A volta do parafuso - Henry James - Livro em portugués
A VOLTA DO PARAFUSO
Henry James
PREFÁCIO
CAPÍTULO I
CAPÍTULO 2
CAPÍTULO 3
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
CAPÍTULO 6
CAPÍTULO 7
CAPÍTULO 8
CAPÍTULO 9
CAPÍTULO 10
CAPÍTULO 11
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
CAPÍTULO 14
CAPÍTULO 15
CAPÍTULO 16
CAPÍTULO 17
CAPÍTULO 18
CAPÍTULO 19
CAPÍTULO 20
CAPÍTULO 21
CAPÍTULO 22
CAPÍTULO 23
CAPÍTULO 24
HENRY JAMES HENRY JAMES
A VOLTA DO PARAFUSO
Título original: THE TURN OF THE SCREW
EDITORA LANDMARK
2012 COPYRIGHT 2004-2012 BY EDITORA LANDMARK LTDA.
PRIMEIRA EDIÇÃO: THE TURN OF THE SCREW : WILLIAM HEINEMANN PUBLISHING COMPANY, LONDRES: 13 DE
OUTUBRO DE 1898
PUBLICADO INICIALMENTE EM SÉRIE: THE TURN OF THE SCREW: COLLIERS WEEKLY: AN ILLUSTRATED JOURNAL EM
1898
DIRETOR EDITORIAL: FABIO CYRINO
DIAGRAMAÇÃO E CAPA: ARQUÉTIPO DESIGN+COMUNICAÇÃO
TRADUÇÃO E NOTAS: FRANCISCO CARLOS LOPES
REVISÃO: FRANCISCO DE FREITAS
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
(CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO, CBL, SÃO PAULO, BRASIL )
JAMES, HENRY (1843-1916)
A VOLTA DO PARAFUSO - THE TURN OF THE SCREW /
HENRY JAMES; {TRADUÇÃO, INTRODUÇÃO E NOTAS FRANCISCO CARLOS LOPES}
- - SÃO PAULO: EDITORA LANDMARK, 2004.
A Volta do Parafuso The Turn of the Screw de Henry James, foi primeiramente
publicado em formato de folhetim, em edições do jornal Colliers Weekly, em 1898. Enquadra-
se bem no gênero novela, em que Henry James foi particularmente bem-sucedido,
constituindo um paradigma desse formato curto demais para ser um romance e longo demais
para ser um conto.
Fez enorme sucesso e tornou-se um dos trabalhos mais populares do autor, mas,
provocou polêmica, porque nunca ficou claro se a preceptora, que narra a história de um casal
de crianças possuído pelos espíritos de um criado de quarto e uma antecessora de sua função
num casarão antigo em Bly, interior da Inglaterra, viu os espíritos de fato ou os fantasiou. Pelo
viés da análise freudiana da reprimida sexualidade da era vitoriana, a preceptora, cheia de
romantismo exaltado e sem experiência sexual alguma, podia ser vista como narradora
altamente suspeita.
Com sua carga de sugestividade e seu poder de causar calafrios, no entanto, A Volta
do Parafuso tornou-se um modelo de narrativa de terror psicológico e foi adaptada para o
cinema em 1961, pelo diretor inglês Jack Clayton, com roteiro de William Archibald e Truman
Capote. O filme foi denominado Os Inocentes e é considerado um dos mais belos exercícios de
terror psicológico já feitos no cinema, além de constituir um vigoroso exemplo de adaptação
cinematográfica bem-sucedida de uma obra-prima literária.
SINISTRA E PEÇONHENTA
Fazer sinopse da história contada por um clássico muitíssimo conhecido é tolo, mas é
preciso levar em conta o pouco que se lê no Brasil e que há muita gente nova para quem essa
novela, embora muito citada, pode ser solenemente desconhecida.
Eis a situação: uma mulher jovem, solteira, filha de um pároco de um vicariato rural,
vai a Londres atender a um anúncio em que se oferece emprego para uma preceptora. O tio de
um casal de crianças órfãs, solteiro, bonitão e mundano, precisa de uma moça para cuidar dos
pequenos, que são, para ele, um grande incômodo. O que ele exige? Que a moça que se
dispuser ao trabalho vá para uma propriedade, Bly, no interior da Inglaterra, e fique lá,
cuidando das crianças, sem aborrecê-lo de modo algum com os problemas, podendo na
verdade, devendo resolver tudo sem que a vida brilhante dele em Londres seja perturbada. É
uma exigência absurda e egoísta, mas ele é encantador, percebe que ela é suscetível a esse
encanto e um contrato obviamente chantagista é feito. Ela rumará para a propriedade, fará
amizade com uma servidora rude e confiável, descobrirá que as crianças são
excepcionalmente inteligentes e belas. Até que certas verdades, nada agradáveis, começarão
a aparecer.
Isso ajuda e é pouquíssimo. Em Henry James, a trama pode ser pequena ou nenhuma,
visto que o decisivo é a maneira pela qual é narrada. E, nesse caso, estamos diante de umaarapuca finamente armada: a narrativa, decididamente, é suspeita. No preâmbulo, estamos em
uma sala vitoriana em que uma história de fantasmas foi contada e um seu ouvinte promete ao
grupo atento que tem uma muito mais terrível para narrar, excitando a todos. As suspeitas
podem começar já aí, visto que esse narrador que faz da coisa um teatro bem calculado
aparece sob as luzes duvidosas da manipulação e está envolvido pessoalmente com a coisa. É
mais indireto: a história aconteceu com uma mulher que foi governanta de sua irmã e que ele
conheceu quando pequeno. Na verdade, apaixonou-se por ela. E ela naturalmente, a jovem
que pegou a vaga de preceptora a que nos referimos lhe deixou o manuscrito em que conta
tudo.
É preciso acreditar na fidelidade desse manuscrito. Mas, pode-se duvidar à vontade,
na medida em que se vai conhecendo a narrativa da preceptora. Tem-se a impressão de um
mecanismo de sedução que gira em muitas direções tudo é extremamente ambíguo, tudo
está implicado em alguma outra coisa e a narrativa tem que ser já vista como algo que nasce
sob o signo da arbitrariedade dos personagens e do autor.
Essa preceptora é um dos personagens mais ambíguos de um escritor pródigo em
ambiguidades. Deitou-se tinta a fartar sobre seu caráter duvidoso e sobre sua condição de
virgem vitoriana cheia de imaginação e frustração sexual em doses idênticas. Incumbida do
casalzinho de órfãos, ela descobrirá que há, por trás deles, duas figuras que moraram em Bly e
de cuja existência já não se fala mais: Peter Quint, o criado de quarto do tio, que a contratara,
e a senhorita Jessel, a preceptora anterior das crianças.
Os dois estão mortos. A descoberta é pavorosa, mas, muito à maneira ambígua (e,
como tradutor, garanto que sentia uma espécie de sorrisinho de James pairando nessas
construções irônicas), é feita quando, numa tarde, devaneando romanticamente, ela imagina
que seria emocionante encontrar-se com a bela figura do tio que a impressionara nas cercanias
da casa. Sua fantasia se concretiza, e ela encontra um homem desconhecido. Não era,
naturalmente, o seu contratante. Era um espectro, o que ela não sabe. Mas a motivação
romântica, mesmo através do horror que sentirá quando a verdade lhe for revelada pela
servidora, permanecerá o homem era bonito. Vestia roupas que visivelmente não eram dele.
São do patrão, dirá, acabrunhada, a criada que bem o conheceu. Ela o julgou, a princípio,
um intruso intolerável na verdade, era alguém da casa. E assim começará a desesperadora
tentativa de proteger as crianças de verem o fantasma mais tarde, fantasmas até que outra
descoberta, mais aterradora, se imporá: as crianças sabem e, na verdade, escondem que
sabem, encontrando-se com os espectros furtivamente. É caso para enlouquecer, e não é de
todo implausível que o manuscrito tenha sido engendrado por uma mulher louca.
O que é imaginado, o que é verdadeiro, nessa história? O público se dividiu
enormemente com essa questão. A Volta do Parafuso teve grande repercussão, foi acolhido
com admiração e polêmica, desde o início. Oscar Wilde, ninguém menos que ele, disse que
era uma pequena história maravilhosa, sinistra e peçonhenta.
É uma história poderosamente sugestiva e que pode ir sendo descascada, camada por
camada, sem que um miolo unívoco seja atingido. Wilde deve ter levado bem em conta as
amplas possibilidades de perversão sexual que contém. Peter Quint, monstro, é um homemdesejado. Mantinha um caso com a preceptora anterior caso no mínimo escandaloso (do
ponto de vista dos criados, que nada podiam fazer a não ser testemunhar e fuxicar) e que era
testemunhado (mais tarde, sugere-se que imitado) pelas crianças. Os outros empregados não
podiam falar dele, para não chatear o patrão, que o deixara lá para tomar ares do campo e
sarar de alguma doença não explicada. Que espécie de intimidade era essa com o patrão, de
quem usava as roupas? Morto, ele é um duplo do tio gentleman, duplo letal e paródico, que
surge para a preceptora cheia de sonhos como a realidade sórdida que há por trás de seus
ingênuos ideais românticos. Não é preciso ir muito longe para se imaginar homossexualidade
nessa relação do criado de quarto com seu patrão, até porque persiste, nas impressões
posteriores da preceptora, a sugestão de que o menino, Miles, fora expulso do colégio por
dizer coisas estranhas aos colegas, com atitudes nitidamente influenciadas por seu convívio
com o morto.
Homossexualidade, incesto, pedofilia e o que mais se quiser estão nas suspeitas da
preceptora e nas do leitor, às margens de uma história vitoriana de fantasmas. Num folhetim
com jeito de apelar para a habitual cumplicidade de leitoras e adular o ego feminino, James
conseguiu colocar tudo isso com suprema elegância, poesia e com uma peçonha de mestre.
O PRINCIPAL SUSPEITO
Sexo e morte são os assuntos dessa novela, na verdade. E estão organicamente
interligados, porque é evidente, no contexto de puritanismo vitoriano em que a história
transcorre, que a narradora é um pouco como uma personagem de Charlotte Brontë (pensa-se
em Jane Eyre), tomada por anseios românticos, encontrando, numa atmosfera típica do
romance feminino inglês o casarão vetusto em que há um mistério não o galã sonhado,
mas um morto que não perdeu seu atrativo sexual. James estava consciente desse ângulo
paródico e se refere à hipótese-clichê do parente louco no texto. Nesse contexto, sexo só
poderia aparecer na forma de um demônio. Não haveria lugar para ele de uma maneira sã na
cabeça de uma filha de pároco rural cheia a um só tempo de imaginação e preconceitos.
Sente-se nela uma espécie de curiosidade imensa quanto a um assunto que a apavora o
trecho em que lê um romance um pouco picante de Fielding deixa isso bastante claro.
Sexo, então, teria que ser algo reprimido, indesejado e apavorante um fantasma.
Naturalmente, tal fantasma tem uma atração irresistível e essa tensão entre monstro e fauno
de Peter Quint dá ao texto riquezas ambíguas sem conta. Ele, o fantasma, é sempre
comparado a um animal, mas é, ao mesmo tempo, exatamente por conter tudo de instintivo e
permissivo, ou seja, de execrável, que encarna aquilo que a preceptora desejou sem permitir
que lhe subisse à consciência no tio gentleman, e, depois, no menino de cuja educação cuida
(o tempo todo ela se relaciona com o pequeno como se fosse um homem adulto, sedutor, em
miniatura). As implicações dessa história não param de se estender, em múltiplas direções,
nenhuma delas inocente, uma vez que as interpretações ficaram (e ficam) por conta da fineza
e da grossura dos leitores. No filme Os Inocentes, Truman Capote foi um dos roteiristas, esua percepção de literato deve explicar em parte a felicidade dessa adaptação, que termina
de maneira decididamente menos ambígua, com a preceptora beijando na boca o menino que
lhe morre nos braços. Capote deu forma até um pouco grosseira a uma conjetura.
Essas dúvidas com relação à veracidade da narrativa e à sanidade mental da
narradora, que por vezes se transformaram em outras tantas duvidosas certezas, marcaram a
análise da novela. E por isso é surpreendente encontrar, em A arte do Romance, de James,
recentemente lançado no Brasil, o autor em nada se referindo às decantadas neuroses da
preceptora, dizendo que sua intenção, ao escrever a novela, era fazer uma história de
fantasmas menos previsível, um entretenimento em que prevalecesse um tom de trágica, mas
requintada perplexidade.
Entre as intenções de James e as interpretações que a novela suscitou, há um abismo
curiosamente... jamesiano. Essas leituras em aberto, capaz de levarem a grandes acertos e
enormes absurdos, na certa deliciaram o autor. Mais (ou menos) apropriadamente, talvez,
pode-se dizer que, entre os fantasmas aí tecidos, encontra-se um outro, nada desprezível: o da
própria Literatura, que se ergue, no lugar do real, como uma fonte de possibilidades
vertiginosas. A Volta do Parafuso tem dois narradores e, quem sabe Deus, quantos infernais
giros interpretativos; os deleites pantanosos que oferece parecem não ter limites. O principal
suspeito, sem dúvida, é James, o artífice de um artifício que, a partir de si, se espatifa em
milhares de espelhos que se refletem e hipóteses que se erguem e se desdizem. É a eficácia do
parafuso. É o prazer de criar outros mundos, com uma perigosa e sedutora autonomia, que a
Literatura nos dá. A VOLTA DO PARAFUSO PREFÁCIO
O relato nos mantivera ao redor do fogo, suficientemente sem fôlego, mas exceto
pela óbvia observação de que este era horrível, como um estranho conto, em véspera de Natal
numa velha casa, deve essencialmente ser, não me lembro de ter havido comentário algum até
que alguém arriscou dizer que era o único caso que conhecera em que uma tal aparição tinha
ocorrido a uma criança. Era o caso, posso dizer, de uma aparição que ocorrera numa velha
casa exatamente como aquela em que estávamos reunidos na ocasião uma aparição de
espécie medonha vista por um menininho que dormia num quarto com sua mãe e que
despertou-a aterrorizado; despertou-a não para dissipar sua aflição e acalmá-lo para que
voltasse a dormir, já que ela, antes de consegui-lo, se encontrou diante da mesma visão que o
tinha abalado. Foi essa observação que arrancou de Douglas não imediatamente, mas no
transcorrer da noite uma réplica que teve uma consequência interessante para a qual chamo
a atenção. Outra pessoa contou uma história de pouco efeito, quando observei que ele não
ouvia. Tomei isso como um sinal de que ele tinha alguma coisa para nos revelar e que teríamos
apenas que esperar por ela. De fato, esperamos mais duas noites; mas, naquela mesma ocasião,
antes que nos dispersássemos, ele nos contou o que passava por sua cabeça.
Concordo inteiramente a respeito do fantasma de Griffin, fosse ele o que fosse
que o fato de ter aparecido primeiro a um menino de tão pouca idade lhe dá uma
característica particular. Mas essa não é a primeira ocorrência desse tipo encantador que
envolva uma criança, ao que eu saiba. Se uma criança faz dar outra volta ao parafuso, o que
diriam vocês de duas?
Diríamos que dariam duas voltas, com certeza! alguém exclamou E que
também gostaríamos de saber sobre elas.
