui!” “Mesmo assim, a Senhora fazia uma ideia...” “Da verdadeira razão da partida? Quanto a isso, sim. Não podia ter ficado. Imagine acontecer uma coisa dessas aqui – com uma preceptora! E depois imaginei – e ainda imagino coisas. E o que eu imagino é horroroso.” “Mas não tão horroroso como o que eu imagino”, repliquei; com esta réplica, devo ter-lhe demonstrado – pois estava muito convicta – um ar miserável de derrota. Esse ar despertou de novo toda a sua compaixão por mim, e, ao toque renovado de sua doçura, meu esforço por resistir se esboroou; rompi em lágrimas, tal como a fizera, em outra ocasião, romper; ela me tomou em seu peito maternal, e meus lamentos transbordaram. “Não vou conseguir!”, solucei, em desespero; “Não vou conseguir salvá-las nem protegê-las! É muito pior do que tudo que já pensei – as crianças estão perdidas!” CAPÍTULO 8 O que eu dissera à Senhora Grose era bastante verdadeiro: havia no assunto que eu lhe expusera profundezas e possibilidades que eu não me sentia capaz de sondar; de tal modo que quando o abordamos novamente, achamos que era nosso dever comum resistir às fantasias extravagantes. Na falta de outra coisa, que mantivéssemos pelo menos a cabeça fria – por difícil que fosse fazê-lo diante de algo que, em nossa experiência fora do comum, já era inquestionável. No adiantado das horas daquela noite, enquanto a casa dormia, tivemos outra conversa em meu quarto; na ocasião, ela concordou comigo, acima de qualquer dúvida, em que eu tinha visto exatamente o que tinha visto. Para mantê-la em sintonia, achei que apenas tinha de lhe perguntar como, se eu tivesse “inventado”, poderia dar, de cada uma das pessoas que me aparecera, uma pintura detalhada, relatando suas características precisas – um quadro diante do qual ela imediatamente fizera o reconhecimento e dera nomes. Ela queria, naturalmente – e não se pode censurá-la por isso! – ignorar o assunto por completo; e eu fui rápida em assegurá-la que meu próprio interesse no caso tinha tomado a forma de achar um modo de me livrar daquilo. Chegamos a um acordo no ponto de que havia a probabilidade de que, com o hábito – porque tínhamos como o certo que se tornaria um hábito – eu poderia ficar acostumada, insensível ao meu perigo; e declarei que minha exposição pessoal a esse tinha se tornado a menor de minhas preocupações. O intolerável, realmente, era a minha nova suspeita; e mesmo a essa complicação as últimas horas do dia tinham trazido algum alívio. Deixando-a, depois do meu primeiro desabafo, eu naturalmente retornara aos meus alunos, achando o remédio certo para meu desalento naquele encantamento que vinha deles que eu já considerava ser a coisa que eu podia serenamente cultivar e que ainda não me tinha falhado nenhuma vez. Em outras palavras, eu simplesmente remergulhava no convívio todo especial com Flora e com isso ficava consciente – o que era quase um luxo! – de que ela podia colocar sua mãozinha cuidadosa sobre o lugar onde eu me achava ferida. Olhara-me numa doce tentativa de adivinhar o que acontecia e me acusara de ter “chorado”. Supunha ter varrido do meu rosto esses feios sinais; mas, naquele momento, chegava a ficar feliz, diante dessa insondável caridade, por eles não terem desaparecido. Olhar para as profundezas do azul daqueles olhos e concluir que um tal encanto não passava de um truque de astúcia precoce faria com que eu me sentisse cínica e eu preferia renunciar a um julgamento desse tipo, escapando também à agitação que ele me traria. Não podia renunciar apenas por querer, mas podia repetir à Senhora Grose – como o fizera várias vezes, nas horas mortas da noite passada – que, com suas vozes pelo ar, seus corpos juntos a meu peito e seus rostos perfumados colados ao meu, tudo ruía, exceto o seu comovente desamparo e sua beleza. Era uma pena que, de um modo ou outro, para resolver o assunto, eu tivesse também que reenumerar os sinais de esperteza que na malfadada tarde, perto do lago, fizeram-me dar um espetáculo miraculoso de autocontrole. Era uma pena ser obrigada a reinvestigar a certeza daquele próprio momento e repetir a mim mesma a revelação de que aquela comunicação inconcebível que eu surpreendera não passava, para ambas as partes, de um hábito corriqueiro. Era uma lástima que eu tivesse que repensar as razões que não me permitiram duvidar que a menina tinha visto nossa visitante de modo tão trivial como eu via a SenhoraGrose, e que tinha querido, embora a visse como eu, fazer-me supor que não a via, e ao mesmo tempo, sem nada demonstrar, adivinhar até que ponto eu notava a sua presença! Lamentável que eu precisasse mais uma vez descrever a fabulosa diligência nas pequenas coisas com que ela procurava desviar a minha atenção – o aumento perceptível de atividade, a maior intensidade das brincadeiras, da cantoria, da tagarelice, das birutices e do convite para que eu aderisse às suas travessuras. Contudo, se eu não me tivesse permitido reexaminar os fatos para provar que nada havia, teria perdido os dois ou três elementos vagos de consolo que ainda me restavam. Eu não teria, por exemplo, sido capaz de asseverar à minha amiga de que estava certa – para o bem geral – de não ter, eu ao menos, me enganado. Não teria sido levada, pela pressão ou pela necessidade, pelo desespero mental – nem sei como denominar o que sentia – a exigir de minha companheira um auxílio de inteligência que a punha contra a parede. Ela me contara, em minúcias, pressionada como o fora, um monte de coisas; mas uma ligeira ponta de dúvida no outro lado de tudo quanto dissera, de vez em quando roçava a minha fronte feito uma asa de morcego; e recordo como nessa ocasião – pois a casa estava adormecida e a mistura de nosso perigo com nossa vigilância vinha em nosso auxílio – senti a importância de dar um último puxão na cortina. “Não acredito numa coisa tão horrível”, lembro-me ter dito; “não, de jeito nenhum, vamos deixar claro, minha querida. Mas, se acreditasse, exigiria, sem mais poupá-la, saber tudo da senhora. Que era que tinha em mente quando, na sua aflição, quando Miles estava para voltar do colégio, depois daquela carta, sob a minha insistência, a senhora disse que não pretendia afirmar que ele literalmente nunca fora mau? Nessas semanas em que tem convivido comigo e em que eu o tenho observado tão cuidadosamente, ele literalmente nunca foi mau; tem sido, pelo contrário um imperturbável primor de doçura, de adorável bondade. Portanto, a senhora poderia ter feito todos esses elogios a ele se não tivesse notado, como pode ter ocorrido, uma exceção em seu comportamento. Que coisa foi essa, e a que passagem em sua observação pessoal do menino a senhora estava se referindo?” Era uma inquirição terrivelmente rigorosa, mas a leviandade não cabia na nossa situação, e, de qualquer modo, antes que a aurora fizesse com que nos despedíssemos, tive a resposta. O que minha amiga tinha em mente veio imensamente a propósito. Era nem mais nem menos que o fato de que por um período de vários meses Quint e o menino tinham sido inseparáveis. Era também o fato muito natural de ela ter se arriscado a criticar essa inconveniência, de dar a entender que uma ligação como essa não estava certa, e mesmo de avançar no assunto, a ponto de abrir-se francamente com a Senhorita Jessel. A predecessora tinha, da maneira mais estranha, respondido que ela fosse cuidar de sua vida, e a boa mulher, por isso, dirigira-se ao próprio Miles. Do que lhe pude tirar, dissera ao menino que gostaria que os rapazinhos de nível mais elevado não esquecessem sua posição. Diante dessa revelação, pressionei-a mais um pouco. “A senhora fez com que ele visse que Quint não passava de um reles empregado?” “Foi bem isso! E foi a sua resposta que, por uma coisa, não me agradou.” “Por que coisa?”, eu cutucava. “Ele foi contar o que a senhora disse para o Quint?”“Não, não por aí. Isso era bem o que ele não faria!”, ela respondeu, causando-me impressão. “Bom, de qualquer modo, eu estava certa”, acrescentou, “que ele não faria. Mas ele negou certas ocasiões.” “Quais?” “Quando estiveram juntos de tal modo que o Quint até parecia seu professor particular – com ares de grande importância – e a Senhorita Jessel, por sua vez, ficava com a menina. E negou outras quando saía com esse sujeito e passava horas com ele.” “Ele, então, deu evasivas – disse que não tinha nada com o homem?” Seu assentimento foi tão claro que acrescentei prontamente: “Compreendo. Ele mentiu.” “Oh!”, murmurou a Senhora Grose. Sugeria com isso que a coisa não tinha importância; reforçou essa displicência com outra observação. “Veja bem; afinal de contas, a senhorita Jessel não ligava. Ela não proibia o menino.” Refleti. “Então, foi isso que ele colocou para a senhora como justificação?” Aí, ela se deteve novamente. “Não, nunca me falou disso.” “Nunca falou da ligação da Senhorita Jessel com Quint?” Ela percebeu, visivelmente ruborizada, aonde eu queria chegar. “Bem, ele nunca demonstrou saber nada. Ele negava”, ela repetia, “ele negava”. Deus, como eu a apertava agora! “Então, a senhora percebeu que ele sabia o que se passava entre os dois canalhas?” “Não sei – não sei!”, a pobre mulher gemia. “A senhora sabe sim, minha cara”, repliquei; “é que apenas não tem minha terrível audácia de imaginação, e por timidez, modéstia e delicadeza, guarda para si até a impressão de que, no passado, tinha que debater-se silenciosamente, sem minha ajuda, diante de tudo que acontecia e que a deixava desesperada. Mas vou lhe arrancar tudo! Havia algo no menino que sugeria à senhora”, continuei, “que ele protegia e escondia a ligação dos dois?” “Oh, ele não podia impedir...” “Que a senhora percebesse a verdade? Bem posso imaginar! Mas, céus!”, segui com veemência, pensando em voz alta, “isso mostra o que eles tinham conseguido fazer do menino, até aí!” “Ah, nada que não seja bom agora!” , defendeu-o ela, lugubremente. “Não me espanta agora que a senhora estivesse meio estranha”, persisti, “quando eu lhe falei da carta que veio do colégio!” “Duvido que estivesse mais estranha que a senhorita”, ela replicou com sua energia rude. “E se o pequeno era tão mau como parecia, por que é que é um anjo tão completo agora?” “Sim, é isso mesmo – e se ele foi um capeta no colégio! Como, como, como? Bem”, disse em meu tormento, “a senhora deve me perguntar isso de novo, mas só vou poder lheresponder daqui a alguns dias. Mas, não deixe de perguntar!”, bradei, de um modo que fez minha amiga arregalar os olhos. “Há certas direções nas quais não vou querer me aventurar, no momento”. Enquanto isso, retornei ao seu primeiro exemplo – àquele a que ela se referira anteriormente – da feliz disposição do menino para algum deslize ocasional. “Se Quint – na advertência que a senhora lhe passou daquela vez – não passava de um reles empregado, uma das coisas que Miles deve ter dito, imagino, foi que a senhora também era uma criada.” De novo seu assentimento foi tão imediato que eu continuei: “E a senhora o perdoou por isso?” “A senhorita não o perdoaria?” “Oh, claro que sim!” E trocamos ali, naquele silêncio, um riso de estranha hilaridade. Então, prossegui: “Em todo caso, enquanto ele ficava com o homem...” “Flora ficava com a mulher. Era conveniente para todos!” Também me convinha perfeitamente, pensei; queria dizer que isso se ajustava à particular suspeita mortífera que eu vinha me proibindo de alimentar. Mas me saí tão bem em controlar a manifestação dessa suspeita que não adiantarei outra coisa que não possa ser deduzida da observação final que fiz à Senhora Grose. “O menino ter mentido e sido insolente me parece menos comprometedor do que eu esperava que a senhora revelasse, a respeito do homem natural que vai brotando nele. Ainda assim”, refleti, “tenho que levar isso em conta, porque me adverte que é necessário vigiar.” No momento seguinte, fiquei ruborizada ao perceber no rosto de minha amiga como ela perdoava o menino de maneira mais extrovertida, tendo em vista que a brincadeira despertara a minha ternura e me ensejara também fazê-lo. Isso ocorreu à porta da sala de estudos, quando ela já me deixava. “Com certeza, a senhorita não me vai acusar o menino...” “De esconder uma relação de mim? Ah, lembre bem, até prova em contrário, não vou acusar ninguém.” Então, antes de fechar a porta para que ela se dirigisse, por outra passagem, para seu próprio quarto, finalizei: “O que devo fazer é esperar”. CAPÍTULO 9 Esperei e esperei, e os dias, na sua passagem, levaram embora um pouco do meu sofrimento. Na companhia constante dos meus alunos, sem nenhum novo incidente, na verdade, uns poucos dias eram suficientes para passar nos devaneios angustiantes, e mesmo nas lembranças odientas, uma espécie de esponja. Mencionei que minha entrega à sua extraordinária graça infantil era algo que eu cultivava ativamente, e imaginem se eu iria me abster agora de sorver dessa fonte tudo que ela me oferecia. Mais estranho do que possa dizer, naturalmente, era o esforço que eu fazia para apagar as últimas coisas que soubera; contudo, teria sido uma tensão maior se eu não fosse, com frequência, tão bem sucedida. Espantava-me como as crianças podiam não adivinhar que eu pensava delas coisas tão estranhas; e a circunstância de que essas coisas apenas tornavam-nas mais interessantes não era por si mesma uma ajuda direta para mantê-las na ignorância. Tremia toda ao pensar que elas poderiam perceber que a coisa os tornava imensamente mais interessantes. Vendo pelo lado pior, como eu fazia tão constantemente em minhas reflexões, qualquer mancha em sua pureza podia ser apenas – inculpáveis e predestinados como eram – uma razão a mais para correr riscos. Havia momentos nos quais, por um impulso irresistível, eu me surpreendia arrebatando- os e estreitando-os a meu peito. Assim que acabava de fazê-lo, perguntava-me: “Que pensarão disso? Não estarei me traindo?” Teria sido fácil cair num triste, espinhento emaranhado se me dispusesse a pensar em quanto eu podia efetivamente me trair; mas, sentia que a verdadeira razão das horas de tranquilidade de que eu podia ainda desfrutar era que o encanto imediato de meus pequenos companheiros era constituído por um feitiço muito eficaz, ainda que obscurecido pela possibilidade de que fosse bem calculista. Ocorria-me que, por vezes, poderia despertar sua suspeita pelas pequenas erupções de uma paixão por eles que só fizera crescer, e por isso lembro-me que pensava também se não haveria uma certa estranheza no perceptível aumento de suas próprias efusões. Nessa ocasião, mostravam gostar de mim de um modo extravagante e muito além do natural; o que, afinal de contas, eu podia pensar, talvez não passasse de uma reação graciosa de crianças acostumadas a uma bajulação e um carinho constantes. Esse afeto, em que eram tão pródigos, tinha tão bom efeito sobre meus nervos que nunca me ocorria, posso garantir, procurar nele uma segunda intenção. Nunca quiseram, como naquele tempo, fazer tantas coisas por sua pobre protetora; quero dizer – embora se saíssem cada vez melhor em seu aprendizado o que naturalmente seria o mais capaz de satisfazê-la – no sentido de diverti-la, entretê-la, surpreendê-la; lendo-lhe composições, contando-lhe histórias, oferecendo-lhe charadas, lançando-se sobre ela, disfarçados de animais ou personagens históricos, e, acima de tudo, deixando-a atônita com os “pedaços” que tinham secretamente decorado e que eram capazes de recitar interminavelmente. Não atingiria jamais o fundo – ainda que me deixasse levar pelas lembranças agora – dos elaborados comentários, todos sob estrita correção, com os quais, naqueles dias, eu acompanhava todas as suas horas. Desde o início, tinham mostrado facilidade para praticamente tudo, uma aptidão genérica que, a cada novo impulso, realizava façanhas memoráveis. Cumpriam suas pequenas tarefas como se as adorassem, e, na exuberância de seus dons, realizavam prodígios espontâneos de memória. Irrompiam diantede mim não apenas como tigres e como guerreiros romanos, mas como personagens de Shakespeare, astrônomos e navegadores. Era tão singular seu caso que seguramente influiu numa coisa que, até hoje, me deixa um pouco confusa: a tranquilidade nada natural com que encarei a possibilidade de uma outra escola para Miles. O que recordo é que, naquele momento, contentava-me em não abrir a espinhosa questão, e o contentamento certamente provinha da impressão que me causava sua perpétua e fabulosa exibição de inteligência. Ele era inteligente demais para ser estragado por uma preceptora medíocre, filha de um pároco; e o mais estranho, se não o mais brilhante, dos fios desse bordado mental a que me referi, era a impressão que eu poderia ter tido, se tivesse ousado dar-me ao trabalho de analisá-la, de que ele estava sob alguma influência que agia sobre sua pequena vida intelectual como um estímulo violento. Contudo, se era fácil raciocinar que um menino tão bem-dotado podia ter sua volta à escola adiada, era identicamente fácil pensar que um tal menino ser “chutado” fora dos portões escolares por algum diretor constituía uma mistificação sem fim. Permitam-me acrescentar que na companhia das crianças – e eu cuidava com não me afastar demasiado da realidade – nunca pude ir muito longe em farejar alguma coisa. Vivíamos numa nuvem particular de música e amor e triunfo e representações. O senso musical das duas crianças era dos mais vivos, mas o menino, em especial, tinha um dom maravilhoso para captar e reproduzir o que ouvia. O piano da sala de estudos explodia em melodias as mais estrambóticas; e quando elas cessavam, confabulavam lá pelos cantos, e a seguir um deles se retirava animadíssimo para retornar como um personagem novo, imprevisível. Eu própria tinha irmãos, e não era novidade para mim que as meninas podiam ser escravas idólatras dos meninos. O que ultrapassava meu entendimento era haver no mundo um menino que pudesse mostrar tão grande consideração por uma idade, um sexo e uma inteligência inferiores. Eram extraordinariamente unidos, e dizer que nunca brigavam nem falavam mal um do outro é dar uma ideia grosseira do tipo de doçura que tinham. Por vezes, na verdade, eu própria pecava pela grosseria, imaginando perceber neles sinais de pequenos acordos pelos quais, enquanto um me mantivesse ocupado, o outro poderia escapulir. Há um lado ingênuo, suponho, em toda diplomacia; mas se meus alunos me aprontavam alguma, era certamente sem a menor vulgaridade. Foi bem em outro flanco que, depois de uma trégua, a baixeza apareceu. Aqui, sinto que vacilo; mas, devo mergulhar. Seguir relatando o que havia de hediondo em Bly não é apenas desafiar a boa-fé – o que pouco me importa – mas – e aí é outro assunto – voltar a sofrer aquilo que sofri, percorrendo o mesmo caminho árduo até o fim. Sobreveio uma hora na qual, relembro, o caso pareceu revestir-se de total sofrimento para mim; mas pelo menos eu tinha atingido seu âmago e a solução mais acertada seria ir em frente. Uma noite – sem que nada me conduzisse ou preparasse para isso – senti o friozinho da impressão que me arrepiara na noite em que chegara; na primeira ocasião, ele fora mais leve, como disse, e não teria me deixado lembrança alguma se minha estada posterior tivesse sido menos agitada. Eu não tinha me recolhido; lia ainda sob a luz de dois candelabros. Havia um quarto cheio de livros velhos em Bly – romances do século passado, entre eles alguns que tinham uma reputação duvidosa, mas não a ponto de virarem relíquia e não chegarem àquele casarão retirado; não tinham perdido seu apelo para minha curiosidade de jovemdescomprometida. Lembro-me que o livro que estava em minhas mãos era o “Amélia”, de Fielding; lembro-me também que estava completamente desperta. Recordo que estava tomada, simultaneamente, pela convicção de que era já terrivelmente tarde e por uma objeção particular à ideia de consultar meu relógio. Revejo, finalmente, a cortina branca que envolvia, o que era moda naqueles dias, a cabeceira da pequena cama de Flora, e que havia muito me assegurara de que ela repousava perfeitamente bem. Recordo, em resumo, que embora estivesse muito interessada por Fielding, achei-me, ao virar uma página e deixar o seu encanto dissipar-se, erguendo a cabeça e olhando fixamente para a porta do meu quarto. Houve um momento durante o qual escutei bem e notei, lembrando a vaga sensação, que tivera naquela primeira noite, de que havia alguma coisa indefinida movimentando-se na casa, uma brisa que passava levemente pela janela agitar a cortina entreaberta. E então, dando todas as mostras de uma coragem que teria parecido magnífica se houvesse ali alguém para admirá-la, pus o livro de lado, levantei-me e, pegando um castiçal, saí resoluta do quarto e ainda dali, do corredor, onde minha luz fazia pouca diferença, tranquei a porta ruidosamente. Não sei dizer agora nem o que me levou a fazê-lo nem o que me guiava, mas fui avante corredor afora, com o castiçal acima da cabeça, até me deparar com uma janela alta que dominava a grande curva da escada. Nesse ponto, tomei rapidamente consciência de três coisas. Eram praticamente simultâneas, embora me viessem em lampejos sucessivos. Minha vela, devido a um movimento brusco, apagou-se, e eu percebi, pela janela desprovida de cortina, que a escassa luz fornecida pela manhã que já surgia a tornava desnecessária. Sem ela, eu vi, a seguir, que havia alguém na escada. Falo de sequências, mas não foi preciso mais que um lapso de segundo para que eu, enrijecida, ficasse preparada para um terceiro encontro com Quint. A aparição, na subida, tinha chegado ao patamar no meio da escada e estava, portanto, no ponto mais próximo à janela, onde, quando me viu, deteve-se e me cravou os olhos exatamente como o fizera da torre e do jardim. Conhecia-me tão bem quanto eu o conhecia; e assim, na fria e tênue luz da manhã, entre o brilho do vidro da janela no alto e o das escadas de carvalho bem enceradas embaixo, ficamos cara a cara, em intensidade mútua. Ele era, naquele momento, uma presença vívida, detestável e perigosa de forma absoluta. Mas, isso não era de modo algum o que de mais espantoso acontecia; reservo essa qualificação para uma circunstância bem diferente: eu tinha perdido inequivocamente o meu terror e não havia nada em mim que não o encarasse e medisse bem. Tive angústia de sobra depois daquele momento extraordinário, mas, graças a Deus, perdera o terror. E ele notou que eu não o tinha mais – decorrido um instante, tive consciência magnífica desse fato. Senti, num feroz assomo de confiança, que, se permanecesse em meu lugar por mais um minuto, eu poderia – pelo menos, por instantes – confrontá-lo; e durante esse minuto, de fato, a coisa foi tão humana e hedionda como uma entrevista real: hedionda justamente por ser humana, tão humana quanto seria eu haver topado, em horas mortas, numa casa adormecida, com algum inimigo, aventureiro ou criminoso. Era o silêncio de morte de nossa troca de olhares à tão curta distância que dava ao horror todo, incomum como era, sua única nota de sobrenatural. Se eu tivesse topado com um criminoso em tal lugar e em tal hora, teríamos pelo menos nos falado. Alguma coisa teria se passado, na vida, entre nós; se não tivesse se passado, um de nós ao menos teria se movido. Mas o momento, aquele, foi tãoprolongado que, tivesse durado um pouquinho mais, duvidaria até que eu estivesse viva. Não posso exprimir o que veio a seguir senão dizendo que o silêncio em si – o que, na verdade, de certo modo atestava a minha força – tornou-se o elemento no qual vi a figura ir desaparecendo; em silêncio, como se assim eu pudesse contemplar o vil miserável a que pertencera, a figura voltou-se para mim como se esperasse reverentemente uma ordem e passou, com meus olhos presos às costas aversivas que nenhuma corcova teria desfigurado mais, descendo a escada, e afundando-se na escuridão na qual a curva seguinte mergulhava. CAPÍTULO 10 Permaneci mais um pouco no topo da escada, mas apenas para certificar-me de que, ao retirar-se, meu visitante realmente se fora; depois disso, retornei ao meu quarto. A primeira coisa que lá vi à luz da vela que deixara acesa foi que a caminha de Flora estava vazia; diante disso, prendi meu fôlego com todo o terror a que, cinco minutos atrás, eu fora capaz de resistir. Atirei-me sobre o leito onde a deixara, vendo ali (pois a pequena colcha de seda e os lençóis estavam desarrumados) que as brancas cortinas tinham sido por engano corridas; nesse momento, o meu passo, dando-me um alívio inexprimível, produziu um ruído em resposta; percebi um movimento nas cortinas da janela, e a menina, passando por baixo dela, apareceu prontamente do outro lado. Ali estava, com muita candura e pouca camisola, com os róseos pés descalços e o brilho dourado de seus cabelos encaracolados. Parecia intensamente séria, e nunca tive uma tamanha sensação de perder uma vantagem adquirida (cujo efeito emocional tinha sido tão fantástico) como naquele momento, quando percebi que ela se dirigia a mim com reprovação. “Sua malvada: onde é que a senhorita estava?” – e ao invés de questionar a falta que ela cometera, peguei-me eu mesma em falta e tive que me explicar. Quanto a ela, explicou-se sobre o caso com a mais adorável e ardente simplicidade. Percebera repentinamente, enquanto repousava, que eu estava fora do quarto, e saltara fora da cama para ver o que me acontecera. Com a alegria de seu reaparecimento, eu me deixara cair numa cadeira – sentindo aí, só aí, um certo desfalecimento; ela correu até mim, atirou-se em meus joelhos, entregando-se para que eu a abraçasse com a chama da vela iluminando toda o seu rostinho maravilhoso que ainda estava congestionado de sono. Lembro-me de ter fechado meus olhos por um instante, rendendo-me, conscientemente, diante de alguma coisa excessivamente bela que emanava do azul dos seus. “Procurava por mim olhando para fora?”, eu disse. “Pensou que eu podia estar andando lá pelo jardim?” “Bem, sabe, eu pensei que havia alguém lᔠ– respondeu, sorrindo, sem empalidecer. Oh, como eu a olhava agora! “E chegou a ver alguém?” “Ah, não!”, replicou, com todo o privilégio de sua inconsequência infantil, quase ofendida, embora pusesse uma prolongada doçura na ligeira indecisão da negativa. Naquele momento, pelo estado dos meus nervos, tive certeza absoluta de que estava mentindo; e se fechei meus olhos novamente, foi porque ficavam ofuscados diante das três ou quatro possíveis maneiras pelas quais eu podia considerar a sua resposta. Uma delas, por um momento, tentou-me com intensidade tão singular que, para resistir a ela, devo ter apertado a menininha com um espasmo a que, maravilhosamente, ela se sujeitou, sem gemido ou sinal de susto. Por quê não aproveitar aquele momento e dizer tudo de uma vez por todas? – colocar tudo diante daquele seu rostinho luminoso? “Você vê, você vê, você sabe que sim e já está quase certa de que eu sei; portanto, por quê não confessá-lo para mim, para que possamos enfrentar a situação juntas e talvez aprender, na estranheza de nosso destino, onde estamos e o que ela significa?” Mas a súplica, ai de mim, desvaneceu-se: se eu tivesse sucumbido a ela, teria poupado a mim mesma – bem, vocês verão de quê. Em vez de sucumbir, de novo me pus em pé, olhei para a cama da menina e adotei um meio termo inútil. “Por quê você pôs a cortinasobre o leito, para me fazer pensar que estava ainda ali?” Ela refletiu por um minuto, luminosamente; depois, disse com seu sorrisinho divino: “Porque eu não gosto de assustar a senhorita!” “Mas se eu tinha, pela sua lógica, saído ...?” Ela não estava de modo algum disposta a ficar intrigada; virou seus olhos para a chama da vela como se a questão fosse insignificante, ou pelo menos tão indiferente quanto uma pergunta sobre a Senhora Marcet ou de nove vezes nove. “Oh, mas a senhorita sabia”, respondeu jeitosa, “que ia voltar, querida, e foi o que fez!” E, dentro em pouco, quando ela voltou para cama, lá fiquei eu, por longo tempo, tendo que provar, sentada à sua cabeceira e segurando sua mão, como minha volta tinha sido oportuna. Podem imaginar a complicação geral de minhas noites, a partir daí. Eu ficava em guarda repetidamente, até não sei que horas; escolhia momentos em que minha colega de quarto estava inequivocamente dormindo, e, sorrateiramente, fazia rondas silenciosas na passagem e mesmo em lugares mais além daqueles em que encontrara Quint pela última vez. Mas nunca o reencontrei; e posso dizer agora que nunca mais o vi na casa. Por outro lado, estive quase para perder, na escada, uma aventura diferente. Olhando do topo dela para a descida, reconheci uma vez a presença de uma mulher que estava sentada num dos degraus mais baixos com as costas voltadas para mim, a metade de seu corpo curvada e a cabeça, numa atitude de desolação, enfiada em suas mãos. Embora eu tenha ficado ali por um instante, ela desapareceu sem me notar. A despeito disso, eu sabia que rosto medonho ela me mostraria, se o fizesse; e me perguntei se, ao invés de estar no topo, eu estivesse lá embaixo, teria tido a coragem que demonstrara frente a Quint no último encontro. Bem, continuava a sobrar oportunidade para mostrar coragem. Na décima primeira noite depois daquele encontro com o referido cavalheiro – porque eu as enumerava agora – tive um sobressalto que a pôs à prova e que se revelou de fato, devido à qualidade particular de seu caráter de inesperado, meu choque mais violento. Foi precisamente na primeira noite desse período em que, cansada de vigiar, sentira que, sem negligência, podia recolher-me na minha hora habitual. Caí no sono imediatamente e, como pude verificar mais tarde, dormi até uma da madrugada; mas, quando acordei, foi em estado de alerta, como se uma mão me houvesse sacudido. Tinha deixado uma vela acesa, mas agora ela estava apagada, e por um instante tinha tido a certeza de que fora Flora quem a apagara. Levantei-me rapidamente no escuro e fui direto para a sua cama, que descobri vazia. Um olhar para a janela me esclareceu, e um fósforo que acendi completou o quadro. A menina tinha se levantado novamente – dessa vez, apagando a vela, e tinha novamente, com a finalidade de observar ou responder a algo, se espremido atrás da cortina, de onde perscrutava a noite lá fora. Que ela via – como da primeira vez estava convencida de que não o conseguira – ficou provado para mim pelo fato de que não ficou perturbada nem por eu ter voltado a acender a luz nem pelos ruídos que eu fazia para colocar os chinelos e embrulhar-me num roupão. Oculta, protegida, absorta, ela nitidamente se apoiava no parapeito – as persianas abertas para fora – e mostrava-se por inteiro. Havia uma grande lua tranquila para ajudá-la em seu intento, e esse fato influiu na rápida decisão que tomei. Elaestava cara a cara com a aparição que víramos no lago, e podia agora comunicar-se com ela de um modo como, na ocasião, não pudera fazê-lo. Pelo meu lado, o que tinha de ser feito era, sem interrompê-la, sair e alcançar, passando pelo corredor, uma outra janela no mesmo flanco. Cheguei à porta sem que ela me ouvisse; passei por ela, fechei-a e escutei, já do outro lado, algum débil som emitido por ela. Enquanto permanecia na passagem pusera meus olhos na porta do quarto de seu irmão, que não estava a mais que dez passos, o que, indescritivelmente, produziu em mim a renovação do estranho impulso que eu mencionei que antes me tentara. Que tal se eu entrasse ali e marchasse direto para a janela dele? – que tal se, arriscando exibir ante seu assombro infantil a revelação de meus motivos, eu lançasse sobre o resto desse mistério o longo laço de minha coragem? Esse pensamento sustentou-me o bastante para cruzar a soleira e fazer uma nova pausa. Eu ouvia tudo com uma nitidez sobrenatural; imaginava as coisas mais fantásticas a partir do que ouvia; me indagava se a cama do menino também não estaria vazia e se ele também não estaria fazendo uma espreita secreta. Foi um momento profundo e silencioso, ao fim do qual meu impulso cedeu. Ele estava muito quieto; podia ser inocente; o risco era hediondo; portanto, tive que me afastar. Havia uma presença nos jardins – um vulto furtivo ansioso por encontrar a sua presa, uma visita com quem Flora tinha encontro marcado; não era, certamente, a visita que ofereceria um interesse lógico ao meu menino. Hesitei de novo, mas por outros motivos e apenas momentaneamente; então, fiz a minha escolha. Havia quartos vazios em Bly, e era apenas uma questão de escolher o mais apropriado. Este logo se provou ser um que se apresentava no térreo – embora acima dos jardins – situado no ângulo sólido da casa que a que me referi como a velha torre. Era um aposento amplo, quadrado, arrumado com uma certa gala, como um quarto de dormir, mas seu tamanho fora do comum o tornava tão incômodo que não vinha sendo ocupado há muitos anos, embora fosse mantido em ordem exemplar pela Senhora Grose. Eu já o tinha admirado e conhecia bem a sua disposição; tinha apenas que, superando o arrepio que me daria a escuridão de seu abandono, atravessá-lo e ir avante para destravar seus postigos. Feito o percurso, afastei a cobertura sem mínimo ruído e, encostando meu rosto à vidraça, notei, devido a haver mais escuridão lá fora que ali dentro, que tinha tomado a direção certa. Aí, vi algo mais. A lua tornava a noite extraordinariamente nítida e mostrou-me no gramado uma pessoa que, diminuída pela distância, ali estava imóvel e como que fascinada, olhando para mais acima de onde eu tinha aparecido – isto é, olhando não diretamente para mim, mas para alguma coisa que estava fora de minha vista, no alto. Havia claramente outra pessoa acima do ponto que eu ocupava – havia uma pessoa na torre; mas a presença no gramado não era de modo algum aquela que eu imaginara e que, cheia de certeza, eu fora correndo para encontrar. Quem estava ali – quase desmaiei ao descobri-lo – era o próprio Miles. CAPÍTULO 11 Só pude conversar com a Senhora Grose numa hora avançada do dia seguinte; o esforço com que eu mantinha meus alunos sob minhas vistas fazia com frequência que fosse difícil encontrá-la privadamente, e mais ainda porque ambas sentíamos a importância de não provocar – tanto da parte dos empregados quanto da parte das crianças – nenhuma suspeita de uma perturbação secreta ou de uma discussão de mistérios. Nesse particular, eu extraía uma grande segurança do simples fato de a Senhora Grose oferecer uma aparência tranquila. Nada havia em seu rosto radiante que pudesse sugerir aos outros as horríveis confidências que recebia de mim. Ela acreditava em mim absolutamente, creio: se não o fizesse, não sei o que teria me acontecido, porque eu não teria podido suportar tudo aquilo sozinha. Mas, ela era um magnífico monumento à benção que pode ser a falta de imaginação, e, não vendo em nossas crianças nada a não ser sua beleza e afetividade, sua alegria e sua inteligência, não tinha comunicação direta com as fontes de meu dilema. Se eles fossem visivelmente infectados ou feridos ela, procurando os motivos, ficaria perturbada o suficiente para interrogá-los; mas, do modo como as coisas iam, eu sentia, quando ela os vigiava, com seus largos e alvos braços cruzados e o hábito da serenidade em todo o seu rosto, que ela agradecia a Deus achando que, mesmo que eles estivessem destruídos, os pedaços que restavam ainda serviriam. Chamas de fantasia davam lugar, em seu espírito, a um doméstico e sólido foguinho de lareira, e eu já tinha começado a perceber que desenvolvera a convicção de que – tendo os dias transcorridos sem nenhum acidente notório – os pequeninos podiam, afinal de contas, cuidar bem de si mesmos, sendo que ela precisava dirigir as suas atenções para o triste caso da preceptora. Isso, para mim, era uma simplificação saudável; eu podia esforçar-me para que em meu rosto não transparecessem meus problemas, mas teria sido, naquelas condições, uma imensa contrariedade que eu tivesse que me preocupar com o que rosto dela poderia revelar. Na hora a que me refiro ela tinha se juntado a mim, depois de pressionada, no terraço, onde, com o amenizar da estação, o sol da tarde era agora agradável; e ali nos sentamos, enquanto, diante de nós, a certa distância, mas ao alcance da nossa voz, as crianças passeavam daqui para ali com a melhor das disposições. Moviam-se lentamente, em uníssono, abaixo de nós, sobre o gramado, o garoto, enquanto andavam, lendo em voz alta um livro de histórias e passando o braço pela cintura da irmã para mantê-la atenta. A Senhora Grose os observava com uma placidez imperturbável; então, percebi o sufocado gemido intelectual com que se voltou intencionalmente para mim a fim de obter uma explicação do que podia haver no avesso daquela tapeçaria. Eu a tinha tornado um receptáculo de coisas sinistras, mas havia um estranho reconhecimento de minha superioridade – devido a meus predicados e à minha função – na paciência que demonstrava diante de minha dor. Ela oferecia seu espírito às minhas revelações como se, caso eu tivesse desejado fazer uma poção de bruxa e lhe propusesse isso com autoridade, me passasse sem protesto uma grande caçarola bem limpa. Essa se tornou sua atitude na ocasião em que, na narrativa que lhe fiz dos fatos da noite anterior, cheguei ao ponto daquilo que Miles me respondera quando, depois de vê-lo, numa hora tão imprópria, quase no mesmo lugar onde brincava agora, eu me precipitara para ir buscá-lo; para isso, tinha escolhido, lá da janela, não um método, mas um meio menosruidoso, para não alarmar a casa. Dei a entender a ela que não poderia descrever com sucesso, mesmo diante de sua imensa boa vontade, minha impressão de que o menino se saíra com fantástica inspiração diante de minhas perguntas, depois que o repus na casa. Assim que eu aparecera à luz do luar no terraço, caminhou na minha direção da maneira mais tranquila; a seguir, tomei sua mão sem uma palavra e o levei, através de espaços escuros, pela escada acima, passando pelos lugares onde Quint rondara, faminto, à sua procura, pelo vestíbulo onde eu escutara e tremera, e finalmente entramos em seu quarto abandonado. Nenhuma palavra foi trocada entre nós no caminho, e eu ia me indagando – oh, como me indagava! – o que seu pequeno espírito não estaria tateando à procura de uma explicação que fosse plausível e não demasiado grotesca. A coisa ia requerer seus recursos de invenção, certamente, e eu senti, naquele momento, diante da encrenca em que ele se encontrava, uma curiosa emoção de triunfo. Era uma boa armadilha para alguém tão astucioso! Ele não ia poder mais fingir inocência; assim, como diabos se safaria dessa? De súbito, pensei também, ao colocar apaixonadamente essa questão, como diabos eu me safaria. Estava por fim tendo que me confrontar, como nunca o fizera, com todo o risco que havia em minha atitude horrível. Recordo de fato que, enquanto entrávamos em seu pequeno quarto, onde a cama mal tinha sido remexida e a janela, aberta à luz da lua, tornava tudo tão claro que não era preciso riscar um fósforo – eu subitamente deixara-me cair à beira do leito, sucumbindo ante a força da ideia de que ele devia realmente saber como lidar comigo. Faria o que quisesse, com toda a sua inteligência o ajudando nisso, enquanto eu continuaria a pertencer à antiga tradição de culpabilidade daqueles mestres que infundem em seus discípulos suas próprias superstições e terrores. Ele me pegara, de fato, e bem de jeito; porque, quem me absolveria, quem me salvaria da forca se, pelo mais leve tremor de uma insinuação, eu era a primeira a introduzir em nossa perfeita relação um elemento tão medonho? Não, não; era inútil tentar fazer a Senhora Grose compreender, como é talvez inútil tentar sugerir aqui, como, em nosso breve e firme embate no escuro, ele ganhou com perícia minha admiração. Naturalmente, fui amável e compassiva o tempo todo; nunca, nunca pusera em seus ombros mãos tão ternas como aquelas com as quais, enquanto sentava em sua cama, mantive-o junto a mim, bem debaixo da luz. Não tinha alternativa senão lhe interrogar, ao menos formalmente. “Você precisa me contar agora – contar toda a verdade. Para que você foi lá fora? O que estava fazendo lá?” Ainda revejo seu sorriso maravilhoso, a luz de seus belos olhos e dos pequenos dentes a brilhar na penumbra. “Se eu lhe contar, a senhorita entenderá?”