Revejo Douglas ali diante do fogo, para o qual dera as costas, encarando seu
interlocutor com as mãos enfiadas nos bolsos. Até agora, só eu soube. É horrível demais.
Várias vozes declararam, naturalmente, que isso dava à coisa um valor extremo e nosso amigo,
com arte sutil, preparou seu triunfo lançando olhares sobre todo o resto da plateia e
continuou: Está além de qualquer descrição. Não conheço nada com que possa ser
comparado.
Em termos de puro terror?, lembro-me que perguntei.
Ele pareceu querer dizer que não era tão simples assim; pareceu estar perdido numa
luta mental para qualificar a coisa. Passou sua mão sobre seus olhos e fez um pequeno esgar de
estremecimento. Em termos de pavor pavor além da conta!
Oh, que delícia!, exclamou uma das mulheres.
Ele não a notou; olhou-me, mas como se, ao invés de mim, ele estivesse vendo aquilo
de que falara. Em termos de monstruosidade oculta, de horror e de dor.
Bem, então, disse eu, sente-se imediatamente e comece a contar.
Ele voltou para o pé do fogo, afastou uma acha com o pé, olhando-a por um instante.Falou como se nos olhasse novamente: Não posso começar. Antes, tenho que dar
providências na cidade. Houve um gemido de desânimo geral e muita reprovação em reação
a isso, depois dos quais ele, a seu modo preocupado, explicou. A história está escrita. Ficou
numa gaveta bem fechada não saiu de lá por muito tempo. Podia escrever ao meu criado
enviando a chave, ele me enviaria o pacote assim que o achasse. Era a mim em particular que
ele parecia querer propor isso parecia quase apelar para uma ajuda a fim de acabar com suas
próprias hesitações. Tinha quebrado uma espessa camada de gelo, uma formação que vinha se
fazendo há mais de um inverno; tinha tido razões para seu longo silêncio. Os outros ficaram
ressentidos com o adiamento, mas era exatamente sua dose de escrúpulos que me encantava.
Instiguei-o a escrever pelo primeiro correio e a combinar conosco uma pronta leitura; então
lhe perguntei se a experiência em questão tinha acontecido com ele. A isso respondeu
rapidamente. Graças a Deus, não!.
E o relato é seu? Foi você que o escreveu?
Fiquei apenas com a impressão. Guardei-a aqui ele bateu em seu coração. Nunca
a perdi.
Então, o manuscrito...?
O manuscrito está numa tinta velha e apagada, na mais bela de todas as letras. Ele
revolveu o fogo novamente. Letra de uma mulher. Ela morreu há vinte anos. Mandou-me essas
páginas antes da morte. Todos ouviam-no agora, e claro que não faltou alguém para fazer
malícia ou extrair a infalível dedução. Mas, se pôs a dedução de lado sem sorrir, também o fez
sem irritar-se. Ela era uma pessoa do maior encanto, mas era dez anos mais velha que eu. Era a
governanta de minha irmã, disse mansamente. Era a mulher mais agradável que conheci em
sua posição; teria sido digna de posições bem mais elevadas. Foi há muito tempo, e a coisa se
deu bem antes de eu conhecê-la. Eu estava em Trinity, e a encontrei em casa no meu segundo
verão. Fiquei muito lá naquele ano foi uma bela temporada; nas suas horas de folga,
passeávamos e conversávamos no jardim conversas nas quais ela me deixava atônito com sua
inteligência e beleza. Ah, não riam: eu gostava imensamente dela e até hoje fico feliz em pensar
que ela também gostava de mim. Se não gostasse, nunca teria me contado. Nunca contara a
história a ninguém. Não que o dissesse, mas eu sabia que não contara. Eu tinha certeza; eu via.
Vocês saberão facilmente o porquê, quando a ouvirem.
Por que a coisa tinha sido tão pavorosa?
Ele continuou a encarar-me. Você saberá facilmente, ele repetiu: você saberá.
Encarei-o também. Compreendo. Ela estava apaixonada.
Riu pela primeira vez. Você é perspicaz. Sim, estava apaixonada. Quer dizer: tinha
estado. Isso transpareceu ela não poderia ter contado a sua história sem que isso
transparecesse. Notei, e ela notou que eu notei, mas nenhum de nós tocou no assunto. Lembro
a hora e o lugar um canto de gramado, a sombra de grandes faias e a tarde longa e quente de
verão. Não era cenário para um arrepio; mas...! Afastou-se do fogo e voltou a recostar-se em
sua cadeira.Receberá o pacote na manhã de quinta-feira?, perguntei.
Creio que na segunda remessa.
Bem, então depois do jantar...
Vocês todos estarão aqui? Lançou um olhar para todo o grupo novamente.
Ninguém irá embora? A pergunta continha uma nota de esperança.
Todo mundo vai ficar!
Eu vou e eu vou!, exclamaram as senhoras cuja partida já estava marcada. A
Senhora Griffin, contudo, mostrou-se carente de um pouco mais de esclarecimento. Por quem
será que ela estava apaixonada?.
A história dirá, incumbi-me de responder.
Oh, mal posso esperar pela história!
Ela não dirá, disse Douglas. Não de um modo literal, vulgar.
Mais uma lástima, então. Esse é o único modo pelo qual entendo as coisas.
Você não contará, Douglas?, alguém perguntou.
Ele pôs-se de pé novamente. Sim amanhã. Agora preciso dormir. E, rapidamente,
apanhando um castiçal, ele se afastou, deixando-nos um pouco desconcertados. Ouvimo-lo
subindo a escada do extremo do salão de lambris escuros onde nos encontrávamos e onde a
Senhora Griffin falou. Bem, se eu não sei por quem ela estava apaixonada, por quem ele
estava eu sei.
Ela era dez anos mais velha, disse o marido.
Raison de plus naquela idade! Mas é bonito, esse longo silêncio em que ele se
manteve..
Quarenta anos!, Griffin acrescentou.
E por fim esse desabafo.
O desabafo, retornei, fará da noite de quinta-feira uma ocasião muito especial, e
todo mundo concordou comigo de tal modo que, tendo isso em consideração, perdemos a
atenção para tudo mais. A última história, embora incompleta e sugerindo muito mais o início
de uma série, tinha sido contada; apertos de mãos e o que alguém chamou de apertos de
castiçais foram trocados, nos despedimos e fomos dormir.
Soube no dia seguinte que uma carta contendo a chave tinha sido mandada a seu
apartamento em Londres, pelo primeiro correio; mas apesar ou talvez por causa da
eventual difusão desse fato, deixamo-lo tranquilo até depois do jantar, até uma certa hora da
noite que de fato pudesse combinar com o tipo de emoção no qual depositávamos nossas
expectativas. Então ele se tornou tão comunicativo quanto desejávamos e deu-nos realmente
motivos para ficarmos esperançosos. Escutamo-lo novamente diante do fogo no salão, ali
mesmo onde, na noite anterior, tinha-nos mantido num assombro bem-educado. Parecia que a
narrativa que prometera ler-nos requeria algumas palavras de introdução para ser melhorcompreendida. Permitam-me dizer que essa narrativa, numa transcrição fiel que fiz muito
tempo depois, é a que se lerá neste livro. Pobre Douglas, antes de sua morte quando ela era
já iminente entregou-me o manuscrito que lhe chegou no terceiro desses dias e que, no
mesmo lugar, na noite do quarto, começou a ler para nosso pequeno grupo silencioso e atento.
As senhoras de partida marcada que tinham afirmado categoricamente que ficariam,
naturalmente, graças aos céus, não ficaram: partiram, devido a compromissos já
estabelecidos, morrendo de curiosidade, como diziam, curiosidade produzida pelos toques
com que ele nos tinha cativado. Mas isso, por fim, apenas tornou sua pequena plateia mais
compacta e seleta, mantendo-a, em torno da lareira, sujeita a uma emoção em comum.
O primeiro desses toques estabelecia que o manuscrito partia de um ponto em que a
história já tinha, de certa maneira, começado. Tínhamos que ter em mente o fato de que sua
velha amiga, a mais velha de várias filhas de um pobre pároco rural, aos seus vinte anos, à
procura de seu primeiro trabalho como preceptora, fora para Londres, agitada, para
responder em pessoa a um anúncio que já a tinha colocado em contato, através de
correspondência, com o anunciante. Ao apresentar-se para o teste numa casa em Harley
Street, o possível futuro patrão provou-se um cavalheiro, um homem solteiro ainda bem
jovem, uma figura que, como tal, nunca tinha lhe aparecido em sua vida de mocinha irrequieta
e sonhadora de um vicariato em Hampshire. Pode-se facilmente adivinhar seu tipo; felizmente,
nunca desaparece. Era bonito e ousado e gentil, espontâneo e alegre e acolhedor. Ele a
encantou, inevitavelmente, pelo que tinha de galante e esplêndido, mas o que a encantou mais
que tudo e deu a ela a coragem que exibiu mais tarde, foi ele ter posto a coisa em tais termos
que seria como um favor que ela lhe fizesse, uma obrigação pela qual ele contrairia uma dívida
de gratidão com ela. Fantasiou-o rico, mas perdulário, extravagante via-o todo
resplandecente em alta moda, em bela aparência, mantendo hábitos de luxo, cativante para
as mulheres. Sua residência na cidade era um casarão repleto de lembranças trazidas de
viagens e troféus de caça; mas era para a sua casa no campo, um antigo recanto de família em
Essex, que ele queria que ela imediatamente fosse.
Ele tinha ficado tutor de um casal de pequenos sobrinhos, cujos pais tinham morrido
na Índia; o pai era um seu irmão mais jovem, militar, que ele perdera há dois anos atrás. Essas
crianças estavam, pelo mais estranho dos acasos para um homem em sua posição sozinho e
sem experiência apropriada ou um pingo de paciência para esses fins pesando em suas mãos.
Tudo tinha sido uma enorme preocupação e, quanto ao que lhe tocava, fora de dúvida, um
sem-fim de equívocos, mas ele se compadecia imensamente da sorte dos pequenos e fizera
quanto pudera; mandara-os para a sua outra casa, tendo em vista que era melhor para eles
estarem no campo, e mantivera-os lá desde o início com quem melhor pudesse cuidar deles,
privando-se de alguns de seus servidores e indo, sempre que podia, ver como as coisas iam se
arranjando. A coisa mais espinhosa era que as crianças não tinham outros parentes e que seus
próprios negócios mantinham-no ocupado a maior parte do tempo. Instalara-os em Bly, um
lugar que era saudável e seguro, colocando à frente dos trabalhos domésticos uma mulher
excelente, a Senhora Grose, a quem estava certo que ela apreciaria e que fora primeiro uma
criada de sua mãe. A Senhora Grose fazia vezes de governanta e estava incumbida de cuidar da
menininha, a quem, por não ter filhos, era, felizmente, muito apegada. Havia um monte degente para ajudá-la, mas certamente a pessoa que tivesse a função de preceptora seria dotada
de autoridade suprema. Nas férias, ela teria que cuidar também do rapazinho, que estava no
colégio era jovem demais para isso, mas que se podia fazer? e, como estavam prestes a
começar, ele poderia voltar de uma hora para outra. No início, tinha havido uma jovem que
cuidava do casalzinho, mas, por desgraça, tinham-na perdido. Trabalhara com eles muito bem
era uma pessoa respeitabilíssima até a sua morte, o que de pior podia acontecer então,
pois não lhes deixou outra solução senão mandar o pequeno Miles para o colégio. A Senhora
Grose, desde essa perda, fez o que pode por Flora em termos de ensinar-lhe o devido; e havia,
além dela, uma cozinheira, uma criada, uma granjeira, um velho pônei, um velho que cuidava
da estrebaria e um velho jardineiro, todos igualmente respeitáveis.
Douglas tinha chegado a essa altura da história, quando alguém fez uma pergunta. E
de que morreu a primeira preceptora? de tanta respeitabilidade?.
Nosso amigo respondeu prontamente. Isso será esclarecido. Não vou adiantar nada.
Perdão pensei que era exatamente isso que você estava fazendo..
No lugar da sucessora, sugeri, eu teria querido saber se o emprego implicaria em...
Perigo de morte?. Douglas completou meu pensamento. Ela queria saber sim, e
soube. Vocês saberão amanhã o que ela soube. Naquele momento, naturalmente, a
perspectiva lhe pareceu ligeiramente sombria. Ela era jovem, novata, nervosa: tinha pela frente
um panorama de obrigações muito sérias e escassa companhia, uma solidão realmente grande.
Hesitou pediu alguns dias para meditar e considerar. Mas o salário oferecido ultrapassava
suas expectativas modestas, e numa segunda entrevista decidiu encarar a situação e aceitou.
Nesse trecho, Douglas fez uma pausa que, em benefício do grupo, motivou-me a observar
A moral dessa história foi que a sedução do belo homem funcionou, naturalmente.
Ela sucumbiu.
Ele levantou-se e, como na noite anterior, andou rumo ao fogo, revolveu uma acha
com o pé e ficou por um instante de costas para nós. Ela viu-o apenas duas vezes.
Sim, mas é isso que embeleza a sua paixão.
Nisso, Douglas, para minha surpresa, virou-se para meu lado. Realmente, era o que a
embelezava. Houve outras candidatas ao emprego, continuou, que não sucumbiram. Ele lhe
falou francamente de suas dificuldades para as outras, as condições tinham sido proibitivas.
Mostravam-se assustadas. O trabalho parecia monótono parecia estranho; e mais ainda por
causa de sua principal condição.
Que era... ?
Que a contratada nunca o perturbasse mas isto nunca, nunca: nem apelar nem
queixar-se nem escrever sobre coisa nenhuma; teria que resolver as questões sozinha, receber
o dinheiro das mãos do procurador, assumir o encargo todo e deixá-lo em paz. Ela prometeu
fazê-lo, e mencionou-me que quando, por um momento, aliviado, deliciado, ele apertou sua
mão, agradecendo-a pelo sacrifício, ela se sentiu recompensada.E isso foi tudo que ela obteve como recompensa?, uma senhora perguntou.
Ela nunca mais o viu.
Oh!, suspirou a senhora; o que, como nosso amigo se afastou novamente, foi a única
palavra de importância sobre o assunto que nos restou até que, na noite seguinte, no canto da
lareira, na melhor cadeira, ele abriu a apagada capa vermelha de um álbum pouco volumoso,
de bordas douradas, de um gênero fora de moda. Tudo durou muito mais que uma noite, mas
na primeira ocasião a mesma senhora tinha outra pergunta a fazer. Que título tem?
Não lhe dei nenhum.
Oh, eu tenho um!, afirmei. Mas Douglas, sem me dar atenção, tinha começado a ler
com um uma clareza tão límpida que era como se estivesse fazendo uma transposição para os
nossos ouvidos da beleza da letra da autora. CAPÍTULO I
Recordo todo o início como uma sucessão de altos e baixos, como uma pequena
gangorra de emoções desencontradas. Depois do entusiasmo com que atendi ao apelo dele na
cidade, tive sob todos os aspectos alguns dias muito difíceis vi-me novamente cheia de
dúvidas, chegando a ter certeza de que fizera a coisa errada. Neste estado de espírito passei as
longas horas de trepidações e solavancos dentro de uma diligência que me levava até o ponto
de parada onde um veículo proveniente da casa devia me apanhar. Eu contava com esta
providência, que de fato foi tomada, e finalmente me acomodei numa carruagem que me
conduziu por um fim de tarde de Junho. Viajar nessa hora, num belo dia, através de uma região
cuja doçura de verão parecia me oferecer uma acolhida amigável, fez com que minhas forças
se recuperassem e, quando entramos numa alameda, encontraram um alívio que não era mais
que a prova do quanto andavam combalidas. Suponho que tinha esperado, ou temido, alguma
coisa tão profundamente melancólica que o que encontrei foi uma grata surpresa. Recordo,
como uma impressão das mais agradáveis, a fachada ampla e clara, janelas abertas e cortinas
frescas e um par de criadas à minha espera; lembro o gramado e as flores luminosas e o ruído
das rodas no cascalho e as copas unidas das árvores acima das quais, lá no alto, no céu
dourado, as gralhas voavam em círculos e grasnavam. O cenário tinha uma imponência que o
tornava muito diferente da terra natal sem atrativos de que eu provinha, e imediatamente
surgiu à porta, de mãos dadas com uma menina, uma pessoa comum que saudou-me com uma
mesura tal que era como se eu fosse a esposa de um visitante ilustre. Em Harley Street eu
obtivera uma noção vaga do lugar, e isso, como recordo, fez-me julgar o proprietário muito
mais que um cavalheiro, visto que o que eu estava por desfrutar agora podia ser algo muito
além do que ele me descrevera.
Não tive decepção até o dia seguinte, porque uma sensação de triunfo apoderou-se
de mim depois que fui apresentada à minha jovem aluna. A garotinha que acompanhava a
Senhora Grose pareceu-me uma criatura tão encantadora que achei uma grande sorte ter que
cuidar dela. Ela era a criança mais bela que eu já vira, tanto que me pus a pensar por que meu
patrão não teria me falado dela mais detalhadamente. Dormi pouco naquela noite estava
excitada demais; me espantava também a generosidade com que estava sendo tratada. O
quarto grande e impressionante, um dos melhores da casa, a cama ampla e de gala, como a
achei, as cortinas estampadas, os altos espelhos nos quais, pela primeira vez, via-me de corpo
inteiro, tudo me deslumbrava como o extraordinário encanto de minha pequena discípula
e me parecia arrebatador. Ficou claro, desde o princípio, que eu teria com a Senhora Grose
uma relação diferente daquela que, na diligência, viera me causando cismas. A única coisa que
poderia ter me infundido algum receio nesse primeiro encontro era a clara circunstância de ela
estar tão alegre por me receber. Em menos de uma hora, percebi que ela estava tão alegre
era uma mulher corpulenta, simples, direta, limpa e sadia que esforçava-se para disfarçá-lo,
para que essa alegria não transbordasse. Pensei com estranheza sobre o porquê desse desejo
de ocultá-la e, se me estendesse na reflexão e na suspeita, eu ficaria ainda mais inquieta.
Mas era um alívio que não pudesse haver inquietação em relação a uma coisa tão
beatífica quanto a imagem radiante da garotinha, visão cuja beleza angelical tinha sido a causaprovável de uma inquietude que, antes de amanhecer, fez-me várias vezes sair da cama e vagar
pelo meu quarto para ter uma noção mais compenetrada do ambiente, para observar, de
minha janela aberta, o esmaecer da aurora de verão, para tomar ciência de outras partes do
resto da casa enquanto ouvia, na escuridão que se diluía, os primeiros pássaros começando a
trinar, e supunha ouvir algo mais, a recorrência de um ou dois sons menos naturais não lá fora,
mas no lado de dentro. Houve um momento em que acreditei ter reconhecido, débil e
distante, o grito de uma criança; houve também outro em que tive como que o começo da
consciência de que passos leves passavam atrás da porta. Mas essas cismas não eram
acentuadas a ponto de não poderem ser postas de lado, e é apenas à luz, ou à sombra, dos
fatos subsequentes, que agora retornam à minha memória. Vigiar, ensinar, formar a pequena
Flora era uma perspectiva evidente demais de vida feliz e produtiva. Ficara combinado lá
embaixo que, depois da primeira noite, ela passaria a ficar ali comigo, e a pequena cama
branca já tinha sido colocada junto à minha para esse fim. Eu teria a guarda total dela e ela
tinha ficado pela última vez com a Senhora Grose levando ambas em conta o meu inevitável
desajustamento e a timidez natural da menina. A despeito dessa timidez a que ela mesma, do
modo mais estranho do mundo, se referia com franqueza e coragem, sem o menor sinal de
embaraço, com a profunda e doce serenidade de um anjo de Rafael, colocando-a em questão e
atribuindo a si a responsabilidade eu tinha certeza de que ela gostaria de mim. A Senhora
Grose mostrava um prazer evidente, que já me fizera gostar dela, constatando a minha
admiração e deslumbramento quando eu me aproximava da mesa de jantar com quatro altos
candelabros e a minha pequena discípula, sentada numa cadeira alta, com um babadouro no
pescoço, observava-me com atenção radiosa por cima do pão e do leite. Naturalmente havia
coisas a que, na presença de Flora, só podíamos aludir obscuramente, com uma troca de
olhares gratos e admirados.
E o menino ele se parece com ela? É extraordinário assim também?
Convinha não lisonjear diretamente uma criança. Oh, senhorita, muito. Se a senhora
acha disso da menina! e lá ficava ela com um prato na mão, embevecida com nossa
companheira, que nos olhava de uma para outra, os olhos celestiais sem nenhuma espécie de
desconfiança de nós.
Sim; e aí...?
Vai ficar arrebatada com o pequeno gentleman!
Bem, acho que foi para isso que vim para ficar arrebatada. Mas, estou com um
pouco de medo, lembro-me de ter tido o impulso de acrescentar, Fico facilmente
arrebatada. Já o fiquei, em Londres.
Revejo o rosto amplo da Senhora Grose considerando o que eu acabara de dizer. Em
Harley Street?
Em Harley Street, sim.
Bem, senhorita, não é a primeira e não será a última.
Oh, não tenho a pretensão, consegui rir, de ser a única. Meu aluno, segundoentendo, deve chegar amanhã?
Amanhã não, senhorita: chega na sexta-feira. Virá pela diligência, como a senhora,
sob vigia do guarda, e depois, a mesma carruagem que a trouxe vai pegá-lo.
Disse então que o mais apropriado, cordial e amistoso a fazer, pela ocasião da
chegada da carruagem, era que eu fosse esperar por ele na companhia da irmãzinha; a ideia
agradou tanto a Senhora Grose que eu interpretei seu agrado como se fosse uma promessa
calorosa graças aos céus, nunca desmentida! de que estaríamos unidas em todas as
questões. Oh, ela realmente estava muito alegre pela minha presença!
O que eu senti no dia seguinte, suponho que não fosse nada que pudesse ser chamado
com justiça de uma reação ao prazer de minha chegada; era muito mais, provavelmente, uma
ligeira opressão causada por uma avaliação mais completa dos acontecimentos, ponderando
uma por uma as circunstâncias. Elas tinham, como eram, uma extensão e um volume para os
quais eu não me preparara e na sua presença eu me sentia um tanto amedrontada e também
um tanto orgulhosa. As lições, devido a essa agitação, sofreram um atraso; refleti que meu
primeiro dever era, pelas artes mais sedutoras que pudesse inventar, o de conquistar a atenção
da menina. Passei o dia ao ar livre, tendo-a ao meu lado; dispus com ela, para sua grande
satisfação, que era ela, apenas ela, quem deveria mostrar-me o lugar. Mostrou-o passo a passo
e aposento a aposento e segredo a segredo, com uma tagarelice cômica, deliciada e infantil
que teve o resultado de, em menos de uma hora, tornar-nos imensamente amigas. Jovenzinha
como ela era, fui arrastada, ao longo de nossa pequena excursão, por sua confiança e coragem
em ir abrindo caminho, mostrando aposentos vazios e corredores escuros, escadas em espiral
que me obrigavam a parar para tomar fôlego, o que fiz também no alto de uma torre
quadrada, de ameias, devido a tonturas, a sua música matinal, a sua disposição para dizer mais
coisas que as que me perguntava me causando tanto interesse quanto aturdimento. Não voltei
a ver Bly desde o dia em que deixei o lugar, e ouso dizer que para meus olhos mais experientes,
ele apareceria, agora, em sua dimensão exata de acanhamento. Mas, enquanto minha pequena
guia, com seu cabelo dourado e seu vestido azul, dançava diante de mim mostrando-me cantos
e passagens, eu tinha a visão de um castelo de romance habitado por um duende rosado, um
lugar que, pela diversão de uma mente infantil, tomaria todo o aspecto de um livro de fábulas
ou contos de fadas. Aquilo já não seria uma historinha fantástica que me fizera adormecer e
sonhar? Não; era uma casa grande, feia e antiga, mas cômoda, que continha elementos de uma
construção ainda mais remota, em parte substituídos e em parte reutilizados, na qual eu tinha
a impressão de que estávamos meio perdidos, como um punhado de passageiros num navio à
deriva. Nesse navio era como se eu estivesse, estranhamente, segurando o leme! CAPÍTULO 2
Essa ideia me voltou quando, dois dias depois, fomos, eu e Flora, esperar o pequeno
gentleman, que era como a Senhora Grose o chamava; voltou-me devido a um incidente, que
ocorrendo logo na segunda noite, deixara-me desconcertada. O primeiro dia havia sido, no
geral, como expliquei, bem tranquilizador; mas fui vendo-o transformar-se e trazer uma
intensa apreensão.O correio, de noitinha chegando com atraso continha uma carta dirigida
a mim, que, contudo, na letra do meu patrão, era composta por poucas palavras e incluía
outra carta, endereçada a ele, com o lacre ainda intacto. Reconheço aí a letra do diretor do
colégio, e ele é um terror de maçante. Leia, por favor; entenda-se com ele por mim; mas
lembre-se de não me informar. Nem uma palavra. Estou viajando! Rompi o lacre com um
esforço tão grande que parecia que não ia acabar-se nunca; levei a carta fechada para o meu
quarto lá em cima e só me senti disposta a atacá-la quando já estava para dormir. Teria feito
melhor se esperasse para fazê-lo na manhã seguinte, pois seu efeito foi me dar uma segunda
noite de insônia. Como não havia ninguém com quem me aconselhar, no outro dia, fiquei
angustiada; a angústia chegou, por fim, a tal ponto, que tomei a decisão de abrir-me pelo
menos com a Senhora Grose.
Que significa isto? O menino foi expulso do colégio.
Ela lançou-me um olhar que por um momento estranhei; então, visivelmente, com
uma ligeira inexpressividade, pareceu recuperar-se. Mas eles não são todos... ?
Mandados para casa sim. Mas só pelo período das férias. No caso de Miles, pode
ser que nunca mais volte.
Conscientemente, enquanto eu a fitava, ela enrubesceu. Não vão querê-lo mais?
Foi rejeitado de forma absoluta.
Nesse ponto ergueu os olhos, que tinha desviado de mim; vi-os ficarem cheios de
lágrimas. O que ele fez?
Hesitei; achei mais simples lhe estender a carta contudo, isso fez com que, sem
apanhá-la, colocasse as mãos atrás de si. Balançou a cabeça tristemente. Essas coisas não são
para mim, senhorita.
Minha confidente não sabia ler! Tremi com minha falha, que atenuei como pude, e
abri minha carta novamente para repetir-lhe o que soubera; então, hesitando e dobrando-a
novamente, recoloquei-a em meu bolso. Ele é mesmo um garoto mau?
As lágrimas estavam ainda lá, em seus olhos. Os senhores do colégio afirmam isso?
Não entram em detalhes. Simplesmente dizem com pesar que será impossível
mantê-lo. Isso só pode ter um significado. A Senhora Grose ouvia com emoção contida;
absteve-se de perguntar que significado seria esse; de tal modo que, para colocar a coisa de
um modo inteligível em sua presença, continuei: Que ele pode ser prejudicial para os outros
alunos.
A essa altura, com um desses sobressaltos comuns em gente simples, ela inflamou-se.O Senhor Miles! ele, prejudicar alguém!
Havia tal transbordamento de boa-fé em sua expressão que, mesmo sem ter visto o
menino, meus próprios receios fizeram com que eu recuasse ante o absurdo da ideia. Vi-me,
para ser solidária com minha companheira, dizendo sarcasticamente: Prejudicar seus pobres
coleguinhas inocentes!.
É terrível que se diga coisas tão cruéis! Ele tem apenas dez anos, gemeu a Senhora
Grose.
Sim, sim; seria inacreditável.
Tal declaração deixou-a evidentemente satisfeita. Veja-o primeiro, senhorita.
Depois, verá se é possível acreditar nisso!. Senti um recrudescimento da impaciência que já
tinha por vê-lo; foi o começo de uma curiosidade que, por todas as horas subsequentes,
chegava a ponto de doer. Pelo que percebia, a Senhora Grose tinha consciência do efeito que
suas palavras me causaram, e reforçou-as com toda a segurança. Pode-se pensar o mesmo da
pequena senhora. Abençoada seja!, acrescentou olhe para ela!
Virei-me e vi Flora, a quem, há dez minutos, deixara na sala de estudos com uma
folha de papel branco, um lápis e o dever de copiar uns Os bem redondos e que agora
aparecia para dar uma espiada pela porta aberta. A seu modo de criança, expressava um
grande desapego às tarefas desagradáveis, e , apesar da existência destas, me olhava com a
irradiação de sua infância como se esta fosse um mero resultado do afeto que por mim sentia,
o que redundava na necessidade de obedecer-me. Não precisei mais que essa visão para sentir
a força inequívoca da comparação da Senhora Grose, e, agarrando minha aluna nos braços,
cobri-a de beijos nos quais havia um soluço de arrependimento.
Apesar disso, pelo resto do dia esperei por uma ocasião oportuna para aproximar-me
de minha companheira, especialmente pela noitinha, quando cismei que ela parecia estar
preferindo me evitar. Apanhei-a, lembro, na escada; descemos juntas, e na base eu a detive,
abraçando-a e colocando a mão em seu ombro. O que a senhora me disse pela manhã, eu
tomei como afirmação de que nunca viu o menino se comportar mal.
Lançou a cabeça para trás; a essa altura, ela, com honestidade, bem claramente, já
havia tomado uma atitude. Oh, nunca não eu não pretendia dizer uma coisa dessas!
Fiquei perplexa outra vez. Então, a senhora viu ...?
Sim, senhorita, graças a Deus!
Refleti e aceitei. A senhora quer dizer que um menino que nunca...?
Não é um menino para mim!
Abracei-a com mais força. A senhora gosta que os meninos sejam travessos?. E,
antecipando sua resposta, disse: Eu também!, rapidamente acrescentei: Travessos sim, mas
não a ponto de contaminar...
Contaminar? a palavra a deixou atarantada.
Expliquei-a. Corromper.Arregalou os olhos, compreendendo; mas a coisa causou nela uma risada estranha.
Tem medo que ele corrompa a senhorita? Colocou a questão com um humor tão leve e
audacioso que imitei sua risada, um pouco tolamente, sem dúvida, ficando apreensiva pelo
ridículo que poderia passar.
Mas no dia seguinte, quando a hora de tomar o carro se aproximava, apanhei-a em
outro ponto da casa. Como era a moça que esteve aqui antes de mim?
A última preceptora? Era também jovem e bela quase tão jovem e tão bela como a
senhorita.