. Meu coração quase me saiu pela boca, quando ouvi isso. Ele ia mesmo me revelar o motivo? Eu não achava voz para pedir, e respondi apenas com um vago, repetido sinal de cabeça. Ele era a doçura em pessoa, e enquanto eu a balançava diante dele, portava-se como se ali estivesse um príncipe de conto de fadas. Essas demonstrações todas acabaram por me dar algum alívio. Seriam assim tão grandiosas se ele fosse de fato contar a verdade? “Bem,” disse por fim, “fiz o que fiz apenas para que a senhorita fizesse isso.” “Isso o quê?” “Para que pensasse – para variar – que posso ser malvado!” Não esquecerei nunca ojeito doce e gaiato com que ele proferiu essa palavra, nem como, para completar a cena, ele se inclinou e me beijou. Foi praticamente o fim de tudo. Devolvi-lhe o beijo e tive que fazer, enquanto o estreitava por um minuto em meus braços, o mais fabuloso esforço para não chorar. Ele prestara contas de sua conduta de maneira a não permitir que eu avançasse o sinal, e foi apenas com a finalidade de confirmar minha aceitação de suas palavras que, lançando meu olhar pelo quarto, consegui perguntar – “Então, foi por isso que não tirou a roupa para dormir?” Ele estava radioso no escuro. “Não foi bem por isso. Decidi ficar lendo.” “E quando foi que você desceu?” “À meia-noite. Quando sou mau, sou mau de fato!” “Entendo, entendo – uma coisa encantadora. Mas, como é que tinha certeza de que eu acabaria sabendo?” “Oh, eu combinei a coisa com Flora.” Suas respostas saíam com uma rapidez! “Combinamos que ela se levantaria e olharia pela janela.” “Que foi o que ela fez, realmente”. Fui eu que caí na armadilha! “Portanto, ela chamou a sua atenção, e, para saber para o que ela estava olhando, a senhorita também olhou – e viu.” “Enquanto você” – cooperei – “se arriscava a perder a saúde pegando o ar da noite!” Ele literalmente explodia de orgulho de sua façanha, a tal ponto que ficou radiante de poder concordar, retrucando: “De que outro modo eu poderia provar que fui malvado de fato?”. Assim, depois de outro abraço, o incidente e nossa conversa se encerraram com o meu reconhecimento de todas as reservas de bondade de que, para aprontar sua brincadeira, ele lançara mão. CAPÍTULO 12 A impressão particular que tivera disso provou-se, à luz da manhã, repito, nada fácil de transmitir a Senhora Grose, embora eu a reforçasse com a menção de outra observação que Miles fizera antes que nos despedíssemos. “Tudo se reduz a meia dúzia de palavras”, eu disse a ela, “palavras que resolvem o assunto: “Pense só no que eu poderia fazer!” Aprontou-me isso para provar o quanto é bom. Sabe de sobra o que “poderia” fazer. Deu uma mostra disso ao pessoal lá do colégio.” “Deus do céu, a senhorita muda demais de ideia!”, gemeu minha amiga. “Não mudo – apenas vou tornando a coisa mais clara. Esses quatro, a senhora tenha certeza, vivem se encontrando. Se nessas duas últimas noites a senhora tivesse ficado com as crianças, teria entendido claramente. Quanto mais eu vigiava e esperava, mais sentia que, mesmo que não houvesse mais nada para servir de prova, o silêncio sistemático de ambos serviria. Nunca, nem por descuido, aludiram a nenhum de seus velhos amigos, da mesma forma como nunca Miles aludiu à sua expulsão do colégio. Oh sim, podemos ficar aqui a contemplá- los, e eles ficarão lá mostrando-nos apenas aquilo que lhes apetece; mas mesmo quando fingem estar mergulhados lá no seu faz de conta, estão voltados para a visão dos mortos que voltaram. Ele não está lendo para ela ali”, declarei; “conversam sobre eles – coisas horrorosas! Prossigo, eu sei, como se tivesse ficado louca; é estranho que eu ainda não o tenha. O que vi, já teria feito a senhora ficar; mas isso só me fez ficar mais lúcida, me fez compreender muito mais coisas.” Minha lucidez devia parecer medonha, mas a visão das criaturinhas encantadoras que dela eram vítimas, passando e repassando no gramado em doce entrelaçamento, dava à minha companheira alguma coisa em que se apoiar; e senti o quanto se apoiava nessa coisa observando que, sem deixar-se contagiar pela força de minha paixão, ela prosseguia olhando- os com cuidado e carinho. “Que outras coisas a senhorita compreendeu?” “Ora, essas mesmas coisas que tanto me deliciaram, fascinaram e que, no fundo, como agora vejo, só me mistificaram e atrapalharam meu entendimento. A beleza sobre-humana, a doçura fora do comum dessas crianças. É um jogo”, continuei; “é um cálculo e uma impostura!” “Da parte dessas criaturinhas ...?” “Que agem como uns bebês adoráveis? Sim, por mais louco que pareça!” O simples ato de conseguir exprimir o que eu sentia ajudava-me a analisar o caso – rastreando-o todo e juntando seus elementos. “As crianças não têm sido boas – têm sido apenas ausentes. Tem sido fácil conviver com elas, porque elas simplesmente possuem uma outra vida. Elas não são minhas – não são nossas. São dele e dela!” “De Quint e daquela mulher?” “Sim. Os dois querem aproximar-se delas.” Oh, como a Senhora Grose, ao ouvir isso, olhou para as crianças! “Mas, para quê?” “Pelo amor de todo o mal que, naqueles dias terríveis, a dupla colocou nelas. Paracontinuar a insuflar esse mal, seguir com o trabalho dos demônios, é por isso que reaparecem.” “Pai do céu!”, exclamou minha amiga em surdina. A exclamação era familiar, mas revelava uma aceitação autêntica da minha prova daquilo que, nos maus tempos – porque houvera tempos piores! – devia ter ocorrido. Não havia melhor justificação para mim que essa simples aceitação, da parte de sua experiência, do sem-fim de depravações que eu supunha ter sido cometido por aquela dupla de sórdidos. Foi numa evidente rendição à memória que ela disse, momentos depois: “Eles eram uns crápulas! Mas, que podem fazer agora?”, ela prosseguiu. “Fazer?”, repeti em voz tão alta que Miles e Flora, passando lá ao longe, pararam um instante e olharam para nosso lado. “Já não fazem o bastante?”, perguntei num tom mais surdo, enquanto as crianças, depois de sorrir e acenar e mandar beijinhos com as mãos para nós, prosseguiram com sua exibição. Ficamos mudas por um instante; depois disso, eu mesma respondi: “Os dois podem destruí-los!” Ouvindo isso, minha companheira virou-se para mim, mas a indagação que me lançou foi muda, o que fez com que eu ficasse mais explícita. “Eles ainda não sabem como fazê-lo – mas estão tentando saber seja lá como for. Enquanto isso, aparecem aqui e ali – em lugares estranhos e elevados, o alto das torres, o telhado das casas, perto das janelas, no outro lado das águas; mas há neles uma determinação profunda no sentido de encurtar a distância e vencer os obstáculos; o sucesso das tentativas é apenas uma questão de tempo. Eles precisam apenas continuar a sugerir perigo.” “Para as crianças se aproximarem?” “E perecerem na tentativa!” A Senhora Grose levantou-se devagar, e eu acrescentei escrupulosamente: “A menos, claro, que possamos impedir!” Plantada ali á minha frente enquanto eu permanecia sentada, ela visivelmente revirava as ideias à procura de solução. “O tio das crianças deve impedir. Ele deve levá-las embora.” “E quem vai convencê-lo a fazer isso?” Ela sondou a distância, pensativa, e voltando a ter uma expressão ingênua, declarou. “A senhorita, naturalmente.” “Escrevendo a ele que sua casa está envenenada e que seus sobrinhos enlouqueceram?” “Mas, e se eles estiverem, senhorita?” “E se eu também estiver, é o que a senhora quer dizer? Belas notícias para dar da parte de uma preceptora cujo principal dever era não lhe dar problemas.” A Sra Grose refletiu, seguindo as crianças novamente com o olhar. “Sim, ele detesta problemas. Essa foi a grande razão...” “De esses perversos o enganarem por tanto tempo? Sem dúvida, embora a sua negligência deva ter sido também medonha. Como não sou uma perversa, de qualquer modo, não vou aborrecê-lo.”Minha companheira, depois de um instante e como resposta, sentou-se novamente e agarrou firmemente o meu braço. “Peça a ele que venha.” Arregalei os olhos. “Que venha a mim?”. Fiquei subitamente com medo do que ela poderia fazer. “Ele?” “Ele precisa estar aqui – ele precisa ajudar.” Levantei-me rapidamente, e creio que lhe exibi um rosto estranho como nunca. “A senhora acha que sou capaz de pedir a ele uma visita?” Não, com os olhos postos no meu rosto, ela evidentemente não se atrevia a achar. Ao invés disso – tal como uma mulher lê no rosto de outra – ela via o que eu via: o desfrute, a diversão, o menosprezo dele por eu ter me resignado a viver em tamanha solidão e pelos mecanismos sutis que eu pusera em movimento a fim de atrair sua atenção para meus encantos insignificantes. Ela não sabia – de resto, ninguém – quanto eu me sentia orgulhosa de servi-lo e ser estritamente fiel ao nosso contrato; contudo, creio que levou bem em conta a advertência que eu então lhe fiz: “Se a senhora perder a cabeça a ponto de apelar para ele em meu favor...” Ela se assustou. “Sim, senhorita?” “Abandono ele e a senhora.” CAPÍTULO 13 Conviver com eles era simples e fácil, mas falar com eles chegou a ser uma coisa quase além das minhas forças – oferecia, em particular, dificuldades tão intransponíveis como sempre. A situação continuou desse modo por um mês, com novos agravantes e notas peculiares, sendo a mais perceptível destas, e cada vez mais acentuada, a que revelava uma leve consciência irônica por parte de meus alunos. Não era, tenho certeza hoje como tinha certeza então, apenas consequência de minha imaginação infernal; era absolutamente visível que tinham consciência de meu padecimento e que essa estranha relação constituía, de certo modo, a atmosfera em que vivíamos. Não quero dizer que me mostrassem a língua ou fizessem algo vulgar, porque não isso não estava entre seus defeitos: quero dizer, ao contrário, que o elemento indizível e inabordável tornou-se, entre nós, maior que qualquer coisa, e que o esforço por evitá-lo não seria tão bem sucedido sem que exigisse uma boa parte de acordo tácito. Era como se, em certos momentos, esbarrássemos em pontos diante dos quais tivéssemos que estacar, desviando repentinamente de becos que percebíamos serem sem saída, fechando com um barulho que fazia com que olhássemos uns para os outros – porque, como todos os barulhos, era um pouco mais alto do que pretendíamos – as portas que tínhamos aberto indiscretamente. Todos os caminhos levam a Roma, e houve ocasiões em que devíamos ter a impressão de que qualquer tópico de estudo ou tema de conversa roçava um terreno proibido. Assim como terreno proibido era a questão do retorno dos mortos em geral e daqueles que, em particular, sobreviviam na lembrança das crianças como amigos que tinham perdido. Houve dias em que eu podia jurar que um deles, com uma cotovelada quase imperceptível, dizia ao outro: “Ela pensa que vai falar dessa vez – mas não vai!”. “Falar” significaria, por exemplo – e por uma vez – referir-me à mulher que me antecedera. Tinham um apetite deleitoso e insaciável por passagens de minha própria história, às quais eu várias vezes retornava; tomaram posse de tudo que me acontecera, conscientizando-se, em cada circunstância, da história de minhas pequenas aventuras e das aventuras de meus irmãos e minhas irmãs e mesmo do cão e do gato que tínhamos em minha casa, bem como de alguns pormenores do caráter excêntrico de meu pai, da mobília e da disposição da nossa casa e das conversas das velhas mulheres de nossa aldeia. As coisas se ligavam umas às outras, e não faltava sobre que conversar, contanto que se contornasse rápida e instintivamente o que não podia ser mencionado. Puxavam com uma arte muito própria os cordéis de minha invenção e de minha memória; e talvez nada tenha despertado em mim tanta suspeita de estar sendo sub- repticiamente observada como essas ocasiões, das quais lembrei-me depois. Em todo caso, era sobre minha vida, meu passado e meus amigos apenas que podíamos conversar com toda comodidade; era um estado de coisas que às vezes os levava, sem a menor pertinência, a invadir minhas recordações sociais. Eu era convidada – sem ligação aparente – a repetir o famoso mote de Goody Gosling ou a de novo confirmar detalhes já fornecidos sobre a inteligência do pônei do vicariato. Era em parte devido a circunstâncias como essas e também devido a outras que, com o rumo que meus problemas tinham tomado, meu padecimento, como eu o chamava, tinha ficado mais sensível. O fato de que os dias passavam para mim sem qualquer outro encontrodevia, pelo que parecia, ter feito alguma coisa no sentido de acalmar meus nervos. Desde o ligeiro roçar, naquela segunda noite no andar de baixo, da presença de uma mulher ao pé da escada, não vira mais nada, fosse dentro ou fora da casa, que fosse preferível não ver. Havia muitos esconsos onde eu podia esperar uma topada com Quint, e muitas situações que, de um modo simplesmente sinistro, teriam favorecido o aparecimento da Senhorita Jessel. O verão veio, o verão se foi; o outono caiu sobre Bly e fez com que metade das nossas luzes se dissipasse. O lugar, com seu céu cinzento e suas grinaldas murchas, seus espaços vazios e suas folhas mortas espalhadas, parecia um teatro depois de encerrada uma apresentação – todo coberto por programas amarrotados. Havia no ar as vibrações e condições exatas de som e de silêncio, das impressões indizíveis daquele tipo de momento propício, que me traziam de volta, prolongada o bastante para que eu a captasse, a sensação do ambiente no qual, naquele entardecer de Junho ao ar livre, eu tivera minha primeira visão de Quint e no qual também, naqueles outros momentos posteriores, depois de vê-lo através da janela, eu procurara por ele inutilmente em meio aos arbustos. Eu reconhecia os sinais, os agouros – reconhecia o momento, o lugar. Mas tudo permanecia desolado e vazio, e eu continuava ali, sem ser molestada; estava tão incólume quanto poderia estar uma moça cuja sensibilidade tivera, do modo mais extraordinário, não uma decaída, mas um aprofundamento. Dissera à Senhora Grose ao falar daquela cena horrenda que sucedera com Flora junto ao lago – e a deixara perplexa ao fazê-lo – que, daquele momento em diante, ficaria muito mais desgostosa em perder meu dom que em conservá-lo. Expressara, então, o que estava vívido em meu espírito: a verdade de que, se as crianças vissem ou não – posto que isso ainda não fora definitivamente provado – eu, em qualquer caso, preferiria, como salvaguarda, expor-me totalmente. Estava pronta para conhecer o que houvesse de pior para ser conhecido. Tivera então um vislumbre monstruoso de que meus olhos podiam estar selados exatamente quando os das crianças estariam abertos ao máximo. Bem, meus olhos estavam selados, parecia, naquela ocasião – uma conclusão diante da qual seria blasfemo não agradecer a Deus. Havia, ai de mim, uma dificuldade nisso: teria agradecido a Ele com toda a minha alma se não tivesse em medida proporcional a convicção de que meus alunos guardavam um segredo. Como poderei hoje refazer os estranhos passos de minha obsessão? Havia horas, em nosso convívio, quando eu estava pronta a jurar que, literalmente, em minha presença, mas sem que eu tivesse acesso direto, as crianças recebiam e davam boas-vindas a seus visitantes. Era então que, se não me detivesse o receio oportuno de que um tal dano pudesse ser maior que o dano a ser conjurado, eu teria rompido em exaltação. “Eles estão aqui, eles estão aqui, meus pequenos infelizes!”, e teria gritado, “e agora vocês não podem mais negar!”