Então, espero que a juventude e a beleza dela tenham lhe ajudado! deixei escapar.
Ele parece nos preferir jovens e belas!
Oh, ele preferia, a Senhora Grose concordou: era assim que gostava de todas! Mal
tinha falado essas palavras, procurou emendar-se. Digo que esse é o jeito dele do patrão.
Fiquei alarmada. Mas de quem a senhora falou primeiro?
Ela estava pálida, mas recuperou-se. Ora, dele, claro.
Do patrão?
De quem mais poderia ser?
Era tão clara a inexistência de alguém mais que no momento seguinte eu já tinha
esquecido a minha impressão de que ela dissera acidentalmente mais do que queria; e
simplesmente perguntei o que queria saber. Ela via alguma coisa no menino... ?
Que fosse errada? Nunca me falou nada.
Tive um escrúpulo, que venci. Ela era cuidadosa, nesse particular?
A Senhora Grose pareceu esforçar-se por lembrar bem. Em certos aspectos sim.
Mas não em todos?
Ela voltou a pensar. Bem, senhorita ela se foi. Não vou ser faladeira.
Entendo a sua posição, apressei-me em responder; mas logo a seguir, pensei que
não haveria mal em aproveitar e prosseguir: Ela morreu aqui?
Não tinha ido embora.
Não sei o que havia nesse laconismo da Senhora Grose que o tomei como um pouco
ambíguo. Foi-se embora para morrer? A Senhora Grose olhou para fora da janela,
esquivando-se, mas eu achei que, hipoteticamente, tinha o direito de saber o que era esperado
das jovens que se empregavam em Bly. A senhora quer dizer que ela ficou doente e foi para
casa?.
Não ficou doente aqui, que me lembre. Saiu no fim do ano para ir para casa, como
disse, tirando uma folga, o que, pelo tempo que tinha trabalhado aqui, estava no seu direito.
No seu lugar, ficou uma outra mulher uma empregada que também era uma moça boa e
inteligente; e foi essa que tomou conta das crianças nesse intervalo. Mas, nunca voltou, e noexato momento em que eu esperava por ela, o patrão me comunicou que estava morta.
Pensei e pensei naquilo. Mas, morreu de quê?
Ele nunca me falou! Mas, por favor, senhorita, disse a Senhora Grose. Preciso
continuar com meu trabalho. CAPÍTULO 3
O fato de, a seguir, ela ter me dado às costas não foi, felizmente, para as minhas justas
preocupações, uma descortesia que pudesse estorvar o crescimento de nosso afeto mútuo.
Depois que eu trouxe Miles para casa, ficamos mais íntimas que nunca devido à minha
estupefação e meu abalo, pois achava monstruoso que uma criança como aquela que eu
acabava de conhecer estivesse proibida de ficar no colégio. Cheguei um pouco atrasada ao
nosso encontro e senti, enquanto ele permanecia numa espera ansiosa de mim diante da porta
da estalagem na qual a diligência o deixara, que o via, naquele instante, sem tirar nem pôr,
com a mesma irradiação de frescor, com a mesma indiscutível fragrância de pureza que
percebera ao conhecer sua irmã no primeiro momento. Ele era incrivelmente bonito, e o que a
Senhora Grose tinha dito era a pura verdade: sua presença fazia com que nada a não ser uma
ternura apaixonada subsistisse. O que atingiu meu coração ali, na ocasião, foi algo divino que
nunca encontrei no mesmo grau em outra criança seu indescritível jeitinho de não conhecer
neste mundo nada que não fosse amor. Era impossível que alguém carregasse uma má
reputação com maior doçura e inocência, e quando voltava para Bly ao seu lado continuei
perplexa ou melhor, indignada ao lembrar-me da carta horrível que deixara trancada
numa gaveta do meu quarto. Assim que pude trocar algumas palavras em particular com a
Senhora Grose, declarei a ela que tudo aquilo era grotesco.
Ela me entendeu rapidamente. A senhorita está falando daquela acusação cruel?.
Não procede. Minha cara, olhe para ele!
Ela sorriu de minha pretensão de ser a descobridora do encanto do menino. Pode ter
certeza de que não faço outra coisa, senhorita! Então, o que a senhorita vai dizer?, ela
acrescentou prontamente.
Em resposta à carta? Eu já tinha me decidido. Nada.
E ao tio do menino?
Fui incisiva. Nada.
E ao próprio menino?
Fui maravilhosa. Nada.
Ela enxugou os lábios vigorosamente com o avental. Então, ficarei do seu lado. O
que acontecerá, veremos.
Veremos!, repeti com ardor, estendendo-lhe a minha mão para que selássemos o
nosso pacto.
Ela me deteve mais um pouco, e então ergueu o avental novamente com a mão que
ficara livre. A senhorita se importaria se eu tomasse a liberdade...?
De beijar-me? Não! Tomei a boa criatura em meus braços e, depois que tínhamos
nos abraçado feito irmãs, nos sentimos ainda mais fortalecidas e indignadas.
Foi assim que as coisas se passaram durante certo tempo: um tempo tão cheio que,quando tenho que recordá-lo com precisão, preciso fazer uso de toda arte para torná-lo um
pouco mais nítido. O que me causa espanto, em retrospecto, é ter eu aceitado uma tal
situação. Tinha combinado, com minha companheira, ver o que poderia suceder, e estava sob
o efeito de um encanto que aparentemente podia aplainar as extensões e consequências de
um esforço tão grande. Eu estava flutuando sobre uma grande onda de fantasia e piedade.
Achava simples, na minha ignorância e confusão, e talvez na minha presunção, assumir que
poderia lidar com um menino cuja educação para o mundo estava ainda em seu início. Ainda
hoje me sinto incapaz de recordar que plano eu tracei para o fim das suas férias e o reinício de
seus estudos. Estava teoricamente estabelecido que ele teria aulas comigo naquele verão
encantador; mas agora sinto que, por várias semanas, quem tomou lições fui eu. Aprendi sem
dúvida, era a primeira vez uma coisa que não conhecera em minha vida limitada, sufocada;
aprendi a me divertir, a ser divertida, e a não pensar no dia de amanhã. Foi a primeira vez, de
certa maneira, que conheci espaço e ar livre e liberdade, que conheci toda a música do verão e
todo o mistério da natureza. E havia consideração e essa consideração era doce. Oh, era uma
armadilha não deliberada, mas profunda para a minha imaginação, para a minha
sensibilidade, talvez para a minha vaidade; enfim, para o que em mim fosse mais vulnerável. A
melhor maneira de descrever a situação é dizer que eu tinha baixado minha guarda. Davam-
me tão pouco trabalho eram de uma gentileza extraordinária. Eu especulava mas ainda
assim com uma certa vagueza como o áspero futuro (pois todos os futuros são ásperos!) iria
tratá-los e feri-los. Eram a saúde e a felicidade em flor; e, no entanto, era como se eu estivesse
incumbida de cuidar de um par de grandes do reino, dois legítimos príncipes para os quais,
visando o bom andamento, tudo tivesse que ser exclusivo, protetor, e a única forma, em minha
fantasia, que os anos futuros poderiam assumir para eles, era a de um prolongamento
aristocrático daquele jardim e daquele parque. Sem dúvida, deve ser pela irrupção que se
verificou depois, que a lembrança desse período antecipatório me parece cheia de um encanto
tranquilo de um tipo de quietude em que algo se engendra e se prepara. A mudança na
verdade surgiu como a irrupção de uma fera.
Nas primeiras semanas os dias se encompridavam; os melhores em geral me
proporcionavam o que eu chamava de minha hora, e era a hora em que, finalizados os ritos de
chá e cama para os meus alunos, eu tinha, antes de me recolher, um pequeno intervalo para
ficar sozinha. Por muito que eu gostasse da companhia de ambos, essa era a hora do dia de que
eu mais gostava; e gostava mais que tudo quando, enquanto a luz se diluía ou melhor,
quando o dia tardava a morrer e os últimos pios dos últimos pássaros vinham das velhas
árvores, ecoando pelo céu avermelhado podia passear pelos arredores e gozar, com um
senso de propriedade que me divertia e lisonjeava, da dignidade e da beleza do lugar. Nesses
momentos, era um prazer para mim, sentir-me tranquila e justificada; sem dúvida, talvez, para
pensar que, devido à minha discrição, meu plácido bom senso e meu decoro de alto nível, eu
estava dando prazer se é que ele levava isso em conta! à pessoa a cujas exigências me
ajustara. Eu fazia o que ele ardentemente esperara e diretamente me pedira, e que eu pudesse,
afinal, fazê-lo, provara-se uma alegria maior que a esperada por mim. Em resumo, ouso dizer
que me via como uma jovem admirável e me consolava na fé de que isso ficaria evidente algum
dia. Bem, eu precisava ser de fato admirável para encarar as coisas admiráveis que semanifestaram no princípio.
Aconteceu abruptamente, numa tarde, bem no meio de minha hora: as crianças
tinham se recolhido e eu saíra para o meu passeio. Um dos pensamentos que me
acompanhavam nesses momentos, que não vacilo em anotar, era de que seria encantador
como numa história romântica deparar-me com alguém, de repente. Alguém apareceria lá na
curva do caminho, ficaria diante de mim, sorridente e aprovador. Eu não pedia mais que isso
queria apenas que ele soubesse; e o único meio de saber que ele sabia seria ver isso, e o efeito
luminoso e agradável disso, no seu belo rosto. Isso estava bem presente na minha imaginação
digo, o rosto quando, na primeira dessas ocasiões, no fim de um longo dia de Junho, estaquei
ao sair de um dos arbustos e deparar-me com a casa. O que me prendeu no lugar e com um
choque maior que qualquer visão permitiria foi a percepção de que minha fantasia, num
lampejo, tinha se concretizado. Ele estava lá! mas num ponto alto, para além do gramado e
bem no topo da torre para a qual, naquela primeira manhã, Flora me conduzira. Essa torre era
uma das duas estruturas quadradas, incongruentes, ameadas que eram definidas, por
alguma razão, como a velha e a nova, embora eu visse pouca diferença entre elas. Situadas em
flancos opostos da casa, eram provavelmente extravagâncias arquitetônicas, redimidas em
certa medida por não estarem de fato completamente deslocadas nem terem uma altura muito
pretensiosa, datando, em sua antiguidade de mau gosto, de alguma moda romântica que já se
tornara um passado respeitável. Eu as admirava, entregava-me a fantasias com elas, porque
todos podiam se impressionar com as duas em certo grau, especialmente quando, na
obscuridade, suas ameias imponentes se sobressaíam.
Essa figura produziu em mim, no claro crepúsculo, bem me recordo, dois diferentes
ofegos de emoção, que foram, distintamente, o choque de minha primeira e o de minha
segunda surpresa. Minha segunda foi uma percepção violenta do engano da minha primeira: o
homem diante dos meus olhos não era a pessoa que eu precipitadamente supusera ser. A coisa
chegou a mim num aturdimento de visão que mesmo hoje, depois de todos esses anos, não há
visão alguma com que eu a possa comparar. Um homem desconhecido num lugar solitário é
um objeto evidente de medo para uma jovem criada em casa; e a figura que me encarava era
em segundos tive certeza disso como ninguém de cuja imagem me lembrasse. O próprio
lugar, além disso, do modo mais estranho do mundo, tornou-se, num instante, devido à sua
aparição, um grande ermo. Ao menos para mim que me esforço para contar a coisa com uma
determinação que nunca tive, a sensação do momento me retorna inteira. Era como se,
enquanto eu absorvia tudo o que eu podia absorver todo o resto do cenário estivesse
ferido de morte. Ouço novamente, enquanto escrevo, a quietude intensa em que caíram os
sons da noitinha. As gralhas pararam de grasnar no céu dourado e a hora perdeu, no ato, todo
o seu murmúrio ameno. Mas não houve outra mudança na natureza, ao menos que fosse uma
que via com estranha nitidez. O dourado ainda estava no céu, a clareza no ar, e o homem que
olhava para mim de lá das ameias era tão definido quanto um quadro numa moldura. Pensei,
com rapidez extraordinária, em cada pessoa que ele poderia ser e que não era. Confrontamo-
nos na distância que estávamos tempo suficiente para eu me perguntar quem ele poderia ser e
sentir, em consequência de minha incapacidade de encontrar uma resposta, um assombro que,
instante após instante, ia se fazendo mais intenso.O grande problema, ou um deles, é, em relação a certas coisas, saber depois quanto
tempo duraram. Bem, no meu caso, pensem os senhores o que quiserem, duraram enquanto eu
revolvia um punhado de possibilidades, nenhuma das quais fazia muita diferença, de que havia
ali na casa e por quanto tempo, acima de tudo? uma pessoa cuja existência eu ignorava.
Duraram enquanto eu lidava com o pensamento de que meu trabalho exigia que não houvesse
tal ignorância nem tal pessoa. Duraram enquanto esse visitante, em todo caso e havia um
toque de estranho à vontade, como lembro, no sinal familiar de ele não usar chapéu pareceu
fixar-me, lá de seu posto, com o mesmo questionamento, a mesma avaliação sob a luz
crepuscular, que sua própria presença provocava. Estávamos distantes demais um do outro
para nos falarmos, mas haveria um momento no qual, pela proximidade, alguma interpelação,
quebrando o silêncio, seria o resultado inevitável de nossa troca direta de olhares. Ele estava
num ângulo da torre que se distanciava da casa, muito ereto, o que chamava a minha atenção,
com as duas mãos apoiadas no beiral. Via-o como vejo agora as letras que traço nesta página;
então, exatamente, depois de um minuto, como se precisasse exibir-se, ele lentamente mudou
de lugar passou, sem deixar de olhar implacavelmente para mim, para o canto oposto da
plataforma. Sim, tive a percepção mais aguda de que durante essa passagem, nunca tirou seus
olhos de cima de mim, e posso ver neste momento o modo como sua mão, enquanto ele se ia,
passava de uma das ameias à outra. Ele parou na outra extremidade, mas por tempo menor, e
mesmo enquanto se afastava mantinha os olhos fixos em mim. Desapareceu; foi tudo que pude
ver. CAPÍTULO 4
Não que eu não esperasse, naquela ocasião, ver ainda mais, porque me sentia tão
assustada quanto resoluta. Haveria um segredo em Bly um mistério de Udolfo[1] ou um
demente, um parente não mencionado mantido em insuspeitado confinamento? Não sei dizer
por quanto tempo pensei e pensei nisso, ou quanto tempo, numa confusão de curiosidade e
medo, permaneci onde tinha tido aquele choque; lembro apenas que quando entrei na casa a
escuridão já tomara conta. No intervalo, a agitação certamente se apossou de mim de tal
modo que devo ter, em minhas voltas pelo lugar, perambulado o equivalente a umas três
milhas; mais tarde eu ficaria tão mais esmagada pelas circunstâncias que aquele mero aflorar
de um alarma pareceria uma emoção humana comum. A parte mais singular disso de fato
singular como o resto foi a maneira como me portei, no hall, ao encontrar-me com a Senhora
Grose. O quadro me retorna à memória no meio de toda a agitação a impressão, como tive
em minha volta, do amplo espaço revestido de branco, generosamente iluminado e com seus
retratos e o tapete vermelho, e a boa aparência de surpresa de minha amiga, que
imediatamente revelou ter sentido a minha falta.
Percebi de imediato, em contato com ela, na sinceridade inequívoca, no alívio que
meu aparecimento lhe deu, que ela não sabia de nada que pudesse ter relação com o incidente
sobre o qual eu já estava pronta para lhe falar. Não supusera que seu rosto consolador me
reanimaria, e de certo modo avaliei a importância do que vira pelo fato de então vacilar para
relatá-lo. Nada nessa história toda me parece tão esquisito quanto o fato do começo do meu
terror verdadeiro vir acompanhado de um desejo de poupar minha companheira. Assim, no
agradável hall, tendo seus olhos sobre mim, eu, por alguma razão que não podia exprimir,
realizei uma revolução interior alegando um pretexto vago para minha demora e, com a
desculpa da bela noite, do orvalho abundante e dos meus pés molhados, fui para meu quarto o
mais rápido possível.
Lá, as coisas mudaram de figura; lá, por muitos dias, o assunto reassumiu seu aspecto
fora do comum. Dia após dia, deparava-me com horas ou eram apenas momentos, roubados
aos meus deveres comuns em que precisava de isolamento para refletir melhor. No entanto,
não era porque eu estivesse mais nervosa do que supunha, mas porque estava com um medo
acentuado de ficar assim; porque a verdade com que eu tinha que lidar agora era, clara e
simplesmente, a de que eu não podia chegar à conclusão alguma quanto à identidade do
visitante com quem eu estivera de modo tão inexplicável e, como me parecia, tão íntimo, em
contato. Levou pouco tempo para que eu percebesse que podia fazer uma inquirição discreta
e sondar, sem alarde, alguma complicação doméstica. O choque que eu sofrera possivelmente
aguçara todos os meus sentidos; ao cabo de três dias, como resultado de atenção redobrada,
concluí com certeza que os criados não tinham me enganado nem pregado uma peça. Do que
quer que eu tivesse visto, nada se sabia ao meu redor. Só se podia tirar uma dedução lógica:
alguém tomara uma liberdade das mais grosseiras. Era isso que eu me dizia, repetidamente, ao
mergulhar no meu quarto e trancar a porta. Tínhamos sido, coletivamente, devassados por um
intruso; algum viajante inescrupuloso, curioso por velhas moradias, entrara sem ser notado,
gozara o panorama de seu melhor ponto de observação e se evadira de modo tão furtivoquanto entrara. Se havia me lançado um olhar tão ousado e fixo, não era mais que parte de sua
indiscrição. A boa coisa, no fim de tudo, era que nunca mais teríamos notícias dele.
Mas não era coisa tão boa, admito, para me impedir de achar que era meu trabalho
encantador que tornava tudo o mais tão desprovido de significado. Meu trabalho encantador
era minha vida com Miles e Flora, e nada me fazia gostar tanto dele quanto a sensação de que
me ajudaria a enfrentar qualquer problema. O atrativo da minha pequena missão era uma
alegria constante, levando-me a pensar na inutilidade dos temores que tivera no início, do
desgosto que sentira ao imaginar a provável monotonia do que seria meu ofício. Não havia
monotonia e nem labuta; como poderia não ser encantadora uma tarefa que se apresentava
como uma proposta diária de beleza? Era tudo que há de fantasia nos quartos de crianças e
tudo que há de poético em suas salas de estudo. Não quero dizer com isso, claro, que
estudávamos apenas fábula e poesia; quero dizer que não consigo expressar de outra maneira
o tipo de interesse que meus companheiros me inspiravam. Como posso descrevê-lo exceto
dizendo que ao invés de tornar-se um hábito maravilha para uma preceptora: invoco a
confraria para testemunhar! eu era levada a fazer sempre novas descobertas. Havia, sem
dúvida, uma direção, nas quais essas descobertas não iam além: aquela da obscuridade que
pairava sobre a questão da conduta do menino no colégio. Prontamente, foi-me concedido
encarar o mistério sem me angustiar. Talvez fosse mais verdadeiro dizer que sem uma palavra
o próprio menino o esclareceu. Tornou a acusação inteiramente absurda. Minha conclusão
floresceu com o rubor de sua inocência: ele era apenas bom e delicado demais para o pequeno,
horrível e sujo mundo escolar, e pagara um preço por isso. Refleti agudamente que, por parte
da maioria, a percepção de tais diferenças e qualidades superiores e essa maioria pode
incluir mesmo diretores estúpidos e sórdidos resulta em vingança.
Ambas as crianças tinham uma doçura (era sua única deficiência, mas isso nunca
deixou Miles abobado) que os tornava como dizê-lo? quase impessoais e certamente fora
da possibilidade de serem castigados. Eram como os querubins de anedota, que não tinham
moralmente, pelo menos um lugar em que a gente pudesse aplicar umas palmadas. Lembro-
me de sentir na presença de Miles em especial que ele, tal como se apresentava, parecia não
ter tido uma história. De crianças em geral esperamos que tenham-na pouco, mas havia nesse
belo menino alguma coisa extraordinariamente sensível, e, no entanto, extraordinariamente
feliz, coisa que, mais que em qualquer outra criatura de sua idade que eu tenha conhecido, me
atingia como se passasse por um renascimento diário. Não tinha sofrido por um momento
sequer. Tomei esse fato como uma prova direta de que ele não tinha sido castigado. Se tivesse
sido perverso, ele teria pego a coisa, e eu a pegaria pelo reflexo eu teria encontrado algum
sinal. Eu nada encontrava, e, portanto, ele era um anjo. Nunca falava de seu colégio, nunca
mencionava um camarada ou um professor; e eu, de minha parte, estava desgostosa demais
para aludir a eles. Claro que eu estava enfeitiçada, e a parte mais maravilhosa da história é
que, mesmo naquele tempo, eu sabia perfeitamente disso. Mas eu me entregava ao feitiço; era
um antídoto para qualquer sofrimento, e eu tinha vários. Naqueles dias, recebera cartas de
casa, que me diziam que as coisas por lá não iam bem. Mas, com minhas crianças, que mais no
mundo importava? Era a questão que eu me colocava nos fiapos de isolamento que conseguia.
Eu estava ofuscada por sua beleza.Num certo domingo para prosseguir choveu com tal intensidade e por tantas
horas que não pudemos seguir para a igreja; em consequência, como o dia ia se esvaindo,
combinei com a Senhora Grose que, se à noitinha houvesse melhora, iríamos juntas para o
ofício posterior. Felizmente, a chuva parou, e eu me preparei para a caminhada, que, através
do parque e tomando a boa estrada para a aldeia, me tomaria uns vinte minutos. Descendo
para encontrar minha companheira no hall, lembrei-me de um par de luvas que tinha
precisado de remendos e os tinha recebido com uma publicidade talvez pouco edificante
enquanto eu estava com as crianças num chá, servido aos domingos, em caráter excepcional,
na sala de jantar dos adultos, que era um templo frio de mogno e bronze. As luvas tinham
caído lá, e eu voltei para recuperá-las. O dia estava bem cinzento, mas a luz da tarde ainda
resistia, o que me permitiu, ao cruzar a soleira, não apenas reconhecer numa cadeira perto da
ampla janela, as coisas que fora buscar, mas também tomar consciência de uma pessoa que
estava do outro lado da janela olhando para dentro. Bastou pisar no aposento; minha visão foi
instantânea; tudo estava lá. A pessoa que olhava diretamente para dentro era aquela que me
aparecera. Aparecia novamente não vou dizer com uma nitidez maior, porque era impossível,
mas com uma proximidade que representava um avanço em nossa relação e me fazia,
enquanto o olhava, prender minha respiração e gelar. Ele era o mesmo era o mesmo, e visto,
dessa vez, como fora visto na anterior, da cintura para a cima, porque a janela, embora a sala
de jantar se situasse no térreo, não descia até o nível do terraço onde ele estava. Seu rosto
estava encostado ao vidro, e no entanto o efeito dessa visão mais acurada foi, estranhamente,
apenas me provar como tinha sido intensa a que tivera dele na primeira vez. Ficou ali por
poucos segundos que duraram o bastante para me convencer de que também tinha me visto
e reconhecido; mas era como se eu o estivesse olhando há anos e o conhecesse desde sempre.
Contudo, aconteceu dessa vez uma coisa que não acontecera anteriormente; seu olhar em meu
rosto, varando o vidro e atravessando o aposento, foi tão profundo e implacável quanto
naquela vez, mas desviou-se por um momento no qual ainda pude vê-lo fixando-se
sucessivamente em várias outras coisas. Ali mesmo tive o choque adicional da certeza de que
não era só por mim que viera. Viera para ver outra pessoa.
O lampejo dessa consciência porque era consciência no meio do pavor produziu
em mim o efeito mais extraordinário, provocando, enquanto eu ali estava, uma súbita reação
de dever e coragem. Digo coragem porque eu estava, sem dúvida nenhuma, fora de mim.
Rumei diretamente para fora, alcancei a porta da casa, subi, passando pelo terraço o mais
rápido possível, e, dando a volta, observei o lugar todo. Mas foi uma observação de nada
meu visitante tinha desaparecido. Parei, quase desmaiei, com o alívio que isso me dava; mas
queria estar ciente de tudo dava-lhe tempo para reaparecer. Chamo a coisa de tempo, mas
quanto durou? Não posso hoje falar logicamente da duração dessas coisas. Essa espécie de
medida deve ter me abandonado: não podiam ter durado quanto na verdade me pareceram
durar. O terraço e o lugar todo, o gramado e o jardim mais além, tudo que eu podia ver do
parque, estavam vazios, de um vazio completo. Via os arbustos e as grandes árvores, mas me
lembro de sentir com muita clareza que nenhum deles ocultava o homem. Estava ou não estava
ali: não estava, se eu não o via. Agarrei-me a essa ideia; a seguir, instintivamente, ao invés de
retornar do modo como tinha chegado, me aproximei da janela. Surgira-me confusamente aideia de que devia me colocar no mesmo lugar onde ele aparecera. Foi o que fiz; coloquei meu
rosto no vidro e olhei, tal como ele tinha olhado, para dentro do aposento. Nesse exato
momento, como se para me provar a extensão com que ele se aproximara, tal como eu fizera, a
Senhora Grose entrou. Com isso tive uma imagem completa de uma repetição do que já
ocorrera. Ele me viu como eu tinha visto meu visitante; deteve-se assustada, tal como eu me
detivera; transferi a ela um pouco do choque que recebera. Ela empalideceu, e isso fez com
que me perguntasse se eu teria ficado branca daquele mesmo jeito. Em resumo, arregalou os
olhos e foi recuando bem do meu modo, e eu sabia que, dando a mesma volta que eu dera, viria
ter até mim. Fiquei onde estava, pensando em muita coisa. Mas há apenas uma que quero
mencionar. É eu ter perguntado a mim mesma por que ela também ficara assustada.
[1] Referência a uma das obras-primas da literatura inglesa do século XVII, Os Mistérios de Udolfo, de autoria da escritora
britânica Ann Ward Radcliffe (1764-1823), de caráter fantástico e um dos precursores do movimento gótico do século XIX,
tendo influenciado toda uma geração de escritores, entre eles Edgar Allan Poe. (N. T.) CAPÍTULO 5
Oh, fiquei sabendo assim que, tendo contornado a casa, ela apareceu. Em nome de
Deus, o que aconteceu? Ela avermelhara e perdera o fôlego.
Não disse nada até que ela se aproximou bastante de mim. Comigo?. Devo ter feito
uma grande cara. Estou demonstrando?.
A senhorita está branca como uma folha. Está medonha.
Refleti; diante da situação, podia encarar qualquer inocência sem nenhum escrúpulo.
Minha necessidade de respeitar a pureza da Senhora Grose já saíra dos meus ombros, e se
hesitei naquele instante, não foi em razão do que tinha a lhe revelar. Estendi-lhe a minha mão
e ela a tomou; abracei-a com força por um momento, gostando de senti-la bem pertinho.
Havia uma espécie de amparo no tímido arfar de sua surpresa. Na certa a senhora veio me
apanhar para ir à igreja, mas não posso.
Aconteceu alguma coisa?.
Sim. A senhora vai saber. Eu estava muito esquisita?
Lá na janela? Pavorosa!
Bom, disse, Eu fiquei apavorada. Os olhos da Senhora Grose diziam com
simplicidade que isso ela não queria ficar, mas que sabia muito bem sua obrigação de
subalterna para não estar pronta para compartilhar comigo qualquer inconveniência. Oh,
estava bem evidente que ela teria que compartilhar! O que a senhora viu há um minuto atrás
na sala de jantar foi um efeito disso. O que eu vi um pouquinho antes foi muito pior.
Sua mão me apertou. O que foi?
Um homem extraordinário. Olhando para dentro.
Que homem extraordinário era esse?
Não tenho a menor ideia.
A Senhora Grose lançou olhares ao redor inutilmente. Então, aonde ele foi parar?
Sei menos ainda.
A senhorita já o tinha visto?
Sim uma vez. Na velha torre.
Ela só conseguia me olhar com mais força. Quer dizer que é um desconhecido?
Completamente.
Mesmo assim, não me contou?
Não. Tinha motivos para não falar. Mas agora que a senhora está sabendo...
Os olhos da Senhora Grose mediram essa responsabilidade. Ah, não sei não!, ela
disse com simplicidade. O que eu é que eu poderia saber, se nem a senhorita tem uma ideia?.Não tenho ideia, mesmo.
A senhorita só o viu lá na torre?
E aqui mesmo, agora há pouco.
A Senhora Grose olhou ao redor novamente. O que ele estava fazendo na torre?
Ele só estava lá, e ficou me olhando.
Ela pensou um pouco. Era um cavalheiro?
Achei que não tinha que pensar. Não. Ela olhou-me com um espanto maior. Não..
Não era ninguém daqui? Ninguém da aldeia?
Ninguém ninguém. Eu não lhe disse, mas averiguei.
Suspirou, com um alívio vago: isso era, estranhamente, um pouco melhor. Mas, não
adiantava muito. Mas, se não é um cavalheiro...
O que ele é ? Um horror.
Um horror?
Ele Deus me ajude se eu lá sei o que ele é!
A Senhora Grose olhou ao redor mais uma vez; fixou seus olhos na distância
escurecida, e, reanimando-se, voltou-se para mim com uma inconsequência repentina. É hora
de a gente estar na igreja.
Oh, não tenho vontade de ir!
Não vai lhe fazer bem?
Não faria bem a eles. Fiz um sinal com a cabeça na direção da casa.
As crianças?
Não posso deixá-las aqui, agora.
A senhorita tem medo... ?
Disse com audácia. Tenho medo dele.
O rosto amplo da Senhora Grose mostrou-me, diante do pronunciado, pela primeira
vez, o brilho distante de um reconhecimento que começava a se delinear; disso percebi que
nascia nela uma ideia que eu não lhe tinha dado e que era ainda obscura para mim. Recordo
agora que pensei naquilo como se fosse uma coisa que ela poderia me revelar; senti que essa
coisa estava ligada com a vontade que ela demonstrava agora de saber mais. Quando foi que o
encontro aconteceu lá na torre?
No meio deste mês. Nesta mesma hora.
Quase de noite., disse a Senhora Grose.
Oh não, não muito. Vi o homem como vejo a senhora neste momento.
Então, como foi que ele entrou?E como foi que saiu?, eu dei uma risada. Não tive chance de perguntar! Na tarde de
hoje, prossegui, ele não conseguiu entrar.