. Os pequenos infelizes negavam-no juntando toda a força de sua sociabilidade e de sua ternura, lá das profundezas cristalinas onde – como o lampejo de um peixe na corrente – a sua zombeteira vantagem despontava. O choque, na verdade, me atingira mais profundamente quando, procurando avistar fosse Quint fosse a Senhorita Jessel sob as estrelas, descobrira o menino cujo sono eu até aí julgara estar velando e notara que, imediatamente, ele se recompusera – virara-se diretamente para mim – tirando os olhos lá do alto, das ameias acima do ponto em que eu me encontrava e onde Quint fazia sua aparição hedionda. Se era uma questão de susto, minha descoberta nessa ocasião tinha me assustado mais que qualquer outra, e era nascondições de nervos por ela produzida que eu fazia minhas verdadeiras induções. Elas me atormentavam tanto que às vezes, em estranhos momentos, eu precisava trancar-me no quarto e ensaiar em voz alta – era ao mesmo tempo um alívio fantástico e um desespero renovado – a maneira pela qual poderia abordar o assunto. Tateava-o de um modo ou de outro enquanto vagueava em meu quarto, mas sempre sucumbia quando tinha que proferir os nomes próprios monstruosos. Enquanto estes morriam em meus lábios eu dizia a mim mesma que talvez os estivesse ajudando a representar algo infame já que, pelo fato de pronunciá-los, eu poderia estar violando um caso de delicadeza instintiva que, raro como esse, talvez nenhuma outra sala de estudos houvesse conhecido. Quando eu me dizia: “Eles têm a delicadeza de se calar, e você, tão decente, a baixeza de falar!”, me sentia ruborizar e tapava meu rosto com as minhas mãos. Depois dessas cenas secretas, eu conversava mais que nunca, tagarelando de modo volúvel até que ocorria um de nossos prodigiosos, palpáveis silêncios – não posso chamá-los de outra coisa – e um estranho arrebatamento ou mergulho (procuro os termos!) numa quietude, uma interrupção de toda vida, que não tinha nada a ver com o ruído maior ou menor que pudéssemos estar fazendo no momento e que eu podia ouvir em meio a qualquer animação mais exaltada ou declamação mais apressada ou acordes mais fortes do piano. Significava que os outros, os intrusos, lá estavam. Embora não fossem anjos, “passavam”, como dizem os franceses, provocando em mim, enquanto ficavam, um estremecimento de terror por eu pensar que podiam dar às suas vítimas mais jovens alguma mensagem ainda mais infernal ou alguma imagem mais vívida que aquelas que julgavam suficientes para mim. O que me parecia o mais impossível era eu me livrar da ideia de que, o que quer que eu tenha visto, Miles e Flora tinham visto mais – coisas terríveis e inimagináveis que emergiam das tenebrosas passagens das relações que tinham tido com a dupla no passado. Tais coisas deixavam naturalmente na superfície, por momentos, um arrepio que nós, os rumorosos, negávamos sentir; e tínhamos, todos os três, devido à repetição, chegado a uma técnica tão esplêndida que, de cada vez, para assinalar o fim do incidente, íamos executando quase automaticamente os mesmos movimentos. Era espantoso que as crianças, em todo caso, nunca deixassem de me beijar com uma espécie de selvagem despropósito ou nunca cessassem – ora uma ora outra – de fazer a preciosa pergunta que nos tinha ajudado a cruzar tantos perigos. “Quando você acha que ele virá? Não acha que devemos escrever?” – não havia nada como essa pergunta, aprendêramos por experiência, para espantar qualquer embaraço. “Ele” naturalmente era o tio em Harley Street; e vivíamos a repetir a teoria de que ele poderia chegar a qualquer momento para se juntar a nosso círculo. Impossível haver alguém que desse menos encorajamento a essa doutrina do que ele, mas, se não a usássemos como apoio, teríamos nos privado um aos outros de algumas de nossas mais habilidosas representações. Nunca escrevia às crianças – podia ser uma atitude egoísta, mas era parte da lisonjeira confiança que depositava em mim; pois o modo pelo qual um homem presta seu mais alto tributo a uma mulher pode não ser nada além da celebração festiva de uma das sagradas leis de seu comodismo; e eu seguia fielmente a promessa de não importuná-lo fazendo as crianças perceberem que suas cartas não passavam de encantadores exercícios literários. Eram belas demais para serem postas no correio; eu as guardava comigo; tenho-as até hoje. Essa era, na verdade, uma regra que apenas aumentava o efeito satírico de eu ter me agarrado à suposiçãode que ele poderia, a qualquer momento, estar entre nós. Era exatamente como se minhas crianças soubessem que uma coisa dessas poderia ser a mais embaraçosa de todas para mim. Ademais, quando olho para trás, não vejo nenhuma nota mais extraordinária que o simples fato de nunca ter perdido a paciência com eles, apesar de viver em tensão e eles em triunfo. Devem ter sido realmente adoráveis, reflito agora, para que eu não os odiasse naqueles dias! Apesar disso, a exasperação não teria finalmente me traído se o alívio tardasse demais a chegar? Pouco importa, porque o alívio chegou. Chamo-o de alívio, embora fosse apenas o alívio que uma quebra traz a uma tensão ou que a irrupção de uma trovoada traz a um dia de calor sufocante. Era, ao menos, uma mudança, e chegou com fúria. CAPÍTULO 14 Caminhávamos para a igreja numa certa manhã de domingo, eu levando Miles ao meu lado e sua irmã seguindo à nossa frente pelo braço da Senhora Grose, bem à vista. Era um dia claro, revigorante, o primeiro dessa espécie por uma temporada; a noite trouxera um toque de geada, e o ar de outono, brilhante e vívido, tornava o repicar dos sinos quase alegre. Foi uma estranha associação de pensamentos que me fez, naquele momento, sentir-me particularmente tomada de gratidão pela obediência de minhas crianças. Por que nunca se rebelavam contra minha inexorável, perpétua companhia? Uma ou outra coisa deu-me a sensação bem íntima de que eu trazia o menino como um alfinete espetado em meu xale e, pelo modo com que meus companheiros marchavam diante de mim, podia até parecer que eu encontrara um meio de impedir qualquer tipo de rebelião. Eu agia como um carcereiro de olho nas possíveis surpresas e fugas. Mas tudo isso pertencia – me refiro à sua magnífica submissão – a um conjunto especial de fatos que eram os mais insondáveis. Vestido em caráter domingueiro pelo alfaiate de seu tio, que tinha carta branca e habilidade para fazer coletes que realçavam o seu ar pomposo de menino, os títulos de independência, os direitos de seu sexo e de sua posição, estavam tão patentes em Miles que, se subitamente ele tivesse reclamado liberdade, eu nada teria a dizer. Pela mais estranha das coincidências, eu pensava em como poderia me defrontar com ele num caso desses, quando a revolução inequivocamente aconteceu. Chamo-a de revolução porque vejo agora que, com o que ele disse, a cortina se ergueu para o último ato de meu terrível drama e a catástrofe se precipitou. “Olhe aqui, minha querida, vamos lá”, ele disse charmosamente, “pode me dizer, por favor, quando afinal vou voltar para o colégio?” Transcrita aqui, sua fala parece bastante inofensiva, e ainda mais na maneira como era proferida por ele, num tom doce, alto, casual, que usava para se dirigir a todos, mas muito em especial à sua eterna preceptora, para quem reservava entonações parecidas a um lançamento de rosas. Havia nelas algo que “fisgava” as pessoas , e naquele momento, fui “fisgada” tão efetivamente que parei de modo brusco, como se uma das árvores do parque houvesse caído no caminho. Havia alguma coisa nova ali, entre nós, e ele sabia perfeitamente que eu a reconhecia, embora, para que eu também o fizesse, ele não precisasse abrir mão de nada do seu ar cândido e encantador. Pude sentir que, a partir do fato de que eu nada respondera, ele já percebera que levava uma vantagem. Fiquei tão lerda para achar alguma coisa que dizer que ele teve tempo de sobra para, depois de um minuto, continuar falando com seu sorriso sugestivo e indeciso: “Você sabe, minha querida, que, para um homem, ficar sempre com uma mulher...!” Trazia nos lábios esse constante “minha querida” ao falar comigo, e nada podia expressar melhor o exato tom de sentimento que eu desejava inspirar a meus alunos do que a familiaridade terna que nele havia. Era tão respeitosamente espontâneo! Mas, oh, como eu sentia, naquele momento, que tinha escolher muito bem as minhas palavras! Recordo que, para ganhar tempo, tentei rir, e pareci notar no belo rostinho dele como eu devia ter ficado feia e esquisita. “E sempre com a mesma mulher?”, respondi. Ele não vacilou nem piscou. A coisa toda estava bem clara entre nós. “Ah,naturalmente, ela é uma dama alegre, ‘perfeita’; mas afinal, sou um homem, não vê? bem – ao menos, já estou ficando.” Fitei-o um pouco mais, comovida com aquela delicadeza. “Sim, você está crescendo.” Oh, mas como me sentia desamparada! Tenho até hoje a triste ideia de que ele sabia muito bem disso e se divertia comigo. “E a senhorita não pode dizer que não tenho sido fantasticamente bom, não é?” Pus minha mão em seu ombro, porque, embora sentisse que seria muito melhor seguir caminhando, não me sentia capaz disso. “Não, não posso dizer, Miles.” “Exceto por aquela noite, a senhorita sabe...!” “Aquela noite qual?” Eu não conseguia olhá-lo nos olhos. “Ora, aquela em que eu desci do quarto – saí da casa.” “Oh, sim. Mas me esqueço por que você fez aquilo.” “Esquece?” – ele falou com a doce extravagância de uma censura infantil. “Ora, era para lhe mostrar que eu podia!” “Oh, sim, você podia.” “E posso novamente.” Senti que poderia, talvez, afinal de contas, manter a cabeça fria. “Naturalmente. Mas não o fará.” “Não, aquilo outra vez não. Não foi nada.” “Não foi nada”, eu disse. “Mas, devemos andar.” Ele retomou os passos comigo, passando sua mão pelo meu ombro. “Então, quando é que vou voltar?” Para responder à pergunta, adotei o ar mais responsável. “Você estava feliz no colégio?” Ele refletiu um pouco. “Oh, fico feliz em toda parte!” “Bom, então”, minha voz tremeu, “se você se sente feliz também aqui...!” “Ah, mas isso não é tudo! Claro, a senhorita sabe muita coisa...” “Está insinuando que sabe tanto quanto eu?”, arrisquei, aproveitando a pausa. “Nem metade do que queria!”, ele confessou com honestidade. “Mas, não é bem isso.” “O que é então?” “Bem – eu queria conhecer mais a vida.” “Entendo; entendo.” A essa altura, chegávamos perto da igreja e de várias pessoas, entre as quais alguns empregados de Bly, que se encaminhavam para ela e que se agrupavam para ver-nos entrar. Apressei nosso passo; eu queria chegar lá antes que a questão entre nós tomasse rumos maiores; refletia ansiosamente que, pelo menos por uma hora, ele teria queficar em silêncio; pensei com cobiça na relativa obscuridade do banco e na ajuda quase espiritual da almofada na qual apoiaria meus joelhos. Eu parecia literalmente estar disputando uma corrida com alguma confusão à qual ele estava quase conseguindo me reduzir, mas vi que ele tinha chegado em primeiro lugar quando, antes que cruzássemos o cemitério da igreja, ele exclamou – “Quero ficar com gente como eu!” Isso me deixou literalmente zonza. “Não há muita gente como você, Miles!”, ri. “Salvo, talvez, a pequena Flora!” “Vai me comparar com uma menininha?” Ouvindo isso, enfraqueci. “Então, você não ama nossa doce Flora?” “Se eu não a amasse – e amasse a senhorita; se eu não...!”, ele repetiu, como se desse um recuo para saltar, mas deixando seu pensamento tão inconcluído que, depois de chegarmos ao portão, uma outra parada, que me impôs pela pressão sobre meu braço, foi inevitável. A Senhora Grose e Flora tinham entrado na igreja, os outros fiéis também o fizeram, e ficamos, por uns minutos, sozinhos em meio aos velhos e enormes túmulos. Detivemo-nos no caminho que partia do portão, junto a uma tumba baixa, oblonga, em formato de mesa. “Sim, se não nos amasse...?” Enquanto eu esperava a resposta, ele olhava para os túmulos. “Bem, a senhorita sabe!”. Mas ele não se moveu, acabando por dizer uma coisa que me fez desabar na laje da tumba, como se eu precisasse, subitamente, de descanso. “Meu tio pensa o mesmo que a senhorita?” Demorei a responder. “Como é que você sabe o que eu penso?” “Ah bem, claro que não sei; é que me incomoda que a senhorita nunca me diga. Mas o que eu quero saber é se ele sabe?” “Sabe o quê, Miles?” “Ora, o que se passa comigo.” Percebi com rapidez que não podia dar a essa pergunta resposta alguma que não implicasse em algum sacrifício para meu patrão. A despeito disso, pareceu-me que todos nós fazíamos, em Bly, sacrifícios o bastante para que a coisa não passasse de um pecado venial. “Eu acho que seu tio não se preocupa muito.” Miles, ouvindo isso, ficou me olhando. “Então, a senhorita não acha que a gente podia fazer com que ele se preocupasse?” “De que jeito?” “Ora, fazendo-o vir.” “Mas, quem é que vai conseguir fazê-lo vir?” “Eu!”, o menino disse com um brilho e uma ênfase extraordinários. Lançou-me um outro olhar carregado com aquela determinação e marchou sozinho para dentro da igreja. CAPÍTULO 15 A questão se encerrou praticamente aí, pois não tive coragem de segui-lo. Era uma lamentável concessão ao meu nervosismo, mas compreender tal coisa não me devolvia a calma. Fiquei lá apenas, sentada em minha tumba, tentando apreender todo o significado do que meu pequeno amigo dissera; quando senti que tinha compreendido a coisa toda, decidira também ir-me embora, alegando depois aos meus alunos e ao resto da congregação o pretexto de que não quisera dar exemplo de atraso. O que eu me dizia acima de tudo era que Miles conseguira uma vantagem sobre mim e que a prova disso, para ele, seria justamente essa embaraçosa ausência. Ele conseguira arrancar de mim que havia algo que eu temia muito e a partir daí poderia sentir-se capaz de fazer uso desse meu medo para ganhar, para executar seus propósitos, mais liberdade. Meu medo era ter que lidar com a intolerável questão dos detalhes de sua expulsão do colégio, pois não era senão a questão atrás de qual os horrores se ocultavam. Que seu tio viesse tratar comigo desse assunto era uma solução que, estritamente falando, eu mesma já devia ter desejado; mas eu tinha tão pouco poder para encarar a feiura e a aflição da coisa que simplesmente adiava e me entregava ao presente. O menino, para minha grande tristeza, estava imensamente certo em seus direitos e mesmo em posição de me dizer: “Ou a senhorita esclarece com meu tutor o mistério dessa interrupção dos meus estudos, ou deixa de esperar que eu viva aqui uma vida que é tão pouco natural para um menino.” O que era pouco natural no menino com quem eu lidava era essa súbita revelação de uma consciência e um plano. Foi o que na verdade me derrotou, o que me impediu de segui-lo. Andei ao redor da igreja hesitando, vacilando; refletia que, junto a ele, já tinha cometido uma falta irreparável. Portanto, não remendaria nada, e seria esforço demasiado procurar lugar ao lado dele no banco: ele estaria mais que nunca confiante para dar-me o braço e fazer-me sentar por uma hora em estreito, silencioso contato para ouvir suas deduções sobre o que conversáramos. Quando parei ao lado da alta janela ao leste e escutei os sons do culto, fui tomada por um impulso que me dominaria por completo, sentia, se eu lhe desse um pouco de estímulo. Eu poderia pôr um fim ao meu padecimento simplesmente desaparecendo. Ali estava minha oportunidade; ninguém me deteria; poderia desistir de tudo – dar minhas costas e recuar. Seria apenas questão de me retirar rapidamente, fazer alguns preparativos, lá na casa, que estaria praticamente desocupada devido aos empregados terem ido à igreja. Ninguém, em resumo, poderia culpar-me se eu apenas saísse desesperadamente de cena. De que me adiantaria fugir no momento se eu ficaria ausente só até o jantar? Este aconteceria dentro de um par de horas, ao fim do qual – previa com clareza – meus pequenos alunos fingiriam um inocente espanto ante meu não aparecimento junto à comitiva. “O que a senhorita fez, sua desobediente, malvadinha? Que foi lhe deu que nos deixou tão preocupados – e confundiu nossa cabeça também, não sabe? – abandonar-nos lá, bem na porta da igreja?” Não poderia enfrentar tais perguntas nem, enquanto ele as formulassem, seus falsos olhinhos adoráveis; contudo, isso era tão exatamente o que deveria acontecer que, à medida que a perspectiva se tornava mais clara para mim, acabei por ir-me embora.Afastei-me, ao menos por aquele momento; saí do cemitério e, refletindo seriamente, fiz o caminho de volta pelo parque. Parecia-me que, ao chegar à casa, já tinha firme a decisão de fugir. A tranquilidade de domingo, que reinava tanto nas cercanias quanto no interior da casa, na qual não encontrei ninguém, ajudou a excitar em mim um senso de oportunidade. Se eu quisesse bater em retirada rapidamente, desse modo, conseguiria fazê-lo sem uma só cena, uma só palavra. Minha rapidez teria que ser notável, contudo, e a questão de arranjar transporte era a mais urgente a resolver. Atormentada, no hall, pelas dificuldades e obstáculos, recordo que me deixei cair ao pé da escada – subitamente desabando ali no primeiro degrau e então, com repulsa, lembrando que foi exatamente naquele lugar que, havia mais de um mês, na escuridão da noite e tão abatida por coisas malignas, eu vira o espectro da mais horrível de todas as mulheres. Diante disso, fui capaz de me dar forças; subi pelo resto do andar superior; perturbada, fui para a sala de estudos, onde havia objetos de minha propriedade que eu teria que levar na fuga. Mas abri a porta apenas para ficar, num relance, com os olhos arregalados. Diante do que vi, cambaleei, tendo que me valer de toda a minha resistência. Sentada em minha própria mesa, à clara luz do meio-dia, vi uma pessoa que, se eu não tivesse tido minha experiência anterior, poderia ter tomado, no primeiro impacto, por alguma empregada que houvesse ficado em casa para tomar conta do lugar e que, aproveitando-se de um raro momento em que não era observada, da mesa da sala de estudos, de minhas canetas, tinta e papel, tinha se empenhado no considerável esforço de escrever para o namorado. Havia um esforço penoso no jeito com que, pousando seus braços na mesa, suas mãos, com evidente cansaço, apoiavam sua cabeça; mas, no momento em que percebi isso, já tinha notado que, a despeito de minha chegada, sua atitude persistia estranhamente. Foi então que, ao mudar de postura – com o simples ato de anunciar-se – sua identidade revelou-se por completo. Ela ergueu-se, não como se tivesse me ouvido, mas com uma grande melancolia cheia de indiferença e desapego, e, a cerca de uma dúzia de passos à minha distância, ali estava minha vil antecessora. Desonrada e trágica, desvendava-se toda diante de mim; mas mesmo quando a fixei e, pela memória, me certifiquei de sua identidade, a imagem se desvaneceu. Escura como a meia-noite em seu vestido negro, em sua desfigurada beleza e sua inexprimível desgraça, ela me fitou tempo suficiente para parecer dizer que seu direito de sentar-se à minha mesa era igual ao meu. Enquanto esses instantes duraram, na verdade, tive a sensação arrepiante e extraordinária de que eu sim era a intrusa. Foi protestando furiosamente contra isso que, dirigindo-me a ela – “Mulher terrível, miserável!” – ouvi-me rompendo num grito que, saindo pela porta aberta, ressoou pelo longo corredor e pela casa vazia. Ela olhou-me como se me ouvisse, mas eu me recuperei, abri as janelas e purifiquei o ar. Dentro em pouco, nada havia no quarto senão a claridade do sol e a convicção de que eu devia ficar. CAPÍTULO 16 Tinha esperado com tanta certeza que a volta dos meus alunos seria marcada por alguma cobrança que fiquei perturbada ao ter que constatar que ficaram silenciosos em relação à minha ausência. Ao invés de alegremente me denunciar e acariciar, eles não fizeram alusão alguma sobre a minha falta, e fiquei restrita a perceber que também ela nada dissera, ao observar a estranha expressão da Senhora Grose. Observei-a para verificar se eles, de algum modo, não tinham-na subornado para que ficasse em silêncio; um silêncio que, de algum modo, eu daria um jeito de quebrar na primeira oportunidade em que ficássemos a sós. Essa oportunidade chegou antes do chá: consegui cinco minutos com ela no aposento da governanta, onde, à luz do crepúsculo, em meio a um cheiro de pão recém-saído do forno, o lugar todo asseado e enfeitado, encontrei-a tomada por melancólica placidez, sentada diante do fogo. Ainda a vejo assim, assim a recordo melhor: fitando a chama dali de sua cadeira no aposento sombrio, polido, uma grande imagem clara de coisas postas à parte – de gavetas fechadas a chave e de repouso irremediável. “Oh, sim, pediram-me para não dizer nada; e para agradá-los – enquanto estavam lá – é claro que eu prometi. Mas o que aconteceu com a senhorita?” “Fui com vocês apenas para dar uma caminhada”, eu disse. “Tive que voltar para encontrar um amigo.” Ela mostrou-se surpresa. “Um amigo – a senhorita?” “Oh, sim, tenho um par deles!”, ri. “Mas, as crianças não lhe deram uma razão?” “Para não mencionar que nos deixara? Sim; disseram que a senhorita ia preferir assim. Prefere mesmo?” A expressão do meu rosto a entristeceu. “Não prefiro, lastimo!” Mas, depois de um instante, acrescentei: “Eles disseram por que eu haveria de preferir?” “Não; o patrãozinho Miles disse apenas ‘Não devemos fazer nada além do que ela gosta!’” “Que bom se ele me fizesse o que gosto! E o que disse Flora?” “Foi uma doçura. Ela disse ‘Oh, claro, claro’ – e eu disse o mesmo.” Refleti um momento. “A senhora foi uma doçura também – pareço estar ouvindo os três. Mas, de qualquer maneira, entre Miles e eu, tudo ficou claro.” “Tudo claro?”. Minha companheira fitou-me. “Mas, o que, senhorita?” “Tudo. Não importa. Tomei uma decisão. Vim para cá, minha cara”, continuei, “para ter uma conversa com a Senhorita Jessel.” A essa altura, eu tinha estabelecido o hábito de primeiro ficar com a Senhora Grose literalmente em minhas mãos para poder proferir esse nome; de modo que, mesmo agora, enquanto ela piscava corajosamente sob o impacto de minhas palavras, conseguia mantê-la relativamente firme. “Uma conversa! Quer dizer que ela falou?”“Foi como se falasse. Encontrei-a, ao retornar, na sala de estudos.” “E o que ela falou?”, posso ouvir ainda a boa mulher, e a candura de sua estupefação. “Que sofre os tormentos... !” Foi isso, na verdade, que fez com que ela, preenchendo o quadro em sua mente, ficasse boquiaberta. “Quer dizer” – vacilou – “dos perdidos?” “Dos perdidos. Das almas penadas. E é por isso que, para compartilhá-los...” eu própria vacilei diante do horror da coisa. Mas minha companheira, dotada de menos imaginação, me susteve. “Para compartilhá-los...?” “Ela quer Flora.” A Senhora Grose, quando eu disse isso, teria fugido, se eu não estivesse prevenida. Mantive-a ali, para provar que estava. “Mas, como eu já lhe disse, não importa.” “Porque a senhorita tomou uma decisão? Mas, decidiu o quê?” “Tudo.” “E o que a senhorita chama de ‘tudo’?” “Ora, mandar chamar o tio.” “Oh, senhorita, faça isso, por piedade”, minha amiga gemeu. “Ah, mas eu vou chamar, eu vou! Vejo que é o único jeito. O que está ‘claro’ com Miles, como eu lhe disse, é que, se ele pensa que eu tenho medo disso – e tem ideias do que pode ganhar com esse meu medo – ele verá que está enganado. Sim, sim; o tio vai saber comigo aqui (e diante do próprio menino, se necessário for) se devo ser censurada pelo fato de não fazer nada para que ele tivesse um outro colégio.” “Sim, senhorita...”, minha amiga insistiu. “Bem, existe um motivo medonho.” Havia tantos motivos desse tipo para a minha pobre companheira que era compreensível que ela fosse vaga. “Mas – qual?” “Ora, a carta que veio de lá do primeiro.” “Vai mostrá-la ao patrão?” “Eu devia tê-lo feito no instante em que a recebi.” “Oh, não!”, disse a Senhora Grose com decisão. “Vou mostrar para ele”, continuei, inexorável, “que não posso me ocupar de uma questão dessas, de um menino que foi expulso...” “Por uma razão que nunca chegamos a saber qual!”, a Senhora Grose declarou. “Por perversidade. Que outro motivo haveria – sendo ele tão inteligente e bonito e perfeito? É estúpido? É sujo? É débil? É doente? Ele é primoroso – portanto, só pode ser isso;e esse motivo explicaria tudo. Afinal”, eu disse, “é culpa do próprio tio. Se ele deixava aqui esse tipo de gente...” “Ele não sabia nada a respeito deles. A culpa é minha.” “Bem, a senhora não pagará por isso”, respondi. “As crianças também não devem pagar!”, ela respondeu enfaticamente. Fiquei em silêncio por um instante; olhamos uma para a outra. “Então, o que vou dizer a ele?” “A senhorita não precisa dizer nada. Eu direi.” Avaliei a resposta. “Quer dizer que a senhora escreverá...?” Lembrando que ela não sabia, voltei a mim. “Como é que a senhora se comunica?” “Falo ao mordomo. Ele escreve.” “E a senhora gostaria que ele escrevesse a nossa história?” Minha pergunta tinha uma força sarcástica que não era de todo intencional, e fez com que ela, depois de um momento, perdesse o controle. As lágrimas voltaram a seus olhos. “Ah, a senhorita escreverá!” “Bem – hoje à noite o farei”, respondi finalmente; e, com isso, nos separamos. CAPÍTULO 17 À noite, cheguei a escrever um começo de carta. O tempo mudara bastante, lá fora soprava um vento forte e, debaixo da lâmpada, no meu quarto, com Flora dormindo em paz ao meu lado, fiquei durante longo tempo diante de uma folha de papel em branco, escutando o açoite da chuva e o fustigar da ventania. Finalmente saí, levando um castiçal; atravessei o corredor e fiquei um minuto escutando à porta do quarto de Miles. Movida por minha obsessão interminável, eu pretendia descobrir algum sinal de ele não estar dormindo coisa nenhuma, e realmente consegui captar um, mas não da maneira como tinha esperado. A voz do menino retiniu. “Vamos lá, a senhorita aí! – pode entrar.” Foi uma nota alegre no ambiente sombrio! Entrei com meu castiçal e encontrei-o bem desperto e à vontade, na cama. “Bem, o que a senhorita está fazendo por aí?”, ele perguntou com uma graça efusiva na qual me ocorreu que a Senhora Grose, se estivesse ali, teria procurado em vão uma prova de que as coisas tinham ficado “claras”. Fiquei diante dele com meu castiçal. “Como é que sabia que eu estava ali?” “Ora, porque escutei a senhorita. Imaginou por acaso que não fazia barulho? Pois fez, como uma tropa de cavalaria!”, ele riu maravilhosamente. “Então, não estava dormindo?” “Não muito! Estava acordado e pensava.” Eu pusera meu castiçal, de propósito, um pouco mais além, e então, enquanto ele estendia sua habitual mão amigável para mim, sentei-me à beira de sua cama. “O que é”, perguntei, “que você pensava?” “Em que mais poderia pensar, querida, além da senhorita?” “Ah, não precisava tudo isso para me deixar orgulhosa! Teria preferido muito mais que estivesse dormindo.” “Bem, eu também pensava, sabe, nesse nosso estranho assunto.” Percebi que sua mãozinha firme esfriara. “Que estranho assunto, Miles?” “Ora, o jeito que a senhorita me educa. E tudo mais!” Fiquei com a respiração suspensa por um momento, e mesmo à luz incerta da vela, havia claridade suficiente para mostrar como ele sorria para mim dali de seu travesseiro. “Que é que você quer dizer com tudo mais?” “Oh, a senhorita sabe, a senhorita sabe.” Não consegui dizer nada por um minuto, embora sentisse, enquanto apertava a sua mão e nossos olhos continuavam a fitar-se, que meu silêncio tinha todo o jeito de aceitar a sua imputação e que nada no mundo real todo era talvez, naquele momento, tão fabuloso quanto nossa verdadeira relação. “Você vai voltar para o colégio com certeza”, eu disse, “se é isso que lhe incomoda. Mas não para aquele – vamos achar outro, um que seja melhor. Como é que eupodia saber que isso lhe incomodava, essa questão, se você nunca me contou, se nunca me falava nada?” Seu rosto claro, atento, aureolado de suave brancura, tornou-o por um momento tão suplicante como algum paciente ansioso de um hospital infantil; e, quando a comparação me ocorreu, senti que teria dado tudo que possuísse neste mundo para ser a enfermeira ou irmã de caridade que conseguisse curá-lo. Bem, mesmo do jeito que as coisas estavam, talvez eu conseguisse ajudá-lo! “Você sabe que nunca me disse uma só palavra sobre seu colégio – me refiro ao velho; nunca o mencionou de modo algum?” Pareceu refletir; sorria com o encantamento de sempre. Mas, claramente procurava ganhar tempo; ele esperava, suplicava por orientação. “Não falei nada?” Não esperava que eu o ajudasse – esperava ajuda da coisa que eu conhecera! Alguma coisa em seu tom e na expressão de seu rosto, enquanto me dizia isso, fez com que meu coração doesse com uma angústia tal como eu nunca sentira; tão indizivelmente tocante era ver seu pequeno cérebro confuso e todos os seus pequenos recursos mentais forçados a representar, oprimidos pelo feitiço que o contaminara, um papel que fosse inocente e lógico. “Não, nunca – em nenhum momento desde a hora que você voltou de lá. Você nunca mencionou nenhum de seus professores, nenhum de seus colegas, nem a menor coisa que lhe tivesse acontecido lá. Nunca, pequeno Miles – não, nunca – me deu um traço do que pudesse ter-lhe acontecido no colégio. Portanto, pode imaginar como estou no escuro. Até que falou, daquele jeito, hoje cedo, não tinha, desde a primeira vez em que lhe vi, feito a mais vaga referência que fosse a nada de sua vida anterior. Você parecia aceitar perfeitamente o presente.” Era extraordinário como minha certeza absoluta de sua precocidade secreta (ou como quer que eu possa denominar o veneno de uma influência a que só me referia por meias palavras) fazia com que ele, apesar do leve sopro de sua perturbação interior, parecesse tão acessível como uma pessoa mais velha – impunha-o a mim como se fossemos intelectualmente iguais. “Eu pensei que você quisesse continuar a ser como você é.” Tive a impressão de que, ao ouvir isso, ficou um pouco ruborizado. De qualquer modo, à maneira de um convalescente um pouco fatigado, balançou a cabeça languidamente. “Eu não quero. Eu quero é ir-me embora.” “Está cansado de Bly?” “Oh, não, eu gosto de Bly.” “Bem, então... ?” “Oh, a senhorita sabe o que um menino quer!” Senti que não sabia tão bem como ele, e busquei um refúgio temporário. “Você quer ir ficar com seu tio?” De novo, ouvindo isso, com seu doce rostinho irônico, ele mexeu-se no travesseiro. “Ah, a senhorita não vai conseguir se livrar com essa!” Fiquei em silêncio um pouquinho, e penso que fui eu, nesse momento, quem mudou de cor. “Meu querido, eu não estou querendo me livrar!” “Não pode, mesmo que queira. Não pode, não pode!” – ele exclamou, com os belosolhos fitos em mim. “Meu tio virá, e vocês terão que arrumar as coisas direitinho.” “Se nós o fizermos”, respondi com certo espírito, “pode estar certo que será para levar você embora.” “Bem, não compreende que é para isso mesmo que eu estou me preparando? A senhorita terá que contar a ele – contar que foi negligente: terá que contar a ele um monte de coisas!” A exultação com que disse isso ajudou-me de algum modo, naquele momento, a procurar tirar dele um pouco mais. “E quantas coisas você terá que lhe contar, Miles? Ele na certa lhe fará perguntas!” Refletiu. “É possível. Mas, que coisas?” “As que você nunca me contou. Para que ele possa decidir o que fazer com você. Ele não pode lhe mandar de volta para lá.” “Oh, eu não quero voltar, mesmo!”, interrompeu. “Quero um ambiente novo.” Ele disse isso com serenidade admirável, com uma satisfação em que nada havia de condenável; e sem dúvida era esse tom o que mais sugeria para mim a pungência, a anormalidade da tragédia infantil que seria a sua volta ao colégio ao fim de três meses com toda essa bravata e ainda mais desonra. Oprimiu-me, então, a certeza de que eu não seria mais capaz de suportar aquilo, e não me contive mais. Lancei-me sobre ele e, na ternura de minha compaixão, abracei-o. “Meu pequeno querido, meu pequeno querido...!” Meu rosto estava colado ao dele, e ele me deixou beijá-lo, considerando a efusão com bom-humor indulgente. “E aí, minha velha senhora?” “Não há nada – nada mesmo que você queira me contar?” Ele recuou um pouco, deixando o olhar vagar sobre a parede e ficou com a mão erguida para olhar, como fazem as crianças enfermas. “Eu lhe contei – eu lhe contei hoje de manhã.” Oh, eu sentia por ele! “Que você quer apenas que eu não o aborreça?” Ele olhou-me mais detidamente, como que reconhecendo que eu finalmente o entendera; então respondeu, sempre gentil: “Que me deixe em paz”. Havia nessa resposta um toque peculiar de dignidade, algo que me fez soltá-lo, embora, enquanto lentamente me levantava, ainda me demorasse ao seu lado. Deus sabe que nunca desejei importuná-lo, mas senti, depois disso, que simplesmente dar as costas a ele seria abandoná-lo ou, para ser mais verdadeira, perdê-lo. “Há pouco comecei uma carta para o seu tio”, disse. “Bem, então, termine-a!” Esperei um minuto. “O que aconteceu antes?” Ergueu os olhos novamente para mim. “Antes de quê?” “Antes de você voltar. E antes da sua ida.”Permaneceu em silêncio por um momento, mas continuou a fitar-me. “O que aconteceu?” O som de suas palavras, no qual me pareceu ter captado pela primeira vez um pequeno tremor de aprovação consciente, me afetou – fez com que eu caísse de joelhos ao lado da cama e agarrasse mais uma vez a oportunidade de possuí-lo. “Querido Miles, querido Miles, se você soubesse como eu quero ajudá-lo! É só isso, nada mais que isso o que quero, e eu preferiria morrer a lhe causar algum sofrimento ou lhe fazer algum dano – morrer a ferir um fio que fosse de seus cabelos. Querido Miles” – continuei, mesmo correndo o risco de ir muito longe – “Eu só quero que você me ajude a salvá-lo!”. Mas soube imediatamente que havia me excedido. A resposta ao meu apelo foi instantânea, mas veio na forma de um pé-de-vento e um calafrio, uma rajada de ar gelado e um tremor no quarto tão grande como se, sob efeito do vendaval, os gonzos das janelas estalassem. O menino soltou um longo grito estridente que, confundindo-se com o resto do estrépito, poderia ser tomado, indistintamente, embora eu estivesse tão próxima a ele, por uma nota de júbilo ou de terror. Fiquei de pé rapidamente e tomei consciência da escuridão. Assim ficamos por um momento, enquanto eu, lançando o olhar pelo quarto, vi que as cortinas estendidas estavam imóveis e a janela firmemente fechada. “Ora, a vela se apagou!”, então exclamei. “Fui eu quem a soprou, querida!” – respondeu Miles. CAPÍTULO 18 No dia seguinte, depois das aulas, a Senhora Grose encontrou um momento para perguntar-me baixinho: “Então, a senhorita escreveu?” “Sim – eu escrevi.” Mas não acrescentei – naquele momento – que a carta, selada e endereçada, continuava no meu bolso. Haveria tempo suficiente para enviá-la antes que o mensageiro fosse à aldeia. Entrementes, tinha havido, da parte de meus alunos, uma manhã brilhante e exemplar como nenhuma outra. Era exatamente como se ambos tivessem decidido, de coração, apagar os indícios de qualquer atrito recente que pudesse ter ocorrido. Desempenharam estonteantes proezas em aritmética, elevando-se muito além de meu fraco alcance, e perpetraram, com o espírito mais animado que nunca, peças geográficas e históricas. Era visível em Miles a particular maneira com que ele parecia, naturalmente, querer demonstrar que podia sobrepujar-me com facilidade. Esse menino, na minha memória, vive ainda num cenário de beleza e miséria que as palavras não conseguem traduzir; havia uma distinção toda própria em cada impulso que ele revelava; nunca houve uma pequena criatura natural, toda composta de franqueza e liberdade para um olhar não iniciado, que fosse assim tão engenhosa e tão extraordinariamente cavalheiresca. Eu tinha que ficar em guarda perpétua contra o impulso de me deixar deslumbrar pela contemplação dentro da qual minha visão experiente me traíra; controlar a facilidade com que caía em olhares de admiração gratuita e suspiros desanimados, pois que, com os últimos, eu constantemente abordava e desistia de entender o enigma do que poderia ter feito esse pequeno gentleman para merecer um tal castigo. Dizia a mim mesma que, pelo negro prodígio que eu bem conhecera, a imaginação de todo mal abrira-se totalmente para ele: todo o senso de justiça que havia em mim palpitava dolorosamente na procura da prova de que esse mal havia florescido em algum ato concreto. De todo modo, nunca tinha sido tão pouco cavalheiro que quando, depois de nosso jantar antecipado nesse dia tenebroso, ele se aproximou de mim e perguntou-me se não gostaria que, por uma meia hora, me executasse alguma música. David tocando para Saul não mostraria um senso de ocasião mais refinado. Foi literalmente uma encantadora exibição de tato, de magnanimidade, e equivalia quase a dizer sem reservas: “Os verdadeiros cavaleiros sobre os quais apreciamos ler nunca levam longe demais uma vantagem. Sei o que a senhorita quer dizer agora: quer dizer que – para ser deixada em paz e não vigiada – deixará de espionar-me e preocupar-se comigo, não me manterá tão por perto, deixará que eu vá e venha à vontade. Bem, eu ‘venho’, como vê – mas, não vou! Haverá tempo de sobra para que eu possa fazê-lo. Fico realmente deleitado com sua companhia, e quero apenas lhe provar que lutava por uma questão de princípio.” Pode-se imaginar se eu resisti a esse apelo ou deixei de acompanhá-lo novamente, de mãos dadas, até a sala de estudos. Ele sentou-se ao velho piano e tocou como nunca tinha tocado; e se houver os que digam que era melhor que estivesse jogando futebol, responderei apenas que concordo com eles. Porque, ao fim de um tempo que, sob a influência dele eu cessara de sentir passar, levantei-me com a estranha sensação de haver literalmente dormido em serviço. Foi depois de lanchar, e junto à lareira da sala de estudos, e eu ainda não tinha, na verdade, dormido: fizera na verdade uma coisa pior – tinha esquecido.Onde, nesse tempo todo, tinha ficado Flora? Quando coloquei a pergunta para Miles, tocou um pouquinho mais antes de responder, e por fim disse apenas: “Ora, minha querida, como posso eu saber?” e ainda por cima rompeu numa gargalhada satisfeita, a qual, logo a seguir, como que fazendo uma espécie de acompanhamento vocal, emendou com uma canção incoerente e extravagante. Subi direto para meu quarto, mas sua irmã não estava lá; depois, antes de descer, verifiquei vários outros. Como não estava em parte alguma por ali, certamente devia estar com a Senhora Grose, a quem, tranquilizada pela ideia, fui procurar. Encontrei-a onde a encontrara na noite anterior, mas ela recebeu minha pergunta com um ar de alheia e assustada ignorância. Tinha apenas suposto que, depois do repasto, eu saíra com ambas as crianças; no que estava inteiramente correta, porque essa fora a primeira vez que eu permitira que a menininha ficasse fora de minha vista sem alguma providência especial. Naturalmente, achei que ela devia estar com as empregadas, de modo que o imediato a fazer era procurá-la sem dar um ar de alarme. Planejamos a coisa prontamente entre nós; mas quando, depois de dez minutos e em obediência ao plano, nos reencontramos no hall, foi apenas para relatar-nos mutuamente, após inquirições reservadas, que tínhamos ambas falhado e não a encontráramos. Por um minuto ali, fora de observação, trocamos nossos mudos sustos, e eu senti com que alto interesse a minha amiga me devolveu tudo que eu já tinha lhe transmitido. “Deve estar lá em cima”, ela disse – “num dos quartos que a senhorita não verificou.” “Não; ela está longe.” Eu já tinha compreendido. “Ela saiu.” A Senhora Grose ficou surpresa. “Sem chapéu?” Eu, naturalmente, também estava perplexa. “Aquela mulher não anda sempre sem chapéu?” “Flora está com ela?” “Está com ela!”, declarei. “Precisamos achá-las.” Minha mão estava no ombro de minha amiga, mas, naquele momento, confrontada com a seriedade da coisa, ela deixou de responder à minha pressão. Ao contrário, ela só se comunicava, ali, com sua própria inquietação. “E onde está o patrãozinho Miles?” “Oh, ele está com Quint. Estão lá na sala de estudos.” “Por Deus, senhorita!” Minha visão, eu estava certa – e, portanto, meu próprio tom – nunca tinha atingido tamanha segurança. “O truque foi feito”, continuei; “eles atingiram sucesso em seu plano. Ele achou o jeito mais divino de me manter imóvel enquanto ela fugia.” “Divino?”, a Senhora Grose repetiu, desconcertada. “Infernal, que seja!”, eu retruquei quase alegremente. “Ele também arranjou um jeito de escapar. Mas, a senhora venha comigo!” Ela lançou um olhar desesperado para o andar superior. “A senhorita vai deixá-lo...?”