Ele fica só olhando?
Espero que fique só nisso! Ela agora tinha soltado a minha mão; afastou-se um
pouco. Esperei um instante; depois, exclamei: Vá para a igreja. Adeus. Preciso ficar aqui,
vigiando
Ela encarou-me lentamente. Teme pelas crianças?
Trocamos um longo olhar. E a senhora não? Em vez de responder, ela se aproximou
da janela e, por um minuto, colocou seu rosto contra o vidro. A senhora está vendo como ele
me via, fui dizendo.
Ela não se movia. Quanto tempo ele ficou aqui?
Até que eu saí. Saí para encontrá-lo.
A Senhora Grose por fim se virou, e havia um interesse maior em seu rosto. Eu não ia
conseguir sair e vir para cá.
Nem eu!, ri novamente. Mas, vim. Sei o meu dever.
Eu também sei o meu, ela respondeu; e acrescentou: Como ele é?
Morro de vontade de descrevê-lo. Mas não se parece com ninguém.
Ninguém?, repetiu.
Ele não usa chapéu. Vendo então em seu rosto que, a esta afirmação, ela já ia, com
uma consternação maior, formando o quadro de uma pessoa, eu rapidamente acrescentei
pincelada depois de pincelada. Ele tem cabelo ruivo, bem ruivo e crespo, e um rosto pálido,
alongado, com feições regulares, e suíças curtas, esquisitas, tão ruivas como o cabelo. As
sobrancelhas são um pouquinho mais escuras; parecem particularmente arqueadas, como que
dotadas de boa capacidade de movimento. Seus olhos são penetrantes, estranhos de um
modo medonho; mas só sei com clareza que eles são pequenos e muito fixos. A boca é larga, e
os lábios são finos, e, a não ser pelas suíças curtas, ele é bem barbeado. Me deu a impressão
de parecer-se com um ator.
Um ator! Era impossível relembrar qualquer coisa parecida a um ator na fisionomia
da Senhora Grose nesse momento.
Nunca vi nenhum, mas é mais ou menos assim que os imagino. Ele é alto, elegante,
ereto, eu continuei, mas nunca nunca mesmo! um cavalheiro.
O rosto de minha companheira tinha empalidecido à medida que eu falava; ela dava
piscadelas de nervosismo e sua boca estava aberta. Um cavalheiro?, balbuciou, confusa,
estupefata: um cavalheiro, ele?
Então, você o conhece?
Ela tentava visivelmente controlar-se. Mas, ele é bonito?Vi o meio de ajudá-la. Muito bonito, sim.
E vestido...?
Com roupas dos outros. São apropriadas, mas não são dele.
Ela emitiu, sem fôlego, um gemido afirmativo. São do patrão!
Tirei proveito. Você o conhece?
Vacilou um instante. Quint!, exclamou.
Quint?
Peter Quint seu criado de quarto, quando ele estava aqui.
Quando o patrão estava aqui?
Ainda balbuciando, mas recomposta, ela juntou todas as peças. Nunca usou seu
chapéu, mas usou bom, demos por falta de vários coletes! Os dois estavam aqui no ano
passado. Aí, o patrão foi-se embora, e Quint ficou sozinho.
Seguia suas palavras, mas fraquejava um pouco. Sozinho?
Sozinho com a gente. E acrescentou, como se isso lhe viesse de uma profundeza
ainda mais profunda, Como mordomo.
E que foi feito dele?
Ela demorou tanto a responder que fiquei ainda mais intrigada. Ele também se foi,
disse por fim.
Foi para onde?
Sua expressão, nesse momento, tornou-se extraordinária. Só Deus sabe! Ele morreu.
Morreu?, eu quase gritei.
Ela pareceu decidida a ser bem resoluta, a ficar bem firme para revelar a coisa
espantosa. Sim. O Senhor Quint morreu. CAPÍTULO 6
Foi necessária mais de uma passagem como essa para colocar-nos em face daquilo
com que tínhamos agora que conviver minha terrível suscetibilidade a impressões do tipo de
que tivéramos tão vívido exemplo, e, por conseguinte, o conhecimento metade
consternação metade compaixão que minha companheira tinha dessa suscetibilidade.
Houve, naquela noite, depois da revelação que me deixara prostrada por uma hora, uma
suspensão da ida à igreja para restar apenas um ofício de lágrimas e votos, de rezas e
promessas, culminância de juras e compromissos mútuos que fizemos ao nos recolhermos à
sala de estudos onde nos trancamos para pôr o caso em claro. O resultado de nossa tentativa
de esclarecimento foi simplesmente o de reduzir a nossa situação a seus elementos mais
básicos e precisos. Ela própria nada vira, nem a sombra de uma sombra, e ninguém mais na
casa passava pelos apuros exclusivos da preceptora; no entanto, ela aceitou, sem diretamente
me acusar de falta de sanidade mental, a verdade tal como eu lhe apresentara, e terminou por
me mostrar, nesse terreno, uma ternura apreensiva, uma compreensão do meu mais que
duvidoso privilégio, das quais a simples lembrança permaneceu comigo como a mais doce das
compaixões humanas.
O que ficou combinado entre nós, em virtude disso, naquela noite, foi que teríamos
que enfrentar as coisas juntas; e eu nem estava certa se não caberia a ela, apesar de sua
isenção, a parte mais pesada do encargo. Eu sabia naquele momento, acho, como sabia depois,
o que seria capaz de desafiar a fim de proteger meus alunos; mas demorei mais para ficar
completamente certa de que minha honesta parceira estaria preparada para honrar um
contrato tão difícil. Eu era uma companhia bem estranha tal como a minha companheira;
mas à medida que vou relembrando aquilo por que passamos, vejo quanto em comum
encontramos na única ideia que, por sorte, podia firmar-nos. Era a ideia, o segundo
movimento, que me lançou, por assim dizer, para fora da câmara privada do meu terror. Eu
podia respirar ar livre do lado de fora, pelo menos, e a Senhora Grose estaria lá, me
acompanhando. Recordo agora perfeitamente o modo peculiar pelo qual a minha força me
voltou antes que nos despedíssemos naquela noite. Tínhamos repassado várias vezes cada
detalhe daquilo que eu vira.
Disse que ele estava procurando alguém alguém que não era a senhorita?
Ele estava procurando o pequeno Miles. Uma clareza poderosa tomara conta de
mim. Era ele que o homem estava procurando.
Mas, como a senhorita sabe disso?
Eu sei, eu sei, eu sei!. Minha exaltação crescia. E você sabe, minha cara!
Ela não o negou, mas eu não precisava mais que isso. Prosseguiu, depois de
considerar: O que aconteceria se ele o visse?
O pequeno Miles? É bem o que ele quer!
Ela pareceu de novo muito assustada. O menino?Que Deus não permita! O homem. Quer aparecer para eles.
Que ele pudesse fazê-lo era uma ideia tenebrosa, e, no entanto, eu conseguiria evitá-
lo; foi o que consegui praticamente provar, enquanto estendíamos nossa conversa. Tinha
certeza absoluta de que veria novamente o que já vira, mas algo em mim dizia que me
oferecendo corajosamente como o único objeto dessa experiência, aceitando-a, desafiando-a,
superando-a, valeria como bode expiatório e garantiria a tranquilidade de meus
companheiros. As crianças, em particular, eu daria um jeito de defendê-las e faria de tudo para
poupá-las. Recordo uma das últimas coisas que disse naquela noite para a Senhora Grose.
Me intriga que meus alunos nunca tenham mencionado...
Ela olhou-me fixamente enquanto eu refletia. Que ele esteve aqui e o período que
passaram com ele?
O período que passaram com ele, e o nome, a presença, a história dele, de modo
nenhum.
Oh, a menina não recorda. Nunca soube nada.
Sobre a morte dele?, refleti com certa intensidade. Ela não. Mas Miles pode se
lembrar ele deve saber.
Ah, não pergunte nada a ele!, a Senhora Grose rogou.
Devolvi-lhe o olhar que me lançara. Não precisa ter medo. Continuei a refletir. É
uma coisa meio esquisita.
Que ele nunca tenha falado do homem?
Nunca fez a mínima alusão. E a senhora me garante que eles eram grandes amigos?
Oh, mas não era coisa de Miles!, a Senhora Grose declarou enfaticamente. Era lá da
cabeça do Quint. Brincar com ele, digo mimá-lo. Fez uma pausa; acrescentou: Quint era
muito abusado.
A afirmação me deu, ao lembrar a minha visão do rosto dele ah, que rosto! um
súbito revolto de desgosto. Abusado com meu menino?
Abusado demais com todo mundo!
Não analisei no momento essa descrição, levando em conta o fato de que poderia
aplicar-se aos vários membros da casa, à meia dúzia de criadas e criados que ainda pertenciam
à nossa pequena colônia. Mas, para amenizar a nossa apreensão, havia o fato feliz de que
nenhum boato, nenhum mexerico de cozinha, na memória de todos, brotara desse velho e
plácido casarão. Não tinha nome duvidoso nem má fama, e a Senhora Grose, pelo jeito, queria
apenas agarrar-se a mim e tremer silenciosamente. Como recurso derradeiro, ainda a submeti a
um teste. Foi quando, à meia-noite, ela já estava com a mão à porta da sala de estudos pronta
para sair. Então, posso ficar certa é de grande importância para mim - que o indivíduo era
reconhecidamente mau?
Oh, não era de conhecimento geral. Eu sabia mas o patrão, não.E a senhora nunca lhe contou?
Bem, ele não gostava de mexericos ele odiava reclamações. Era muito seco com
coisas desse tipo, e se as pessoas eram boas para ele...
Não se importaria com o resto?. Isso combinava muito bem com a impressão que eu
tivera dele: não era dado a enfrentar problemas, nem exigia muito talvez das companhias que
ele escolhia. Apesar disso, dei um aperto em minha interlocutora. Pois afirmo que eu teria
contado!
Ela sentiu minha discriminação. Reconheço que estava errada. Mas, é que eu tinha
medo
Medo de quê?
Medo do que aquele homem poderia me fazer. Quint era tão inteligente era tão
penetrante!
Senti o impacto dessa afirmação mais do que provavelmente demonstrei. Não sentia
medo de outras coisas? Da influência dele... ?
Influência dele?, repetiu com uma expressão de angústia e expectativa enquanto
eu hesitava.
Sobre os nossos preciosos inocentes. Eles estavam sob sua responsabilidade.
Não, não sob a minha!, ela respondeu decidida e aflitivamente. O patrão confiava
nele e deixou-o aqui porque ele não andava bem de saúde e supunha que o ar do campo podia
lhe trazer melhora. Assim, ele podia dizer tudo que quisesse. Sim, ela confessou até sobre
eles.
Sobre eles aquela criatura?, tive que reprimir um gemido desesperado. E a
senhora suportava isso?
Não, não suportava e ainda não suporto! E a pobre mulher rompeu em lágrimas.
Um controle rigoroso, a partir do dia seguinte, haveria de ser seguido na vigilância
das crianças; contudo, quantas vezes e com que paixão, ao longo da semana, não voltamos as
duas a abordar o assunto! Por muito que tivéssemos discutido naquela noite de Domingo,
fiquei, principalmente nas horas que se seguiram porque pode-se imaginar que mal dormi
ainda obcecada pela sombra de alguma coisa que ela não tinha me contado. Eu não fizera
reserva sobre nada, mas havia algo que a Senhora Grose me escondera. Ademais, pela manhã,
tive a certeza de que ela o fizera não por falta de franqueza, mas porque havia medos em todos
os lados. De fato, em retrospecto, parece-me que, quando o sol da manhã ia alto, eu já tinha
nervosamente lido nos fatos que se apresentavam a nós todo o significado que eles assumiriam
nos acontecimentos mais cruéis que se seguiram. O que me revelavam era acima de tudo a
exata figura do homem vivo o morto podia esperar um pouco! e os meses que ele tinha
passado em Bly, os quais, somados, formavam um período consideravelmente extenso. A
conclusão dessa época ruim se deu apenas quando, no raiar de uma manhã de inverno, Peter
Quint foi achado, por um trabalhador que saía para a tarefa matinal, rigidamente morto naestrada da aldeia: uma catástrofe explicada ao menos superficialmente por um ferimento
visível que trazia na cabeça; tal ferimento bem podia ter sido causado e, numa avaliação
final, tinha sido pelo fato de, no escuro em que mergulhara depois de deixar uma taverna, ter
pegado o caminho errado, deparando-se com uma ladeira coberta de gelo traiçoeiro, ao pé da
qual seu corpo jazia. A ladeira de gelo escorregadio, o desvio enganoso no escuro e a bebida
contavam muito praticamente, no fim do inquérito e dos mexericos desencontrados,
explicavam tudo; mas havia questões em sua vida passagens e perigos estranhos, desordens
secretas, vícios mais que suspeitos que teriam revelado muita coisa mais.
Mal sei como colocar a minha história em palavras que possam ser uma pintura crível
do meu estado de espírito; mas eu estava naqueles dias literalmente disposta a encontrar
alegria no extraordinário arroubo de heroísmo que a ocasião exigia de mim. Vejo agora que
tinha sido solicitada a fazer um trabalho admirável e difícil; e haveria uma grandeza em deixar
bem à vista oh, pelo ângulo mais apropriado! que eu poderia me sair bem onde outras
moças tinham fracassado. Era uma imensa ajuda para mim confesso que devo aplaudir-me
nessa visão em retrospecto! que eu visse meu trabalho com tanta firmeza e simplicidade. Eu
lá estava para proteger e defender as pequenas criaturas mais desamparadas e graciosas do
mundo e o apelo de seu desamparo tornou-se subitamente muito mais explícito, afetando-me
o coração com um sofrimento profundo e constante. Estávamos juntos naquele isolamento;
estávamos unidos pelo perigo. Eles não tinham ninguém além de mim, e eu bem, eu tinha a
eles. Era, em suma, uma oportunidade magnífica. Essa oportunidade se apresentava a mim
numa imagem ricamente literal. Eu era um biombo devia ficar diante deles. Quanto mais eu
visse, menos eles veriam. Passei a vigiá-los numa ansiedade abafada, numa expectativa
dissimulada que poderia, se continuasse por muito tempo, ter-se tornado algo como a loucura.
O que me salvou, vejo agora, foi que as coisas tomaram outro rumo. Não duraram enquanto
ansiedade foram suplantadas por provas horríveis. Provas, sim digo surgidas no momento em
que pude me dar conta de tudo.
O momento data de uma certa hora da tarde que eu costumava passar nos arredores
com o mais jovem de meus alunos. Deixáramos Miles sozinho na casa, estendido lá numa
almofada no vão de uma ampla janela; manifestara desejo de finalizar a leitura de um livro, e
eu ficara feliz de encorajar esse propósito num rapazinho cujo único defeito era ser, às vezes,
ativo em excesso. Sua irmã, ao contrário, se dispusera prontamente a sair, e eu passeei com ela
por mais ou menos uma hora, procurando a sombra, porque o sol ia alto e o dia estava
anormalmente calorento. Enquanto andávamos, tive de novo a consciência de como, tal o
irmão, ela conseguia e isso era a coisa especial dessas crianças deixar-me sozinha sem
parecer que me abandonava e acompanhar-me sem que isso parecesse assédio. Não eram
nunca importunos, mas tampouco eram ausentes. Minha vigilância a eles limitava-se a
observá-los divertirem-se à larga sem mim: isso era um espetáculo que pareciam preparar
ativamente e que me requeria como admiradora. Eu entrava num mundo de sua invenção
eles não tinham tempo de ficar recorrendo à minha; assim, meu tempo era tomado com ser,
para eles, alguma coisa ou pessoa notável que a brincadeira de um dado momento requeria e
que era, devido à minha posição superior, uma privilegiada, elevada e honrosa sinecura.