“Com Quint por tanto tempo? Sim – não me importa, agora.” Ela sempre terminava, nesses momentos, por pegar a minha mão, e dessa maneira conseguia ainda me deter. Mas depois de ficar boquiaberta por um instante com a minha repentina resignação, perguntou ansiosamente: “Por causa da carta?” Como resposta, rapidamente apalpei a carta, tirei-a do bolso, mostrei-a, e depois, e livrando-me da mão, fui em frente e coloquei-a sobre a grande mesa do hall. “Luke a levará”, disse, ao voltar. Atingi a porta da frente e abri-a; já estava nos degraus. Minha companheira ainda hesitava: a tempestade da noite e da manhã tinha cessado, mas a tarde estava úmida e cinzenta. Desci para o passeio enquanto ela permanecia junto à porta. “Vai sair sem nada?” “Que me importa, se a menina também saiu deste jeito? Não posso perder tempo me vestindo”, exclamei, “e se a senhora quer fazê-lo, pois bem, já vou indo. Enquanto isso, dê uma olhada lá no andar superior”. “Com eles lá?” Oh, ao ouvir isso, a mulher mais que depressa me alcançou! CAPÍTULO 19 Fomos diretamente para o lago, como era chamado em Bly, e ouso dizer corretamente chamado, embora reflita agora que podia ser não mais que um lençol de água menos notável do que parecia aos meus olhos não viajados. Meu conhecimento de lagos era pequeno, e aquele de Bly, em todos os casos, nas poucas ocasiões em que, protegida pelos meus alunos, consenti em desafiar a sua superfície no velho barco de fundo chato que estava lá atracado para nosso uso, impressionou-me tanto pela extensão quanto pelas águas agitadas. O lugar usual de embarcação era a metade de uma milha distante da casa, mas eu tinha uma convicção profunda de que Flora, estivesse onde estivesse, não estaria por perto. Ela não tinha escapulido de mim nenhuma vez para qualquer pequena aventura, e, desde o dia daquela especial que eu compartilhara com ela às margens do lago, fiquei conhecendo, em nossas caminhadas, o lado para o qual ela parecia mais inclinada a seguir. Era por causa desse conhecimento que eu dava agora aos passos da Senhora Grose uma direção tão precisa – um rumo que ela imediatamente percebeu, opondo-lhe uma resistência que me revelou que ela fora de novo enganada. “Está indo para a água, senhorita? – acha que ela está em ... ?” “Ela pode estar, embora a profundeza não seja grande em nenhum ponto, creio. Mas o que me parece mais provável é que ela esteja no lugar de onde, no outro dia, vimos juntas o que lhe contei.” “Naquela vez que ela fingiu não ver...?” “Com aquele espantoso autodomínio! Sempre tive certeza de que ela queria voltar para lá sozinha. E agora o seu irmão arranjou a coisa direitinho para ela.” A Senhora Grose continuava no mesmo lugar onde tinha parado. “A senhorita supõe que as crianças conversam sobre eles?” Eu tinha uma tal confiança para responder a isso! “Dizem coisas que, se pudéssemos ouvir, ficaríamos simplesmente apavoradas.” “E se ela está lá... ?” “Sim?” “Então a Senhorita Jessel também estará?” “Sem dúvida. A senhora verá.” “Oh, muito obrigada!”, minha amiga exclamou, plantando-se tão firmemente no lugar que eu, ao notá-lo, fui em frente sem contar com ela. No momento em que cheguei ao lago, contudo, ela estava bem atrás de mim, e eu compreendi que, em sua apreensão, ela sentia que, acontecesse o que me acontecesse, na minha companhia bem exposta ela correria perigo menor. Soltou um gemido de alívio quando por fim chegamos perto da maior parte da água sem obter um só vislumbre da criança. Não havia nenhum indício de Flora naquele lado mais próximo da margem onde a observara daquela vez com tanto assombro, e nada também no lado oposto, onde, preservado por uma orla de aproximadamente vinte jardas, um capão de mato entrava pela água. O lago, de forma oblonga, tinha tão pouca largura em relação ao seucomprimento que, com seus extremos fora de vista, poderia ser tomado por um riacho. Olhávamos para a extensão deserta, e senti o que sugeriam os olhos de minha amiga. Sabia o que ela queria me dizer e repliquei movendo a cabeça negativamente. “Não, não, espere! Ela tomou o barco.” Minha companheira fitou o lugar de atracação, que estava vazio, e lançou outro olhar sobre o lago. “Então, onde ele está?” “Não conseguirmos vê-lo é a mais forte das provas. Ela o usou para atravessar e, depois, fez o que pôde para escondê-lo.” “Tudo isso sozinha – aquela menina?” “Ela não está sozinha, e nesses momentos não é uma menina: ela é uma mulher velha, velha.” Olhei atentamente para toda a margem visível enquanto a Senhora Grose se afundava novamente, diante do elemento estranho que eu lhe oferecia, numa de suas atitudes de submissão; depois, sugeri que o barco poderia perfeitamente estar num pequeno refúgio formado por um dos recessos do lago, uma reentrância disfarçada, pelo lado mais próximo, por um avanço da margem e por uma moita de arbustos que crescia junto à água. “Mas, se o barco está lá, onde diabos poderá estar ela?” – minha companheira perguntou ansiosamente. “É precisamente o que devemos descobrir.” E comecei a andar depressa. “Rodeando todo o lago?” “Certamente, longe que seja. Não vai nos tomar uns dez minutos, mas é longe o bastante para fazer com que ela preferisse não ir a pé. Ela atravessou-o diretamente.” “Senhor!”, exclamou minha amiga novamente; o encadeamento de minha lógica era sempre excessivo para ela. Fê-la grudar em meus calcanhares outra vez, e quando já tínhamos já percorrido metade do caminho – um processo tortuoso, cansativo, por um terreno cheio de irregularidades e por uma senda em que a vegetação muito alta era um obstáculo – dei-lhe uma trégua para respirar. Amparei-a com um braço reconhecido, assegurando-a que podia ser de grande ajuda para mim; isso nos reanimou, de modo que dentro de poucos minutos, atingimos um ponto de onde constatamos que o barco estava mesmo onde eu o supusera. Fora deixado intencionalmente tanto quanto possível fora de vista e estava amarrado a uma das estacas de uma cerca que, bem ali, vinha até à beira do lago valendo como ajuda para o desembarque. Reconheci, quando olhei para o par de curtos e grossos remos, tirados com segurança da água, a natureza prodigiosa do que seria uma proeza para uma menininha; mas, a essa altura, eu já tinha vivido muitos assombros e perdido o fôlego por razões muito mais intensas. Havia um portão na cerca, pelo qual nós passamos, e isso nos levou, depois de um intervalo mínimo, para campo aberto. Então, exclamamos juntas, imediatamente: “Lá está ela!” Flora, a pouca distância de nós, estava sobre a relva e sorria como se sua travessura agora tivesse se completado. Contudo, o que fez a seguir foi abaixar-se e apanhar, como se isso fosse toda a razão pela qual se encontrava ali – um grande e feio ramalhete de fetos murchos.Imediatamente tive a certeza de que ela saíra do meio do mato. Esperou por nós, sem dar um único passo, e me dei conta da rara solenidade com que nos aproximamos dela. Ela sorria e sorria, e nos olhamos; mas tudo foi feito num silêncio que, a essa altura, se tornara ameaçador. A Senhora Grose foi a primeira a quebrar o encanto: ajoelhou-se e, encostando a criança no seu peito, estreitou num longo abraço o corpo terno e pequenino. Enquanto essa silenciosa efusão durou, eu fiquei apenas observando – o que fiz com mais decisão assim que percebi o rosto de Flora me espiando por sobre os ombros de minha companheira. Era sério agora – a agitação alegre o deixara; mas isso fortalecia a angústia com que naquele momento eu invejava a simplicidade da relação da Senhora Grose com a menina. Mas, nesses momentos, nada mais se passou entre nós exceto que Flora deixou cair no chão seu ridículo ramalhete de fetos. O que eu e ela tínhamos virtualmente dito uma a outra era que os pretextos eram inúteis agora. Quando a Senhora Grose finalmente levantou-se, continuou a segurar a mão da menina, de modo que as duas estavam ainda diante de mim; e a singular reticência dessa comunhão era ainda mais evidenciada pelo olhar franco que ela me lançou. “Serei enforcada”, dizia o olhar, “se me fizerem falar!” Foi Flora que, olhando para mim com cândido espanto, falou primeiro. Ela estranhara nossa cabeça descoberta. “Ora, onde estão as suas coisas?” “E onde estão as suas, minha querida?”, respondi prontamente. Ela tinha recuperado sua alegria, e pareceu tomar essa resposta como suficiente. “E onde está Miles?”, continuou. Havia algo na pequena desfaçatez que demonstrava com isso que acabou comigo: essas três palavras ditas por ela foram, num lampejo fulgurante como o desembainhar de uma espada, a gota d´água da taça que, por semanas e semanas, eu segurara alta e cheia até às bordas e que agora, mesmo antes de falar, sentia transbordar em dilúvio. “Eu responderei se você me disser” – surpreendi-me dizendo, e ouvindo o tremor com que o dizia. “Bem, o quê?” A ansiedade da Senhora Grose me fulminava, mas era tarde demais agora, e eu fiz a pergunta delicadamente. “Onde está a Senhorita Jessel, minha querida?” CAPÍTULO 20 Tal como no cemitério da igreja com Miles, a coisa toda desabou sobre nós. Por mais que eu levasse em conta que esse nome nunca havia sido pronunciado em nosso convívio, o rápido, dolorido clarão com que o rosto da menina o recebeu fez com que minha violação do silêncio se assemelhasse a um espatifar de vidraça. Juntou-se a isso o brado de intervenção, como se para atenuar o impacto, com que a Senhora Grose, no mesmo instante, pronunciou-se contra minha violência – o grito de uma criatura assustada, ou melhor, ferida, o qual, por sua vez, dentro de poucos segundos, foi completado por um ofego de minha parte. Agarrei o braço de minha companheira. “Ela está ali, ela está ali!” A Senhorita Jessel estava diante de nós na margem oposta exatamente como ficara na outra vez, e eu recordo, estranhamente, como a primeira sensação que aquilo me produziu, ter tido um estremecimento de alegria por contar finalmente com uma prova. Ela estava lá para a pobre e apavorada Senhora Grose, mas estava lá muito mais por Flora; e nenhum momento de meu tempo monstruoso foi talvez tão extraordinário quanto esse em que conscientemente dirigi a ela – com a sensação de que, embora não passasse de um pálido e ávido demônio, poderia captá-la e entendê-la – uma inarticulada mensagem de agradecimento. Ela se plantava ereta no lugar que eu e minha amiga tínhamos há pouco deixado, e não havia, no longo alcance de seu desejo, nenhum milímetro de sua maldade que não se irradiasse. Essa primeira nitidez de visão e emoção foi coisa de poucos segundos, durante os quais o fato de a Senhora Grose olhar como que ofuscada para onde eu apontava atingiu-me como um sinal infalível de que ela finalmente também via, assim como fez com que meus olhos se precipitassem sobre a menina. A revelação que tive então da maneira como Flora era afetada por aquilo me alarmou, na verdade, muito mais do que me alarmaria senti-la simplesmente agitada, pois um terror direto era naturalmente o que eu esperava agora. Preparada e bem em guarda como em verdade nossa busca a fizera ficar, ela reprimia qualquer manifestação que pudesse traí-la; portanto, fiquei abalada ali pela percepção clara de que ela se portava de uma maneira que eu não previra. Vê-la assim, sem um único tremor no pequeno rosto rosado, sem nem mesmo fingir dar uma olhada na direção do fenômeno que eu anunciara, mas, ao contrário, dirigindo a mim uma expressão de dura, tranquila seriedade, uma expressão absolutamente nova e sem precedentes que parecia uma leitura e uma acusação e um julgamento de minha atitude – esse foi um golpe que de um algum modo a transformou na própria presença que podia me fazer recuar. Recuei, embora minha certeza de que ela tinha visto tudo nunca foi maior do que naquele momento, e, na necessidade premente de defender- me, invoquei com paixão o seu testemunho. “Ela está lá, sua coisinha infeliz – lá, lá, lá, e você a vê tão bem como me vê aqui!” Há pouco dissera à Senhora Grose que nesses momentos ela não era uma criança, mas uma mulher velha, velha, e essa descrição não poderia ser mais claramente confirmada do que pela maneira com a qual, em resposta a meu pedido, ela simplesmente me mostrou, sem uma concessão, sem uma admissão de seus olhos, uma fisionomia de profunda e crescente reprovação, que se fixou por completo. A essa altura, eu estava – se posso resumir o que acontecia – mais apavorada com o que podia denominar a sua maneira do que com qualquer outra coisa, embora, ao mesmo tempo, tivesse percebido que aSenhora Grose também, e muito estranhamente, já não era apoio com que eu pudesse contar. Minha idosa companheira, no momento seguinte, apagou de seu rosto tudo que não fosse um afogueamento e um protesto alto, indignado, um jorro de intensa desaprovação. “Que modos pavorosos, senhorita! Onde diabos a senhorita vê alguma coisa?” Eu só conseguia agarrar o seu braço mais nervosamente, porque, mesmo enquanto ela falava, a hedionda e patente presença lá estava, sem sofrer obscurecimento e sem recuar. Tinha durado um minuto, e durara enquanto eu continuava, agarrando a minha companheira, confiando nela e mostrando a aparição a ela, insistindo com minha mão apontada. “Você não a vê exatamente como nós a vemos? – quer dizer que não a vê agora – agora? Ela é tão clara como um fogaréu! Olhe apenas, caríssima, olhe ...!” Ela olhou, do mesmo modo que eu o fazia, e deu-me, com um gemido profundo de negação, repulsa, compaixão – uma mistura de sua pena com seu alívio por ter escapado a ver – uma sensação, comovente para mim mesmo então, de que teria me apoiado se pudesse. Eu bem devia estar necessitada de apoio, pois, com o sopro áspero da prova de que seus olhos estavam inapelavelmente cegos, senti que minha situação se esboroava horrivelmente, senti – e vi – minha lívida predecessora, lá de seu posto, forçar a minha derrota, e fiquei ciente, mais que tudo, daquilo com que teria de lidar a partir daquele momento ao constatar a assustadora atitude da pequena Flora. A Senhora Grose aderiu imediata e violentamente a essa atitude, rompendo, mesmo diante de minha sensação de fracasso consumado, numa expressão de fabuloso triunfo pessoal, ofegando e oferecendo à menina palavras tranquilizadoras. “Ela não está lá, senhorinha, e ninguém está lá – e você nunca viu nada, meu doce! Como poderia ver a pobre Senhorita Jessel – quando ela está sem dúvida morta e enterrada? Nós sabemos, não sabemos, amor?” – ela apelava, enganando-se voluntariamente, à criança. “Tudo não passa de simples engano, de preocupação sem sentido, de brincadeira – e vamos para casa o mais rápido possível!” Nossa companheira, diante disso, respondeu com uma estranha, rápida afetação de dignidade, e com a Senhora Grose a seus pés, ambas ficaram unidas contra mim numa espécie de oposição dolorosa. Flora continuou a me fixar com sua pequena máscara de reprovação, e naquele mesmo momento pedi a Deus para me perdoar por ter achado que, enquanto ela se agarrava fortemente à saia de nossa amiga, sua incomparável beleza infantil se apagara, desaparecera completamente. Eu já o disse – ela estava literal e hediondamente implacável; ela se tornara comum e quase feia. “Eu não sei o que a senhorita quer dizer. Eu não vejo ninguém. Eu não vejo nada. Nunca vi. Eu acho que a senhorita é cruel. Eu não gosto da senhorita!” Então, depois desse desabafo, que podia ter sido feito por alguma atrevida menininha de rua, ela apertou a Senhora Grose com mais força ainda e enterrou o seu terrível rostinho na saia da mulher. Nessa posição ela emitiu um lamento quase furioso. “Leve-me embora, leve-me embora – oh, leve-me para longe dela!” “De mim?”, eu perguntei, ofegante. “Da senhorita sim – da senhorita!”, ela gritou. Mesmo a Senhora Grose olhou-me com desânimo; enquanto isso, eu nada tinha afazer senão entrar em comunicação outra vez com a figura que, na margem oposta, sem um movimento, tão rigidamente atenta como, se no intervalo, captasse toda a nossa conversa, estava lá, bem viva para a minha desgraça como não o estivera para meu proveito. A menina infeliz tinha falado exatamente como se recebesse de uma fonte externa suas pequenas palavras ferinas, e eu não pude, portanto, no completo desespero de tudo quanto tinha que aceitar, fazer mais que balançar minha cabeça tristemente diante dela. “Se eu algum dia duvidei, toda a minha dúvida desapareceria agora. Tenho vivido com essa verdade miserável, e agora tudo que ela fez foi fechar-se em torno de mim. É claro que já perdi você: eu interferi, e você achou – sob orientação dela” – nesse ponto, encarei de novo, do outro lado do lago, nossa testemunha infernal – “o meio mais fácil e perfeito de sair disso. Fiz meu melhor, mas perdi você. Adeus.” Para a Senhora Grose, emiti um imperativo, um quase frenético “Vá, vá!” diante do qual, com infinita aflição, mas silenciosamente agarrada à menininha e claramente convencida, a despeito de sua cegueira, de que algo medonho ocorrera e algum colapso desconhecido nos engolfara, ela recuou, retomando o caminho pelo qual viera, com um andar o mais ligeiro possível. Do que primeiro aconteceu quando fiquei sozinha depois eu não tenho memória subsequente. Sabia apenas que ao fim de, digamos, um quarto de hora, uma umidade e uma aspereza fragrantes, arrepiando e trespassando a minha dor, fizeram com que eu compreendesse que devia ter-me atirado de bruços sobre o chão e dado vazão a uma aflição selvagem. Possivelmente ficara estendida lá por longo tempo e chorado e soluçado, porque quando ergui minha cabeça o dia estava quase acabado. Levantei-me e olhei por um momento, através do crepúsculo, para o lago cinzento e sua margem vazia, assombrada, e empreendi, de volta para casa, minha árida e penosa caminhada. Quando cheguei ao portão na cerca o barco, para a minha surpresa, não estava mais ali, de modo que fiz uma nova reflexão sobre o domínio extraordinário que Flora tivera da situação. Ela passara aquela noite, pela mais tácita, e devo acrescentar, se a palavra não se constituísse uma nota tão grotesca, pela mais feliz das combinações, com a Senhora Grose. Não vi nenhuma das duas em meu retorno, mas, por outro lado, como se por uma ambígua compensação, vi Miles por bastante tempo. Eu o vi – não posso usar outra frase – tantas vezes que era como se fosse mais do que nunca o vira. Nenhuma noite que eu passara em Bly tivera a portentosa qualidade dessa; a despeito disso – e também a despeito dos mais fundos abismos de consternação que abriu sob meus pés – havia literalmente, nas horas do declínio, uma tristeza extraordinariamente doce. Ao chegar em casa, nem me preocupei em procurar o menino; fui diretamente para o meu quarto para trocar de roupa e para tomar ciência, num simples relance de olhar, de muitos testemunhos materiais da ruptura com Flora. Seus pequenos pertences tinham sido todos removidos. Quando mais tarde, junto à lareira da sala de estudos, a empregada habitual me serviu o chá, não cedi, com respeito ao meu outro aluno, a nenhuma espécie de inquirição. Ele tinha sua liberdade agora – e podia tê-la até o fim! Bem, ele a tinha; e ela consistia naquele momento – ao menos parcialmente – em poder entrar perto de oito da noite e sentar-se ao meu lado em silêncio. Na remoção do serviço de chá, eu apagara os candelabros e puxara minha cadeira para mais perto do fogo: tinha consciência de uma espécie de frio mortal e me sentia como se nunca mais fosse possível me aquecer. Assim, quando ele apareceu, estava sentada na penumbra entretidacom meus pensamentos. Ele parou um instante perto da porta como se para me olhar melhor; e então – feito quisesse que eu compartilhasse tais pensamentos com ele – veio ao outro lado da lareira e afundou-se num assento. Ficamos sentados ali em absoluto silêncio; contudo, eu sentia que ele queria ficar comigo. CAPÍTULO 21 Antes que um novo dia tivesse irrompido completamente em meu quarto, meus olhos se abriram para deparar com a Senhora Grose, que se aproximara de minha cama com notícias ainda piores. Flora estava com uma febre tão alta que possivelmente teria sido acometida de alguma doença; a menina passara uma noite de inquietação extrema, uma noite agitada acima de tudo por medos que tinham como motivo não a sua primeira, mas sim, e totalmente, a sua segunda preceptora. Não era contra a possível reentrada em cena da Senhorita Jessel que ela protestava – era patente e apaixonadamente contra a minha. Ergui-me de pronto, naturalmente, e com muitas perguntas a fazer; ademais, era evidente que minha amiga se preparara para um novo confronto. “Ela persiste em afirmar para a senhora que não viu coisa alguma nem ontem nem nunca?” O embaraço de minha amiga era, na verdade, bem grande. “Ah, senhorita, não é uma questão de eu poder insistir com ela nesse assunto! E, devo dizer, parece que não é também necessário que eu o faça. A coisa tomou conta dela completamente, tornou-a uma mulher muito velha.” “Oh, eu a vejo perfeitamente daqui. Ela ficou ofendida, como se fosse a mais elevada personagem infantil deste mundo, com a dúvida que lancei sobre a sua palavra, como se eu ferisse a sua própria dignidade. ‘A Senhorita Jessel de fato – ela!’ Ah, sim ela é muito ‘digna’, a danadinha! A impressão que ela me deu ontem, asseguro à senhora, foi a mais estranha de todas; foi muito além de qualquer outra. Eu pus o dedo na ferida! Ela não vai falar comigo nunca mais.” Hediondo e obscuro como era, o assunto deixou a Senhora Grose em silêncio; então, ela confirmou meu ponto de vista com uma franqueza que, eu tinha certeza, abrigava muitas outras coisas. “Acho que ela não vai mesmo falar, senhorita. Ela está de fato muito magoada!” “E essa mágoa” – eu acrescentei – “é praticamente a razão da febre que ela está apresentando.” Oh, era a razão, eu podia ler no rosto da minha visitante, e nada além disso! “Ela me pergunta a cada três minutos se a senhorita não vai aparecer.” “Compreendo – compreendo.” Eu, por meu lado, trazia em mim muito mais do que dizia. “Ela disse à senhora desde ontem – exceto para rejeitar que tivesse relação com uma coisa tão terrível – alguma outra coisa sobre a Senhorita Jessel?” “Nada, senhorita. E é claro que a senhorita sabe”, minha amiga acrescentou, “Lá no lago, consegui tirar dela apenas que não havia ninguém.” “Certo! E, naturalmente, é isso o que ela diz ainda.” “Não vou contradizê-la. Que mais posso fazer?” “Nada neste mundo! A senhora está lidando com a pessoinha mais inteligente que existe. Eles fizeram dessas crianças – me refiro aos seus dois amigos – ainda mais inteligentes do que já eram por natureza; havia uma matéria-prima maravilhosa com que trabalhar! Floratem agora sua mágoa, e vai levá-la até o fim.” “Sim, senhorita; mas até que fim?” “Ora, delatar-me ao seu tio. Ela vai pintar-me para ele como a mais baixa das criaturas...!” Estremeci diante da cena que se apresentava como que diante do rosto da Senhora Grose; por um momento, pareceu-me que ela nitidamente já visualizava a sobrinha e o tio juntos. “E ele que tem tão elevado conceito da senhorita!” “Ele tem um jeito bem estranho – é o que me ocorre agora,” eu dei uma risada, “... de demonstrá-lo. Mas isso não importa. O que Flora quer, naturalmente, é livrar-se de mim.” Minha companheira, corajosa, respondeu afirmativamente. “Não quer nunca mais olhar para a senhorita.” “De modo que a senhora veio aqui agora”, eu perguntei – “para que eu vá embora o mais rápido possível?” Antes que ela tivesse tempo de responder, contudo, eu a dominei. “Tenho uma ideia melhor – o resultado de minhas reflexões. Eu ir-me embora pareceria a coisa certa, e no domingo eu estive terrivelmente perto disso. Mas, não vai funcionar. É a senhora quem deve ir. A senhora deve levar Flora.” Minha visitante, ouvindo isso, especulou. “Mas, para onde neste mundo...?” “Para longe daqui. Para longe dos dois. Agora, mais que tudo, para longe de mim. Direto para o tio dela.” “Apenas para que ela diga a ele...?” “Não, não ‘apenas’ para isso! Para deixar-me aqui, além disso, aplicando o meu remédio.” Ela ainda não parecia compreender. “E qual é o seu remédio?” “Sua lealdade, para começar. Depois, a de Miles.” Ela olhou fixamente para mim. “A senhorita acha que ele...?” “Não pode se voltar contra mim, se tiver chance? Sim, eu me arrisco a pensar isso. Em todo caso, quero tentar. Afaste-se com a irmã tão logo seja possível e deixe-me sozinha com ele.” Eu estava espantada comigo mesma pela presença de espírito que tinha em reserva, e portanto um pouco desconcertada pelo modo com que ela, apesar do belo exemplo que eu dava, ainda se mantinha hesitante. “Há uma coisa a fazer, porém”, eu continuei: “antes de Flora ir, eles não devem se encontrar nem por três segundos”. Então, tornou-se claro para mim que, a despeito do presumível isolamento em que Flora ficara depois de retornar do lago, já podia ser tarde demais. “A senhora quer dizer”, perguntei ansiosamente, “que eles já se encontraram?” Ouvindo isso, ela ficou ruborizada. “Ah, senhorita, eu não sou tão boba assim! Se fui forçada a deixá-la três ou quatro vezes, foi de cada vez com uma das empregadas, e neste momento, embora esteja sozinha, ela está muito bem fechada. E no entanto – e no entanto!”Havia coisas demais. “E no entanto o quê?” “Bem, como está tão segura assim a respeito do pequeno gentleman?” “Não estou segura de nada, exceto de que a senhora está aqui comigo. Mas, desde a noite passada, tenho uma nova esperança. Eu acho que o menino quer se abrir comigo. Eu acredito que – coitadinho desse maravilhoso infeliz! – ele quer falar. Ontem, perto da lareira e em silêncio, ele ficou comigo por horas como se quisesse me dizer alguma coisa.” A Senhora Grose olhava fixamente, pela janela, o dia cinzento que começava a firmar-se. “E ele disse essa coisa?” “Não, embora eu tivesse esperado e esperado, confesso que não, e não quebramos o silêncio nem fizemos a mais leve insinuação à condição e ausência da irmã no beijo de despedida. Pela mesma razão”, continuei, “não posso, se o tio vir Flora, consentir em que veja o irmão sem que eu tenha dado a ele – e principalmente porque tudo ficou tão ruim – um pouquinho mais de tempo.” Minha amiga mostrou-se, nesse terreno, mais relutante do que eu podia compreender. “Que quer dizer com mais tempo?” “Bem, um dia ou dois – para que eu possa esclarecer tudo. Ele então estará do meu lado – coisa de que a senhora pode avaliar a importância. Se ele nada revelar, eu terei apenas fracassado, e a senhora, na pior das hipóteses, fará o que achar mais viável ao chegar à cidade.” Assim me posicionei diante dela, mas continuou por alguns momentos tão insondavelmente embaraçada que de novo procurei ajudá-la a entender. “A menos, é claro”, emendei, “que a senhora não queira ir.” Vi que, por fim, o seu rosto se iluminava: ela estendeu-me sua mão como uma garantia. “Eu vou – eu vou. Parto ainda nesta manhã.” Eu queria ser muito justa. “Se a senhora por acaso deseja ainda esperar, darei um jeito de Flora não me ver.” “Não, não; estou preocupada com este lugar. Ela tem que sair daqui.” Ela fitou-me com olhos pesados, e deixou escapar o resto. “Sua ideia é que é certa. Eu mesma, senhorita...” “Bem?” “Não posso ficar.” O olhar que ela me lançou ao dizer isso fez com que eu me animasse a sondá-la esperançosamente. “Quer dizer que, desde ontem, a senhora viu...?” Ela balançou sua cabeça com dignidade. “Eu ouvi...!” “Ouviu?” “Da boca da menina – horrores! Lá!”, ela suspirou com um alívio trágico. “Por minha honra, senhorita, as coisas que ela diz...!” Mas, a essa evocação, ela desmoronou; caiu, com um soluço súbito, sobre meu sofá e, como já a vira fazer uma vez, deu vazão a todo o seudesespero. Foi bem de outra maneira que eu, de minha parte, me manifestei. “Oh, graças a Deus!” Ela levantou-se rapidamente, enxugando os olhos com um gemido. “Graças a Deus?” “Isso que a senhora disse vai me justificar!” “Vai mesmo, senhorita!” Eu não podia ter desejado maior ênfase, mas ainda hesitava. “Ela é tão horrível?” Vi na minha companheira que ela mal sabia como expressá-lo. “É chocante, realmente.” “E a meu respeito?” “A seu respeito, senhorita – já que me pergunta. É muito além do que se poderia esperar, partindo de uma jovenzinha; e eu não consigo imaginar onde ela pode ter aprendido...” “A pavorosa linguagem que usou para me atacar? Bem, eu posso!”, interrompi com uma risada que era sem dúvida bastante significativa. Mas isso, na verdade, fez com que minha amiga ficasse ainda mais séria. “Bem, talvez eu também a devesse ter aprendido – já que ouvi essa linguagem em algumas ocasiões no passado! Ainda assim, não a suporto”, a pobre mulher continuou enquanto olhava, com o mesmo movimento, para o relógio no meu toucador. “Mas preciso ir.” Eu a retive, contudo. “Ah, se a senhora não pode suportá-la...!” “Como poderei calar a menina, não é? Bem, fazendo exatamente isso: levando-a embora daqui. Para bem longe daqui”, ela continuou, “longe dos dois...” “Será que ela pode ficar diferente? Será que ela pode se libertar?”, eu a agarrei, quase com alegria. “Então, apesar do que aconteceu ontem, a senhora acredita...?” “Nessas coisas?” A simples descrição delas, pela expressão de seu rosto, já não precisava ser feita, e ela confessou-me, como antes nunca o fizera. “Acredito.” Sim, foi uma alegria, e nós estávamos ainda unidas: se eu podia continuar com essa certeza, pouco me importaria o que ainda acontecesse. Meu apoio diante do desastre seria o mesmo que tinha sido quando, no início, precisara de confiança, e se minha amiga respondesse por minha honestidade eu responderia por todo o resto. Quando ela já estava prestes a sair, contudo, fiquei um pouco embaraçada. “Naturalmente, há uma coisa – me ocorreu agora – que preciso lembrar. Minha carta, dando o alarme, terá chegado à cidade antes que a senhora chegue lá.” Percebia agora o quanto ela se debatera em rodeios e como isso chegara a ela só depois de um grande esforço. “Sua carta não estará lá. Sua carta nunca foi mandada.” “Que aconteceu com ela?” “Só Deus sabe! O patrãozinho Miles...”“Você quer dizer que ele a pegou?”, perguntei, ofegante. Ela hesitou bastante, mas por fim venceu sua relutância. “Quero dizer que ontem, quando voltava com Flora, vi que ela não estava onde a senhorita a pusera. Mais tarde eu consegui perguntar ao Luke, e ele declarou que não a vira nem tocara nela.” Diante disso, trocamos apenas um de nossos olhares de profunda sondagem mútua, e foi ela quem deu prumo a tudo concluindo, quase com alegria: “A senhorita percebe!” “Sim, percebo que se Miles a pegou, ele provavelmente a leu e destruiu.” “E não percebe mais nada?” Eu a encarei por um momento com um sorriso triste. “Me impressiona ver que dessa vez os olhos da senhora estavam bem mais abertos que os meus.” De fato estavam, mas, para prová-lo, ela ainda ficava quase ruborizada. “Descubro agora o que ele deve ter feito na escola.” E, em sua humilde perspicácia, ela fez um gesto de desapontamento quase engraçado. “Ele roubou!” Refleti um pouco – procurava ser imparcial. “Bem – talvez.” Ela olhou-me como se estranhasse minha calma inesperada. “Ele roubou cartas!” Ela não conseguia adivinhar as razões da minha calma, que era, afinal, apenas superficial; então, expliquei-as como pude. “Espero que tenha sido por um propósito melhor que nesse caso! A carta que pus ontem na mesa, de todo modo”, continuei “vai lhe dar tão pouca vantagem – porque continha apenas um pedido de entrevista – que ele deve já estar envergonhado de ter ido tão longe por tão pouco, e o que ele devia ter em mente ontem à noite devia ser, então, uma necessidade de confessar.” Por um momento, pareceu-me que eu dominara, que eu vira tudo. “Deixe-nos, deixe-nos!” – eu já estava dizendo a ela, à porta, apressando-a o quanto podia. “Eu farei com que ele me conte. Ele vai me procurar – vai me confessar. Se ele confessar, será salvo. E se ele se salvar..” “A senhorita também se salvará?” A boa mulher beijou-me ao dizer isso, e eu aceitei sua despedida. “Eu a salvarei sem ele, se for preciso!”, ela bradou, afastando-se. CAPÍTULO 22 Contudo, foi quando ela partiu – e senti a sua falta no lugar – que o aperto realmente chegou. O que quer que eu tenha imaginado que seria ficar sozinha com Miles, percebi, imediatamente, que aquilo me daria a medida. Nenhuma hora da minha estada em Bly foi tão assaltada por apreensões como aquela em que desci para constatar que a carruagem, levando embora a Senhora Grose e a menina, já tinha cruzado os portões. Agora eu estava, disse a mim mesma, frente a frente com a tempestade, e por todo o resto do dia, enquanto lutava com minha fraqueza, refleti que estava sendo extremamente ousada. O ambiente, agora, era muito mais opressivo do que eu já conhecera; ademais, pela primeira vez, eu via no aspecto dos outros empregados um confuso reflexo da crise. O que tinha acontecido, naturalmente, fizera- os espantar; havia pouco que explicar, embora fizéssemos o que pudéssemos para isso, no inesperado procedimento de minha companheira. As empregadas e os serviçais pareciam estupefatos; o efeito disso em meus nervos foi um agravamento, até que vi que tinha a necessidade de transformar aquilo numa ajuda positiva. Em resumo, foi exatamente por agarrar o leme que evitei o naufrágio total; e ouso dizer que, para estar à altura do desafio, tornei-me, naquela manhã, muito imponente e muito seca. Aceitei de bom grado a consciência de que estava incumbida de grande responsabilidade, fazendo com que todos soubessem que, deixada a mim mesma, eu poderia me revelar notavelmente firme. Vaguei com esse aspecto pelas horas seguintes, por todo o lugar, e devia estar parecendo, não tenho dúvida, preparada para qualquer ataque. Assim, para benefício de quem pudesse se interessar, eu desfilava de modo magnífico com um coração angustiado. A pessoa que pareceu menos interessada por minha atitude foi, até o jantar, o próprio Miles. Minhas andanças pela casa não me deram, no intervalo, um vislumbre sequer do menino, mas tendiam a tornar mais pública a mudança que houvera em nossa relação como consequência de, no dia anterior, ao piano, em benefício de Flora, ele ter me mantido tão fascinada e tapeada. A evidência dos fatos tinha naturalmente se escancarado devido ao isolamento e à partida de Flora, e a própria mudança era agora anunciada claramente pela nossa não observância do hábito de nos reunirmos na sala de estudos. Ele havia desaparecido quando, na minha descida, eu abri sua porta, e soube lá embaixo que já fizera o seu desjejum – na presença de um par de empregadas – com a Senhora Grose e sua irmã. Depois disso saíra, como dissera, para um passeio; refleti que nada melhor que isso para indicar sua franca visão da abrupta transformação de meu papel. O que ele permitiria agora que esse papel se tornasse estava ainda por ser resolvido: havia um estranho alívio, em todo caso – especialmente quanto a mim – em renunciar a uma pretensão. Se muito disso surgiu à tona, arrisco dizer com bastante convicção que o que mais ficou evidente foi o absurdo de precisarmos prolongar a farsa de que eu tinha ainda algo para ensinar-lhe. Salientava-se, por pequenos truques tácitos nos quais ele mais que eu se encarregava de zelar por minha dignidade, que eu tinha tido que apelar à sua ajuda para confrontá-lo no terreno de sua própria capacidade. De qualquer modo, conseguira sua liberdade agora; eu não voltaria a tolhê-la; ademais, isso eu provara amplamente quando, aproximando-se de mim na noite anterior na sala de estudos, eu não fizera, quanto ao assunto da tarde que passara longe de casa, nenhuma pergunta ouinsinuação. Pelo momento, minhas outras ideias me ocupavam demais. No entanto, quando ele por fim chegou, a dificuldade de pô-las em prática, o acúmulo de meus problemas, voltaram todos, trazidos pela bela pequena presença na qual o que acontecera não deixara ainda, ao menos não visivelmente, o menor indício de mácula ou sombra. Para assinalar, diante da casa, a elevada posição que eu cultivava, decretei que minhas refeições com o menino deveriam ser servidas no andar de baixo, como o chamávamos; de modo que fiquei esperando-o na pompa maciça da sala junto à janela de qual eu recebera da Senhora Grose, naquele primeiro domingo assombrado, meu lampejo de alguma coisa que eu dificilmente chamaria de luz. Ali eu senti novamente – pois já o sentira muitas e muitas vezes – como meu equilíbrio dependia do triunfo de minha rígida vontade, da vontade de cerrar meus olhos o máximo possível à verdade de que aquilo com que eu tinha de lidar era, de um modo revoltante, contra a natureza. Só podia prosseguir se encarasse a “natureza” como coisa toda minha e confiasse nela, tratando minha provação monstruosa como um empurrão feito numa direção sobrenatural e decerto desagradável, mas que ao fim exigia apenas, para que o confronto fosse justo, que eu desse uma outra volta no parafuso da virtude humana comum. Nenhuma tentativa, de modo algum, exigiria mais tato que aquela de uma única pessoa procurar prover toda a natureza. Como eu poderia pôr um pouquinho de naturalidade na supressão da referência do que tinha ocorrido? Como, por outro lado, eu poderia fazer uma referência sem um novo mergulho na obscuridade hedionda? Bem, uma espécie de resposta, depois de alguns momentos, veio a mim, e foi confirmada quando me deparei, incontestavelmente, com a visão renovada daquilo que meu pequeno companheiro tinha de raro. Na verdade, era como se ele conseguisse encontrar mesmo agora – como tão frequentemente encontrava durante as aulas – uma nova e delicada maneira de me deixar à vontade. Pois, não havia luz naquele fato que, enquanto dividíamos a nossa solidão, revelou-se com um brilho ilusório que, no entanto, nunca se desgastou? – o fato de que (com o auxílio da oportunidade, a oportunidade que agora surgia), seria disparatado, com uma criança tão bem-dotada, abrir mão do amparo que se poderia arrancar de uma inteligência absoluta? Para quê lhe fora dada essa inteligência senão para salvá-lo? Para atingir sua mente, não seria lícito correr o risco de fazer uma desfiguração em seu caráter? Tudo se deu como se, enquanto ficávamos face a face na sala de jantar, ele literalmente me mostrasse a solução. O assado de carneiro estava na mesa, e eu dispensara o atendimento da criada. Antes de sentar-se, ele ficara por um momento com as mãos nos bolsos e olhara para o quarto de carne, sobre o qual parecera a ponto de fazer algum julgamento cômico. Mas o que ele de fato disse foi: “Ouça, minha querida: a menina está tão doente assim?” “A pequena Flora? Não é caso tão grave que não possa melhorar. Londres fará bem a ela. Bly deixou de ser-lhe conveniente. Venha aqui e sirva-se de carneiro.” Obedeceu-me ligeiro, carregou o prato cuidadosamente para o seu lugar e, uma vez acomodado, prosseguiu: “Bly deixou de ser bom para ela assim tão de repente?” “Não tão de repente quanto você possa pensar. Notava-se o que estava acontecendo.” “Então, por que não a mandou embora antes?”