Esqueço-me o que representava naquela vez; recordo apenas que eu era alguma coisa muitoimportante e silenciosa e que Flora brincava com muito empenho. Estávamos à beira de um
lago, e, como tínhamos há pouco começado a estudar geografia, o lago passara a ser o Mar de
Azov.
Nessas circunstâncias, de repente, tornei-me consciente de que, da outra margem do
Mar de Azov, tínhamos ambas um espectador interessado. A maneira com que essa percepção
chegou a mim foi a mais estranha do mundo mas não mais estranha que a certeza em que
rapidamente se transformou. Eu tinha me sentado com algum pedaço de trabalho de costura
na mão porque fazia o papel de um ou outro alguém que podia sentar-se num velho banco
de pedra que ficava diante do lago: e nessa posição eu comecei a sentir com segurança,
embora sem contar com uma visão direta, a presença, a uma certa distância, de uma pessoa.
As velhas árvores, o espesso matagal, faziam uma grande e agradável sombra, mas tudo estava
difuso sob a claridade da hora quente e tranquila. Não havia ambiguidade em nada; nenhuma,
pelo menos, na convicção que me vi formando, de um momento para outro, de que eu veria
algo bem diante de mim do outro lado do lago em consequência de erguer meus olhos, se o
fizesse. Nesse momento, eles estavam presos à costura com a qual eu estava ocupada, e posso
sentir novamente agora o espasmo do meu esforço para não tirá-los dali enquanto não me
sentisse firme para tomar uma decisão a respeito. Havia um objeto anormal à vista uma
figura cujo direito de estar em nossa presença eu questionei instantânea e apaixonadamente.
Recordo que considerei as hipóteses, dizendo a mim mesma que nada era mais natural que,
por exemplo, aparecer ali um dos homens do lugar, ou mesmo um mensageiro, um carteiro ou
um entregador de mercadorias da aldeia. Esse pensamento teve pouco efeito sobre a
convicção real que se formara em mim mesmo sem olhar sobre o caráter e a atitude de
nosso visitante. Nada mais natural que a coisa fosse justamente o que as outras de modo algum
o eram.
Da identidade precisa da aparição eu me asseguraria assim que o pequeno relógio de
minha coragem marcasse o instante propício; enquanto isso não acontecia, com um esforço
que era bastante agudo, transferi meus olhos para a pequena Flora, que estava, no momento, a
uns dez passos de mim. Meu coração parou por um momento quando me interroguei com
espanto e terror se ela também não estaria vendo; prendi a respiração esperando dela algum
grito, algum súbito sinal inocente de interesse ou de susto, mas nada veio; então, primeiro e
há nisso algo mais medonho que no resto que tenho que relatar fui tomada pela sensação de
que, naquele minuto, ela tinha parado de fazer qualquer ruído; segundo, pela sensação de
que, naquele mesmo minuto, ela tinha dado as costas para a água, continuando sua
brincadeira. Essa foi sua atitude quando por fim a olhei olhei para ela com a convicção firme
de que estávamos ambas, ainda, debaixo de um olhar pessoalmente interessado. Ela pegou um
pedaço de madeira chata, no qual havia um pequeno orifício que naturalmente sugerira a ela a
ideia de ali enfiar outro pedaço que podia representar um mastro, fazendo do conjunto um
barco. Nesse átimo de segundo, enquanto a olhava, ela estava muito concentrada em tentar
colocá-lo no lugar. Minha percepção do que ela estava fazendo me amparou por alguns
segundos, até que me senti pronta para o que viesse. Então, ergui meus olhos de novo e
encarei o que tinha de encarar. CAPÍTULO 7
Lancei-me sobre a Senhora Grose tão logo que pude, depois disso; e não posso
exprimir de maneira inteligível o quanto sofri nesse intervalo. Ainda ouço meu grito ao atirar-
me em seus braços: Eles sabem é monstruoso demais: eles sabem, eles sabem!.
Mas o quê, pelo amor de Deus...?, senti a sua incredulidade enquanto me abraçava.
Sabem tudo que nós sabemos e sabe Deus que mais! Então, enquanto ela me
soltava de seus braços, relatei-lhe tudo, num relato que talvez apenas nesse momento teve
completa coerência até para mim mesma. Há duas horas atrás, no jardim eu mal podia me
articular Flora viu!
A Senhora Grose recebeu essa afirmação como se tivesse levado um soco no
estômago. Ela contou à senhorita?, perguntou, angustiada.
Nem uma palavra e isso é que é horrível. Ela guardou para ela! Uma criança de
oito anos, e que criança! A estupefação da coisa ainda escapava à minha capacidade de
expressão.
A Senhora Grose, naturalmente, podia apenas ficar cada vez mais boquiaberta.
Então, como é que a senhorita sabe?
Eu estava lá vi com meus olhos: vi que ela sabia perfeitamente.
Sabia da presença dele?»
Não da presença dela. Eu sabia que falava de coisas as mais estranhas, porque
percebia o lento reflexo delas sobre o rosto de minha companheira. Uma outra pessoa desta
vez; mas, uma figura tão horrível e monstruosa quanto a primeira: uma mulher de preto, lívida
e assustadora com um jeito, com uma cara! na outra margem do lago. Eu estava lá com a
menina e estávamos tranquilas; nesse momento, ela veio.
Veio como veio de onde?
Do lugar de onde eles vêm! Ela apenas apareceu e ficou lá mas não muito perto.
E não se aproximou?
Oh, mas causava o efeito e dava a sensação de estar tão perto quanto a senhora
neste instante!
Minha amiga, num estranho impulso, recuou um passo. Era alguém que a senhorita
nunca viu?
Sim. Mas era alguém que a menina conhecia. Alguém que a senhora conhecia. Então
eu disse, para mostrar o quanto havia refletido sobre o assunto: Minha antecessora a moça
que morreu.
A Senhorita Jessel?
A Senhorita Jessel. Não acredita em mim?, insisti.
Em sua aflição, ela se virava de um lado para outro. Como a senhorita pode tercerteza?
A pergunta arrancou de mim, devido ao meu nervosismo, uma explosão de
impaciência. Então pergunte à Flora ela tem certeza! Mas, mal tinha falado isso, recuperei-
me. Não, pelo amor de Deus, não! Ela responderá que não ela mentirá!
A Senhora Grose não estava tão aturdida que não protestasse instintivamente. Ah,
como é que a senhorita sabe?
Porque estou bem certa. Flora não quer que eu saiba.
Deve ser para poupá-la, então.
Não, não há funduras e funduras nisso! Quanto mais avanço, mais vejo, e, quanto
mais vejo, mais temo. Não sei o que não veja o que não tema!
A Senhora Grose procurava seguir meus raciocínios. Quer dizer que teme ver a
mulher novamente?
Oh, não; isso é o mesmo que nada agora! Eu expliquei. O que temo é não poder
vê-la.
Mas minha companheira parecia apenas pálida. Eu não entendo a senhorita.
Bem, temo que a menina a veja e ela certamente pode fazê-lo sem que eu o saiba.
Diante da pintura dessa possibilidade a Senhora Grose quase desmaiou, mas logo se
recompôs, como se tirasse forças de algo que lhe dizia que, se recuássemos uns passos que
fossem, o pior aconteceria. Querida, querida, não vamos perder a cabeça! Afinal, a menina
não se importa...! Ainda tentou fazer uma piadinha lúgubre. Talvez ela até goste!
Gostar de tais coisas aquele pedacinho de gente!
Isso não é bem a prova de sua abençoada inocência?, minha amiga corajosamente
perguntou.
Por um instante, aquilo quase me convenceu. Oh, devemos nos agarrar a isso
decididamente! Se não é prova do que a senhora disse, é prova de Deus sabe o quê! Porque a
mulher é o horror dos horrores.
A Senhora Grose, ouvindo isso, fixou seus olhos no chão por um minuto; depois,
ergueu-os. Diga-me como é que sabe, falou.
Então, admite que era isso que ela era?, perguntei.
Diga-me como é que sabe, minha amiga simplesmente repetiu.
Como é que sei? Pelo que vi! Pelo que ela mostrava.
Quer dizer que ela a encarava tão feio assim?
Não me encarava eu até teria suportado. Não me deu nem um relance de olhar.
Fitava apenas a menina.
A Senhora Grose tentava visualizar a coisa. Fitava?Ah, com uns olhos tão medonhos!
Ela olhou para os meus como se pudessem evocar aqueles aos quais me referia. Quer
dizer, olhos de aversão?
Deus nos proteja. De algo bem pior.
Pior que aversão? isso a deixou perdida.
Com uma determinação indescritível. Com uma intenção furiosa.
Ela empalideceu. Intenção?
De agarrar a menina. A Senhora Grose com seus olhos detidos nos meus teve um
estremecimento e afastou-se em direção à janela; enquanto ficou ali, olhando para fora,
completei meu esclarecimento. É isso que Flora sabe.
Pouco depois, ela virou-se. A pessoa estava de preto, como disse?
De luto meio pobre, quase maltrapilha. Mas sim tinha grande beleza. Eu agora
reconhecia até onde tinha levado, golpe após golpe, a vítima de minha confidência, porque
ela visivelmente pesava cada detalhe. Oh, bonita muito, muito, eu insisti;
maravilhosamente bonita. Mas infame.
Ela voltou-se lentamente para mim. A Senhorita Jessel era infame. Mais uma vez
colocou minha mão entre as suas, apertando-as como se o gesto me pudesse fortalecer contra
o acréscimo de inquietação que suas revelações me provocariam. Os dois eram infames,
disse, por fim.
Por um momento, voltávamos a analisar juntas a questão; e encontrei alívio em poder
encará-la agora tão diretamente. Admiro a sua grande decência em não haver falado até
agora; mas chegou a hora de me contar tudo, disse. Ela pareceu aquiescer, mas manteve-se em
silêncio; vendo isso, continuei: Preciso saber agora. De que ela morreu? Vamos, alguma coisa
havia entre eles.
Não havia alguma coisa. Havia tudo.
Apesar da diferença...?
Sim. Apesar da diferença de classe, de posição ela afirmou, pesarosamente. Ela
era uma dama.
Lembrei do que ocorrera; revi a mulher. Sim ela era uma dama.
E ele tão terrivelmente inferior, disse a Senhora Grose.
Senti que não devia, na sua companhia, pressioná-la demais sobre o lugar de um
criado na hierarquia; mas não via nada que me impedisse de aceitar a avaliação de minha
companheira sobre o rebaixamento de minha antecessora. Havia um meio apropriado de lidar
com o assunto, e eu o adotei; tinha claro à minha frente como uma evidência o falecido
criado do nosso patrão, inteligente, bonito; e também despudorado, seguro de si, mimado,
depravado.
O sujeito era um cão.A Senhora Grose considerou o caso como se fosse talvez uma questão de matizes.
Nunca vi um indivíduo como ele. Fazia o que queria.
Com ela?
Com todos.
Era como se agora a própria Senhorita Jessel tivesse aparecido diante de minha
amiga. Por um instante, julguei perceber, na sua evocação, a mulher que eu vira lá no lago; e
declarei, decididamente: Devia ser também o que ela queria!
No rosto da Senhora Grose lia-se que era bem essa a verdade, mas ela afirmou ao
mesmo tempo: Pobre mulher pagou caro por isso!
Então, a Senhora sabe do que ela morreu?, perguntei.
Não não sei nada. Eu não queria saber; ficava feliz por não saber; agradeci aos
céus por ela ter saído daqui!
Mesmo assim, a Senhora fazia uma ideia...
Da verdadeira razão da partida? Quanto a isso, sim. Não podia ter ficado. Imagine
acontecer uma coisa dessas aqui com uma preceptora! E depois imaginei e ainda imagino
coisas. E o que eu imagino é horroroso.
Mas não tão horroroso como o que eu imagino, repliquei; com esta réplica, devo
ter-lhe demonstrado pois estava muito convicta um ar miserável de derrota. Esse ar
despertou de novo toda a sua compaixão por mim, e, ao toque renovado de sua doçura, meu
esforço por resistir se esboroou; rompi em lágrimas, tal como a fizera, em outra ocasião,
romper; ela me tomou em seu peito maternal, e meus lamentos transbordaram. Não vou
conseguir!, solucei, em desespero; Não vou conseguir salvá-las nem protegê-las! É muito
pior do que tudo que já pensei as crianças estão perdidas! CAPÍTULO 8
O que eu dissera à Senhora Grose era bastante verdadeiro: havia no assunto que eu
lhe expusera profundezas e possibilidades que eu não me sentia capaz de sondar; de tal modo
que quando o abordamos novamente, achamos que era nosso dever comum resistir às fantasias
extravagantes. Na falta de outra coisa, que mantivéssemos pelo menos a cabeça fria por
difícil que fosse fazê-lo diante de algo que, em nossa experiência fora do comum, já era
inquestionável. No adiantado das horas daquela noite, enquanto a casa dormia, tivemos outra
conversa em meu quarto; na ocasião, ela concordou comigo, acima de qualquer dúvida, em
que eu tinha visto exatamente o que tinha visto. Para mantê-la em sintonia, achei que apenas
tinha de lhe perguntar como, se eu tivesse inventado, poderia dar, de cada uma das pessoas
que me aparecera, uma pintura detalhada, relatando suas características precisas um quadro
diante do qual ela imediatamente fizera o reconhecimento e dera nomes. Ela queria,
naturalmente e não se pode censurá-la por isso! ignorar o assunto por completo; e eu fui
rápida em assegurá-la que meu próprio interesse no caso tinha tomado a forma de achar um
modo de me livrar daquilo. Chegamos a um acordo no ponto de que havia a probabilidade de
que, com o hábito porque tínhamos como o certo que se tornaria um hábito eu poderia
ficar acostumada, insensível ao meu perigo; e declarei que minha exposição pessoal a esse
tinha se tornado a menor de minhas preocupações. O intolerável, realmente, era a minha nova
suspeita; e mesmo a essa complicação as últimas horas do dia tinham trazido algum alívio.