“Antes do quê?” “Antes que ela ficasse doente demais para viajar.” Eu me sentia preparada. “Ela não está doente demais para viajar: ela podia ter ficado assim se houvesse permanecido. Foi o momento propício para isso. A viagem vai dissipar a influência” – oh, eu era ótima! – “e eliminá-la”. “Entendo, entendo” – Miles, no tocante ao assunto, também era ótimo. Ele se compusera para o repasto com as encantadoras “maneiras de mesa” que, desde o dia de sua chegada, me dispensaram de lhe passar qualquer descompostura ou lhe fazer qualquer advertência. Qualquer que fosse o motivo de sua expulsão do colégio, com certeza não fora por comer sem modos. Naquele dia, estava, como sempre, irrepreensível; mas estava, de modo inequívoco, mais consciente de desempenhar um papel. Estava visivelmente tentando tomar como certas mais coisas que aquelas que poderia descobrir sozinho; caíra em plácido silêncio enquanto avaliava a sua situação. Nossa refeição foi das mais breves – a minha nada mais que pretexto, e pedi que retirassem logo a minha mesa. Enquanto isso era feito Miles se pusera de novo em pé, com as mãos em seus pequenos bolsos e de costas para mim – para olhar para fora da ampla janela através da qual, naquele dia, eu tinha visto o que tanto me perturbara. Continuamos em silêncio enquanto a empregada estava conosco – tão silenciosos, me ocorreu de modo absurdo, quanto um jovem casal que, em sua viagem de núpcias, numa taberna, ficasse inibido em presença do garçom. Só se virou para mim quando o garçom nos deixou. “Bem – enfim, sós!” CAPÍTULO 23 “Oh, mais ou menos”, imagino com que pálido sorriso respondi. “Não em absoluto. Não gostaríamos disso!”, continuei. “Não – suponho que não gostaríamos. Claro que estamos acompanhados” “Estamos acompanhados – temos os outros, de fato”, eu concordei. “Mas, embora tenhamos os outros”, ele retornou, ainda com as mãos nos bolsos e plantado à minha frente, “eles não contam muito, não é mesmo?” Procurava ser ágil e brilhante, mas me sentia apagada. “Depende do que você chama de ‘muito’!” “Sim” – com toda condescendência – “tudo depende!” Dizendo isso, contudo, ele virou o rosto para a janela e aproximou-se dela com seus vagos, inquietos e refletidos passos. Permaneceu ali por um momento, com a testa encostada na vidraça, contemplando os estúpidos arbustos e a paisagem monótona de Novembro. Eu podia sempre contar com meu fingido “trabalho”, atrás do qual me escondia agora, acomodada no sofá. Firmando-me com ele ali como já o fizera repetidamente nos momentos de suplício que descrevi como sendo aqueles em que notava que as crianças ficavam à mercê de alguma coisa da qual eu estava excluída, eu obedecia apenas ao meu hábito de ficar preparada para o pior. Mas uma impressão extraordinária me tomou quando extraía um significado da atitude do menino, que estava embaraçado, de costas para mim – nada menos que a impressão de que eu não era mais uma excluída. Essa dedução, em minutos, transformou-se em algo intensamente agudo e parecia juntar-se à direta percepção de que, nesse momento, o excluído era ele. As molduras e retângulos da grande janela eram, para ele, imagens de uma espécie de derrota. Senti que o via, de qualquer modo, fechado por dentro ou fechado por fora. Ele estava admirável, mas não à vontade: tomei consciência disso com uma palpitação de esperança. Pois ele não procurava, através da vidraça mal assombrada, uma coisa que não podia ver? – e não era essa a primeira vez na história toda que ele tinha consciência de que a tal coisa lhe falhava? A primeira, a primeiríssima: achei um esplêndido presságio. A falha o tornava ansioso, embora ele se policiasse; tinha ficado ansioso o dia todo e, mesmo quando com suas doces pequenas maneiras se sentara à mesa, precisara recorrer a seu pequeno estranho gênio para dar ao ato um certo verniz. Quando ele por fim virou-se para falar comigo era como se seu gênio houvesse sucumbido. “Bem, acho que estou satisfeito por Bly ser boa para mim!” “Você com certeza parece que aproveitou de Bly, nessas vinte e quatro horas, muito mais do que aproveitara antes. Espero”, continuei corajosamente, “que com isso tenha se divertido.” “Oh, sim, nunca tinha explorado tanto o lugar; todas as cercanias – quilômetros e quilômetros longe daqui. Nunca me senti tão livre.” Ele tinha realmente uma distinção toda sua, e eu podia apenas tentar ficar à altura. “Bem, você gosta?”Sorriu, nesse momento; por fim, colocou em três palavras – “E a senhorita?” – mais significado do que eu jamais pensei que três palavras pudessem conter. Antes que eu tivesse tempo para lidar com aquilo, contudo, ele continuou como que consciente de que cometera uma impertinência que agora precisava atenuar. “Nada poderia ser mais encantador que o modo como a senhorita encara as coisas, pois, naturalmente, se estamos sozinhos agora, é a senhorita quem o está mais. Mas espero”, ele acrescentou, “que não se preocupe particularmente com isso!” “Ter que me preocupar com você?”, perguntei. “Meu querido menino, como poderia deixar de me preocupar? Apesar de haver renunciado ao direito de exigir sua companhia – você está tão além de mim! – é claro que a aprecio muito. Por que outra razão eu teria ficado aqui?” Olhou para mim mais diretamente, e a expressão de seu rosto, mais séria agora, atingiu-me como a mais bela que havia nele encontrado. “A senhorita fica apenas por causa disso?” “Certamente. Fico como sua amiga, devido ao tremendo interesse que tenho em você, até que alguma coisa que lhe valha mais a pena possa ser feita. Isso não precisava lhe surpreender.” Minha voz tremia tanto que eu achava impossível suprimir-lhe o tremor. “Não se lembra como lhe disse, quando fui sentar-me ao seu lado na cama, na noite daquela tempestade, que não havia nada neste mundo que eu não quisesse fazer por você?” “Sim, sim!” Ele, por seu lado, visivelmente mais e mais nervoso, também precisava controlar o tom da voz; mas era tão mais bem-sucedido do que eu que, rindo em meio à sua própria seriedade, podia fingir que estávamos brincando prazerosamente. “Só que eu acho que disse aquilo para que eu fizesse alguma coisa pela senhorita!” “Foi em parte para que você me fizesse uma coisa”, concedi. “Mas você sabe que não a fez.” “Oh, sim”, ele disse com o mais vivo e superficial dos ardores, “a senhorita queria que eu lhe contasse alguma coisa.” “É isso. Que fosse bem direto. Que me revelasse o que há em seu espírito, como sabe.” “Ah, então, é para isso que a senhorita ficou?” Ele falava com uma alegria através da qual eu podia captar o mais leve tremor de ressentimento passional; mas não posso nem tentar expressar a impressão que me causou esse sinal de que estava sendo derrotado, embora ele fosse tão débil. Foi como se tudo pelo que eu tivesse mais suspirado me chegasse finalmente apenas para me deixar atônita. “Bem, sim – posso agora confessar. Foi exatamente para isso.” Ele esperou por tanto tempo que supus que o fizera com o propósito de repudiar a premissa em que minha ação se baseava; mas o que disse finalmente foi: “A senhorita quer dizer agora – aqui?” “Não poderia haver lugar ou tempo melhor.” Ele olhou ao redor com desconforto, e eu tive a rara – oh, melhor dizer, a esquisita! – impressão de haver visto nele, pela primeira vez,um sintoma de medo. Era como se subitamente tivesse medo de mim – o que me fez pensar que era talvez a melhor coisa que eu lhe poderia transmitir. No entanto, na própria ânsia do esforço eu senti que era inútil tentar ser severa, e eu ouvi minha voz, no instante seguinte, modular-se de modo tão gentil que parecia quase grotesca. “Você deseja tanto ir embora novamente?” “Terrivelmente!” Sorriu para mim de modo heroico, e a pequena bravura comovente que havia no sorriso era realçada pelo rubor que o sofrimento lhe infundia. Ele apanhara seu chapéu, e ficara retorcendo-o de um modo que me dava, mesmo que nesse momento eu estivesse chegando ao porto, um horror perverso ao que eu lhe estava fazendo. Fazê-lo de qualquer modo era um ato de violência, pois de que consistia senão da introdução de uma ideia de vulgaridade e culpa numa pequena criatura indefesa que representara para mim a revelação de possibilidades de uma relação cheia de beleza? Não seria baixo demais criar para uma criatura tão primorosa um embaraço que lhe fosse tão alheio? Suponho que hoje leio nossa situação com uma clareza que não pudera ter naquele tempo, porque eu parecia ver nossos pobres olhos já iluminados por algum lampejo que pressagiava a angústia que estava por chegar. Assim, o que fazíamos era andar em círculos, com terrores e escrúpulos, como dois lutadores que não ousavam aproximar-se. Mas era um do outro que tínhamos medo! Aquilo nos manteve por mais algum tempo suspensos e incólumes. “Vou lhe contar tudo”, Miles disse – “Quero dizer que vou lhe contar tudo que a senhorita quiser. Ficará comigo e nós dois ficaremos bem e vou lhe contar – juro que vou. Mas não agora.” “Por que não agora?” Minha insistência fez com que se afastasse de mim e aproximar-se da janela num silêncio tal entre nós que, enquanto durou, era possível ouvir o som da queda de um alfinete. Então, virou-se para mim com o ar de uma pessoa para quem, pelo lado de fora, alguém com quem deveria entender-se se encontrasse à espera. “Preciso ver Luke.” Eu ainda não o tinha reduzido a uma mentira tão crassa, e me senti proporcionalmente envergonhada. Mas, por mais que isso fosse horrível, suas mentiras fortaleciam meu desejo de contar a verdade. Dei pensativamente mais alguns pontos no tricô. “Bem, então, vá lá ver o Luke, e eu esperarei pelo que você prometeu. Mas, em troca disso, vou querer que você satisfaça, antes de sair, a um pedido bem menos importante.” Ele parecia sentir-se bem-sucedido o bastante para ser capaz de fazer ainda um pouco de barganha. “Bem menos importante...?” “Sim, uma pequena fração do todo. Diga-me” – oh, meu tricô me preocupava, e eu estava muito alheia! – “se ontem pela tarde, você tirou minha carta da mesa do hall.” CAPÍTULO 24 Minha percepção de como ele recebeu o pedido, por um minuto, sofreu de algo que posso descrever apenas como sendo um feroz desdobramento – um golpe que, no início, quando me levantei, reduziu-me ao simples movimento cego de agarrá-lo, estreitá-lo e, recuando para procurar apoio no móvel mais próximo, mantê-lo instintivamente de costas para a janela. A aparição estava lá, de olhos cravados sobre nós, mais perto do que já a vira: Peter Quint fazia a sua entrada como uma sentinela zelando de uma prisão. O que vi a seguir foi que, pelo lado de fora, ele tinha alcançado a janela, e então percebi que, grudado à vidraça e lançando um olhar furioso através dela, oferecia mais uma vez ao aposento a sua face lívida de danação. Dizer que tomei uma decisão num segundo é representar de forma grosseira o que me aconteceu; no entanto, acredito que nenhuma outra mulher, tão oprimida como eu estava, recuperasse em tempo tão breve seu controle do ato. Ocorreu a mim no meio do horror à presença imediata que o ato seria, vendo e encarando o que eu via e encarava, encontrar um meio de proteger o menino da visão. A inspiração – não posso chamá-la de outro modo – era eu perceber, de maneira voluntária, de maneira transcendente, como eu podia fazê-lo. Era como lutar com um demônio pela salvação de uma alma humana, e, quando avaliei isso, vi como a alma humana – mantida, no tremor de minhas mãos, ao longo de meu braço – trazia um orvalho de suor na adorável fronte infantil. O rosto que estava tão perto do meu mostrava- se tão lívido quanto o rosto que estava contra a vidraça, e dele saiu um som, nem baixo nem fraco, mas como se viesse de muito, muito longe, que sorvi como uma aragem de perfume. “Sim – eu tirei.” Ouvindo isso, com um gemido de alegria, estreitei-o, apertei-o ainda mais fortemente contra meu peito; e enquanto o mantinha ali, onde podia sentir na súbita febre de seu pequeno corpo a tremenda palpitação do pequeno coração, não tirava meus olhos da coisa que estava lá na janela, notando, a seguir, que ela se movia e mudava de posição. Comparei-a a uma sentinela, mas sua lenta rotação, por um momento, parecia-se mais com a ronda de uma besta frustrada na busca da presa. Mas minha coragem era tão grande naquele momento que, para não deixá-la evidente, tive que reduzir, por assim dizer, a sua chama. Enquanto isso a ferocidade do rosto estava de volta à janela, onde o miserável fitava como se vigiasse e esperasse. Foi a convicção de que podia desafiá-lo agora, bem como a certeza positiva de que a criança nada percebia, que me fez continuar. “Para que você pegou a carta?” “Para saber o que você dizia de mim.” “Você a abriu?” “Sim, abri.” Meus olhos estavam agora, enquanto afrouxava meu abraço, sobre o rosto de Miles, no qual a cessação da ironia me mostrava como foi completa a ruína feita pela inquietação. Era prodigioso que finalmente, graças a meu triunfo, seus sentidos tivessem se fechado e a comunicação cessado: ele sabia que havia ali uma presença, mas não sabia de quê, e sabia ainda menos que eu também a percebia e conhecia. E que me importava essa fadigaatormentada se meus olhos tinham voltado à janela apenas para constatar que o ar estava puro outra vez e que – por meu triunfo pessoal – a influência se extinguira? Não havia mais nada ali. Senti que a causa disso fora a minha ação e que eu conseguira tudo. “E você não achou nada!” – pronunciei bem clara a minha conclusão. Ele balançou a cabeça com a mais melancólica e pensativa das negativas. “Nada.” “Nada, nada!”, eu quase gritava de alegria. “Nada, nada”, ele repetiu tristemente. Beijei a sua testa; estava encharcada de suor. “Então, que foi que fez com ela?” “Eu a queimei.” “Queimou-a?” Era agora ou nunca. “Era isso que você fazia no colégio?” Oh, que coisas isso despertou! “No colégio?” “Você pegava cartas? – ou pegava outras coisas?” “Outras coisas?” Ele parecia agora pensar em alguma coisa muito remota e isso o atingia apenas através da pressão de sua ansiedade. No entanto, o atingia. “Quer dizer que eu roubava?” Senti-me corada até a raiz dos cabelos, pensando se era mais estranho colocar a um cavalheiro uma tal questão ou vê-lo considerá-la com uma indulgência que dava bem a medida da queda que sofrera. “Era por isso que você não podia voltar para lá?” A única coisa que pareceu sentir foi uma triste e ligeira surpresa. “A senhorita sabia que eu não poderia voltar?” “Eu sei tudo.” Ouvindo isso, lançou-me o mais estranho e longo dos olhares. “Tudo?” “Tudo. Portanto, você...?” Mas não pude dizê-lo novamente. Miles podia, de uma maneira muito simples. “Não. Eu não roubava.” Meu rosto devia estar mostrando que eu acreditava nele completamente; contudo, minhas mãos – mas eu o fazia por simples ternura – sacudiam-no como se eu quisesse lhe perguntar por que, se a coisa toda era por nada, ele tinha me condenado a meses de tormento. “O que foi que você fez, então?” Ele olhou com uma dor vaga para o alto do quarto e tomou fôlego, duas ou três vezes, como se a resposta lhe fosse difícil. Parecia estar no fundo do mar e erguendo seus olhos na direção de alguma débil luz esverdeada. “Bem – eu dizia coisas.” “Só isso?” “Acharam que era o bastante!” “Para lhe expulsar?” Nunca, na verdade, uma pessoa “expulsa” mostrara tão pouco capaz de explicar ofato como essa pequena criatura! Parecia pesar a minha questão, mas numa maneira completamente alheia e quase desamparada. “Bem, suponho que não devia ter feito aquilo.” “Mas a quem você dizia tais coisas?” Ele fazia um esforço evidente para lembrar, mas a coisa lhe falhava – ele a perdia. “Eu não sei!” Quase sorria para mim na desolação de sua derrota, que era de fato, nesse momento, tão completa que eu bem que devia ter parado aí. Mas eu estava fanática – minha vitória me deixava cega, tendo por consequência que, aquilo que devia aproximá-lo de mim, acabava por ser o causador de uma separação maior. “Dizia para todos?”, perguntei. “Não; disse apenas para...?” Mas tremeu a cabeça, enfastiado. “Eu não recordo os nomes deles.” “Eram tantos assim, então?” “Não – só alguns. Aqueles de quem eu gostava.” Aqueles de quem gostava? Eu parecia flutuar não numa zona de claridade, mas noutra muito mais obscura, e dentro em pouco tinha ocorrido a mim, em meio à minha compaixão, a apavorante hipótese de ele talvez ser inocente. Era uma ideia confusa e abissal pois, se ele fosse inocente, que diabos seria eu? Paralisada, enquanto durou, pelo simples roçar da questão, deixei-o afastar-se um pouco, de modo que, com um suspiro profundo, deu-me de novo as costas; enquanto ele olhava para fora da janela clara, eu sofria, sentindo que não havia ali mais nada de que eu precisasse lhe proteger. “E eles repetiam o que você dizia?”, continuei, um momento depois. Ele tomara certa distância de mim, ainda respirando penosamente e com o jeito, embora sem se revoltar contra isso, de estar confinado contra a sua vontade. Mais uma vez, como o fizera antes, olhava para o dia fosco como se, de tudo que até aí o alimentara, nada mais restasse senão uma ansiedade indizível. “Oh, sim”, ele respondeu, apesar de tudo – “eles devem ter repetido. Para aqueles de quem eles gostavam”, acrescentou. Havia, de algum modo, menos revelações do que eu esperara; mas eu insistia. “E essas coisas chegavam aos ouvidos...?” “Dos professores? Não – meus colegas nunca disseram. É por isso que eu pergunto à senhorita.” Ele virou para mim novamente seu pequeno rosto febril. “Sim, era bem malvado.” “Bem malvado?” “O que suponho ter dito algumas vezes. Para que eles chegassem a escrever para casa.” Não posso descrever a estranheza patética da contradição entre essa fala e quem a proferia; só sei dizer que nesse instante ouvi-me retrucar com energia familiar: “Bobagem e absurdo!” Mas a seguir devo ter parecido bastante severa. “Que coisas eram essas?” Minha severidade dirigia-se toda ao seu juiz, ao seu carrasco; no entanto, fez com queele se desviasse, e esse movimento fez, por sua vez, com que eu me atirasse sobre ele, com um simples salto e um grito irreprimível. Pois lá estava de novo, atrás da vidraça, como se quisesse arruinar a sua confissão e estancar a sua resposta, o autor hediondo de nossa infelicidade – a lívida face da danação. Senti vertigens com o desmoronamento de minha vitória e com o todo o retorno de minha batalha, de modo que o ímpeto de meu verdadeiro salto servira apenas para me trair. Vi Miles, no meio de meu ato, olhando como se tentasse adivinhar, e percebendo que mesmo agora ele só tateava, e que, para seus olhos, a janela estava apenas vazia, deixei que o meu arrebatamento transformasse o clímax de sua decepção na própria prova de sua libertação. “Nunca mais, nunca mais, nunca mais!”, eu gritava, enquanto tentava apertá-lo junto a mim, para meu visitante. “Ela está aqui?” – perguntou Miles, ofegante, enquanto captava com seus olhos selados a direção das minhas palavras. A seguir, como seu estranho “ela” me fizera estremecer e, arfando, eu o repetira, ele, com uma fúria súbita, exclamou: “A Senhorita Jessel, a Senhorita Jessel!”. Estupefata, aproveitei-me de sua suposição – alguma sequela do que fizéramos com Flora, mas só o fiz por querer mostrar a ele que o que tínhamos ali era ainda melhor. “Não é a Senhorita Jessel! Mas está lá, na janela – direto diante de nós. Está lá – o monstro covarde, pela última vez!” Ouvindo isso, depois de um momento em que sua cabeça fez um movimento parecido ao de um cão que tivesse perdido a pista e balançasse freneticamente à caça de ar e luz, voltou-se para mim lívido de raiva, aturdido, olhando inutilmente por toda parte e não encontrando a presença ampla e opressora que eu, nesse próprio momento, sentia encher o aposento com um gosto de veneno. “É ele?” Eu estava tão decidida a obter todas as provas que me transformei em gelo para desafiá-lo. “Quem você quer dizer com ‘ele’?” “Peter Quint – seu demônio!” Seu rosto lançou novamente, vagando pelo quarto, uma convulsiva súplica. “Onde?” Ainda estão em meus ouvidos sua rendição suprema ao nome e seu tributo à minha devoção. “Que importa ele agora, meu querido? – que importância poderá ter de agora em diante? Eu tenho você”, dirigi-me à besta na janela, “mas ele perdeu você para sempre!” Então, como demonstração do meu trabalho, “Lá, lá!”, eu disse para Miles. Mas ele já saíra dos meus braços e vagava ao redor, arregalando os olhos, olhando com fúria, sem ver nada além de um dia tranquilo. Golpeado pela perda de que eu me orgulhava, ele emitiu o grito de uma criatura arremessada a um abismo, e o gesto com que o agarrei bem poderia ter sido o de recuperá-lo em plena queda. Eu recuperei-o, sim, eu abracei-o – pode-se imaginar com que paixão; mas ao fim de um minuto comecei a sentir o que na verdade estava abraçando. Estávamos a sós com o dia tranquilo, e seu pequeno coração, despossuído, deixara de bater. FIM

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