Deixando-a, depois do meu primeiro desabafo, eu naturalmente retornara aos meus
alunos, achando o remédio certo para meu desalento naquele encantamento que vinha deles
que eu já considerava ser a coisa que eu podia serenamente cultivar e que ainda não me tinha
falhado nenhuma vez. Em outras palavras, eu simplesmente remergulhava no convívio todo
especial com Flora e com isso ficava consciente o que era quase um luxo! de que ela podia
colocar sua mãozinha cuidadosa sobre o lugar onde eu me achava ferida. Olhara-me numa
doce tentativa de adivinhar o que acontecia e me acusara de ter chorado. Supunha ter
varrido do meu rosto esses feios sinais; mas, naquele momento, chegava a ficar feliz, diante
dessa insondável caridade, por eles não terem desaparecido. Olhar para as profundezas do
azul daqueles olhos e concluir que um tal encanto não passava de um truque de astúcia
precoce faria com que eu me sentisse cínica e eu preferia renunciar a um julgamento desse
tipo, escapando também à agitação que ele me traria. Não podia renunciar apenas por
querer, mas podia repetir à Senhora Grose como o fizera várias vezes, nas horas mortas da
noite passada que, com suas vozes pelo ar, seus corpos juntos a meu peito e seus rostos
perfumados colados ao meu, tudo ruía, exceto o seu comovente desamparo e sua beleza. Era
uma pena que, de um modo ou outro, para resolver o assunto, eu tivesse também que
reenumerar os sinais de esperteza que na malfadada tarde, perto do lago, fizeram-me dar um
espetáculo miraculoso de autocontrole. Era uma pena ser obrigada a reinvestigar a certeza
daquele próprio momento e repetir a mim mesma a revelação de que aquela comunicação
inconcebível que eu surpreendera não passava, para ambas as partes, de um hábito
corriqueiro. Era uma lástima que eu tivesse que repensar as razões que não me permitiram
duvidar que a menina tinha visto nossa visitante de modo tão trivial como eu via a SenhoraGrose, e que tinha querido, embora a visse como eu, fazer-me supor que não a via, e ao mesmo
tempo, sem nada demonstrar, adivinhar até que ponto eu notava a sua presença! Lamentável
que eu precisasse mais uma vez descrever a fabulosa diligência nas pequenas coisas com que
ela procurava desviar a minha atenção o aumento perceptível de atividade, a maior
intensidade das brincadeiras, da cantoria, da tagarelice, das birutices e do convite para que eu
aderisse às suas travessuras.
Contudo, se eu não me tivesse permitido reexaminar os fatos para provar que nada
havia, teria perdido os dois ou três elementos vagos de consolo que ainda me restavam. Eu não
teria, por exemplo, sido capaz de asseverar à minha amiga de que estava certa para o bem
geral de não ter, eu ao menos, me enganado. Não teria sido levada, pela pressão ou pela
necessidade, pelo desespero mental nem sei como denominar o que sentia a exigir de
minha companheira um auxílio de inteligência que a punha contra a parede. Ela me contara,
em minúcias, pressionada como o fora, um monte de coisas; mas uma ligeira ponta de dúvida
no outro lado de tudo quanto dissera, de vez em quando roçava a minha fronte feito uma asa
de morcego; e recordo como nessa ocasião pois a casa estava adormecida e a mistura de
nosso perigo com nossa vigilância vinha em nosso auxílio senti a importância de dar um
último puxão na cortina. Não acredito numa coisa tão horrível, lembro-me ter dito; não,
de jeito nenhum, vamos deixar claro, minha querida. Mas, se acreditasse, exigiria, sem mais
poupá-la, saber tudo da senhora. Que era que tinha em mente quando, na sua aflição, quando
Miles estava para voltar do colégio, depois daquela carta, sob a minha insistência, a senhora
disse que não pretendia afirmar que ele literalmente nunca fora mau? Nessas semanas em que
tem convivido comigo e em que eu o tenho observado tão cuidadosamente, ele literalmente
nunca foi mau; tem sido, pelo contrário um imperturbável primor de doçura, de adorável
bondade. Portanto, a senhora poderia ter feito todos esses elogios a ele se não tivesse notado,
como pode ter ocorrido, uma exceção em seu comportamento. Que coisa foi essa, e a que
passagem em sua observação pessoal do menino a senhora estava se referindo?
Era uma inquirição terrivelmente rigorosa, mas a leviandade não cabia na nossa
situação, e, de qualquer modo, antes que a aurora fizesse com que nos despedíssemos, tive a
resposta. O que minha amiga tinha em mente veio imensamente a propósito. Era nem mais nem
menos que o fato de que por um período de vários meses Quint e o menino tinham sido
inseparáveis. Era também o fato muito natural de ela ter se arriscado a criticar essa
inconveniência, de dar a entender que uma ligação como essa não estava certa, e mesmo de
avançar no assunto, a ponto de abrir-se francamente com a Senhorita Jessel. A predecessora
tinha, da maneira mais estranha, respondido que ela fosse cuidar de sua vida, e a boa mulher,
por isso, dirigira-se ao próprio Miles. Do que lhe pude tirar, dissera ao menino que gostaria
que os rapazinhos de nível mais elevado não esquecessem sua posição.
Diante dessa revelação, pressionei-a mais um pouco. A senhora fez com que ele visse
que Quint não passava de um reles empregado?
Foi bem isso! E foi a sua resposta que, por uma coisa, não me agradou.
Por que coisa?, eu cutucava. Ele foi contar o que a senhora disse para o Quint?Não, não por aí. Isso era bem o que ele não faria!, ela respondeu, causando-me
impressão. Bom, de qualquer modo, eu estava certa, acrescentou, que ele não faria. Mas ele
negou certas ocasiões.
Quais?
Quando estiveram juntos de tal modo que o Quint até parecia seu professor
particular com ares de grande importância e a Senhorita Jessel, por sua vez, ficava com a
menina. E negou outras quando saía com esse sujeito e passava horas com ele.
Ele, então, deu evasivas disse que não tinha nada com o homem? Seu
assentimento foi tão claro que acrescentei prontamente: Compreendo. Ele mentiu.
Oh!, murmurou a Senhora Grose. Sugeria com isso que a coisa não tinha
importância; reforçou essa displicência com outra observação. Veja bem; afinal de contas, a
senhorita Jessel não ligava. Ela não proibia o menino.
Refleti. Então, foi isso que ele colocou para a senhora como justificação?
Aí, ela se deteve novamente. Não, nunca me falou disso.
Nunca falou da ligação da Senhorita Jessel com Quint?
Ela percebeu, visivelmente ruborizada, aonde eu queria chegar. Bem, ele nunca
demonstrou saber nada. Ele negava, ela repetia, ele negava.
Deus, como eu a apertava agora! Então, a senhora percebeu que ele sabia o que se
passava entre os dois canalhas?
Não sei não sei!, a pobre mulher gemia.
A senhora sabe sim, minha cara, repliquei; é que apenas não tem minha terrível
audácia de imaginação, e por timidez, modéstia e delicadeza, guarda para si até a impressão
de que, no passado, tinha que debater-se silenciosamente, sem minha ajuda, diante de tudo
que acontecia e que a deixava desesperada. Mas vou lhe arrancar tudo! Havia algo no menino
que sugeria à senhora, continuei, que ele protegia e escondia a ligação dos dois?
Oh, ele não podia impedir...
Que a senhora percebesse a verdade? Bem posso imaginar! Mas, céus!, segui com
veemência, pensando em voz alta, isso mostra o que eles tinham conseguido fazer do menino,
até aí!
Ah, nada que não seja bom agora! , defendeu-o ela, lugubremente.
Não me espanta agora que a senhora estivesse meio estranha, persisti, quando eu
lhe falei da carta que veio do colégio!
Duvido que estivesse mais estranha que a senhorita, ela replicou com sua energia
rude. E se o pequeno era tão mau como parecia, por que é que é um anjo tão completo
agora?
Sim, é isso mesmo e se ele foi um capeta no colégio! Como, como, como? Bem,
disse em meu tormento, a senhora deve me perguntar isso de novo, mas só vou poder lheresponder daqui a alguns dias. Mas, não deixe de perguntar!, bradei, de um modo que fez
minha amiga arregalar os olhos. Há certas direções nas quais não vou querer me aventurar, no
momento. Enquanto isso, retornei ao seu primeiro exemplo àquele a que ela se referira
anteriormente da feliz disposição do menino para algum deslize ocasional. Se Quint na
advertência que a senhora lhe passou daquela vez não passava de um reles empregado, uma
das coisas que Miles deve ter dito, imagino, foi que a senhora também era uma criada. De
novo seu assentimento foi tão imediato que eu continuei: E a senhora o perdoou por isso?
A senhorita não o perdoaria?
Oh, claro que sim! E trocamos ali, naquele silêncio, um riso de estranha hilaridade.
Então, prossegui: Em todo caso, enquanto ele ficava com o homem...
Flora ficava com a mulher. Era conveniente para todos!
Também me convinha perfeitamente, pensei; queria dizer que isso se ajustava à
particular suspeita mortífera que eu vinha me proibindo de alimentar. Mas me saí tão bem em
controlar a manifestação dessa suspeita que não adiantarei outra coisa que não possa ser
deduzida da observação final que fiz à Senhora Grose. O menino ter mentido e sido insolente
me parece menos comprometedor do que eu esperava que a senhora revelasse, a respeito do
homem natural que vai brotando nele. Ainda assim, refleti, tenho que levar isso em conta,
porque me adverte que é necessário vigiar.
No momento seguinte, fiquei ruborizada ao perceber no rosto de minha amiga como
ela perdoava o menino de maneira mais extrovertida, tendo em vista que a brincadeira
despertara a minha ternura e me ensejara também fazê-lo. Isso ocorreu à porta da sala de
estudos, quando ela já me deixava. Com certeza, a senhorita não me vai acusar o menino...
De esconder uma relação de mim? Ah, lembre bem, até prova em contrário, não vou
acusar ninguém. Então, antes de fechar a porta para que ela se dirigisse, por outra passagem,
para seu próprio quarto, finalizei: O que devo fazer é esperar. CAPÍTULO 9
Esperei e esperei, e os dias, na sua passagem, levaram embora um pouco do meu
sofrimento. Na companhia constante dos meus alunos, sem nenhum novo incidente, na
verdade, uns poucos dias eram suficientes para passar nos devaneios angustiantes, e mesmo
nas lembranças odientas, uma espécie de esponja. Mencionei que minha entrega à sua
extraordinária graça infantil era algo que eu cultivava ativamente, e imaginem se eu iria me
abster agora de sorver dessa fonte tudo que ela me oferecia. Mais estranho do que possa dizer,
naturalmente, era o esforço que eu fazia para apagar as últimas coisas que soubera; contudo,
teria sido uma tensão maior se eu não fosse, com frequência, tão bem sucedida. Espantava-me
como as crianças podiam não adivinhar que eu pensava delas coisas tão estranhas; e a
circunstância de que essas coisas apenas tornavam-nas mais interessantes não era por si
mesma uma ajuda direta para mantê-las na ignorância. Tremia toda ao pensar que elas
poderiam perceber que a coisa os tornava imensamente mais interessantes. Vendo pelo lado
pior, como eu fazia tão constantemente em minhas reflexões, qualquer mancha em sua pureza
podia ser apenas inculpáveis e predestinados como eram uma razão a mais para correr
riscos. Havia momentos nos quais, por um impulso irresistível, eu me surpreendia arrebatando-
os e estreitando-os a meu peito. Assim que acabava de fazê-lo, perguntava-me: Que pensarão
disso? Não estarei me traindo? Teria sido fácil cair num triste, espinhento emaranhado se me
dispusesse a pensar em quanto eu podia efetivamente me trair; mas, sentia que a verdadeira
razão das horas de tranquilidade de que eu podia ainda desfrutar era que o encanto imediato
de meus pequenos companheiros era constituído por um feitiço muito eficaz, ainda que
obscurecido pela possibilidade de que fosse bem calculista. Ocorria-me que, por vezes,
poderia despertar sua suspeita pelas pequenas erupções de uma paixão por eles que só fizera
crescer, e por isso lembro-me que pensava também se não haveria uma certa estranheza no
perceptível aumento de suas próprias efusões.
Nessa ocasião, mostravam gostar de mim de um modo extravagante e muito além do
natural; o que, afinal de contas, eu podia pensar, talvez não passasse de uma reação graciosa
de crianças acostumadas a uma bajulação e um carinho constantes. Esse afeto, em que eram
tão pródigos, tinha tão bom efeito sobre meus nervos que nunca me ocorria, posso garantir,
procurar nele uma segunda intenção. Nunca quiseram, como naquele tempo, fazer tantas
coisas por sua pobre protetora; quero dizer embora se saíssem cada vez melhor em seu
aprendizado o que naturalmente seria o mais capaz de satisfazê-la no sentido de diverti-la,
entretê-la, surpreendê-la; lendo-lhe composições, contando-lhe histórias, oferecendo-lhe
charadas, lançando-se sobre ela, disfarçados de animais ou personagens históricos, e, acima de
tudo, deixando-a atônita com os pedaços que tinham secretamente decorado e que eram
capazes de recitar interminavelmente. Não atingiria jamais o fundo ainda que me deixasse
levar pelas lembranças agora dos elaborados comentários, todos sob estrita correção, com
os quais, naqueles dias, eu acompanhava todas as suas horas. Desde o início, tinham mostrado
facilidade para praticamente tudo, uma aptidão genérica que, a cada novo impulso, realizava
façanhas memoráveis. Cumpriam suas pequenas tarefas como se as adorassem, e, na
exuberância de seus dons, realizavam prodígios espontâneos de memória. Irrompiam diantede mim não apenas como tigres e como guerreiros romanos, mas como personagens de
Shakespeare, astrônomos e navegadores. Era tão singular seu caso que seguramente influiu
numa coisa que, até hoje, me deixa um pouco confusa: a tranquilidade nada natural com que
encarei a possibilidade de uma outra escola para Miles. O que recordo é que, naquele
momento, contentava-me em não abrir a espinhosa questão, e o contentamento certamente
provinha da impressão que me causava sua perpétua e fabulosa exibição de inteligência. Ele
era inteligente demais para ser estragado por uma preceptora medíocre, filha de um pároco; e
o mais estranho, se não o mais brilhante, dos fios desse bordado mental a que me referi, era a
impressão que eu poderia ter tido, se tivesse ousado dar-me ao trabalho de analisá-la, de que
ele estava sob alguma influência que agia sobre sua pequena vida intelectual como um
estímulo violento.
Contudo, se era fácil raciocinar que um menino tão bem-dotado podia ter sua volta à
escola adiada, era identicamente fácil pensar que um tal menino ser chutado fora dos
portões escolares por algum diretor constituía uma mistificação sem fim. Permitam-me
acrescentar que na companhia das crianças e eu cuidava com não me afastar demasiado da
realidade nunca pude ir muito longe em farejar alguma coisa. Vivíamos numa nuvem
particular de música e amor e triunfo e representações. O senso musical das duas crianças era
dos mais vivos, mas o menino, em especial, tinha um dom maravilhoso para captar e reproduzir
o que ouvia. O piano da sala de estudos explodia em melodias as mais estrambóticas; e quando
elas cessavam, confabulavam lá pelos cantos, e a seguir um deles se retirava animadíssimo para
retornar como um personagem novo, imprevisível. Eu própria tinha irmãos, e não era
novidade para mim que as meninas podiam ser escravas idólatras dos meninos. O que
ultrapassava meu entendimento era haver no mundo um menino que pudesse mostrar tão
grande consideração por uma idade, um sexo e uma inteligência inferiores. Eram
extraordinariamente unidos, e dizer que nunca brigavam nem falavam mal um do outro é dar
uma ideia grosseira do tipo de doçura que tinham. Por vezes, na verdade, eu própria pecava
pela grosseria, imaginando perceber neles sinais de pequenos acordos pelos quais, enquanto
um me mantivesse ocupado, o outro poderia escapulir. Há um lado ingênuo, suponho, em toda
diplomacia; mas se meus alunos me aprontavam alguma, era certamente sem a menor
vulgaridade. Foi bem em outro flanco que, depois de uma trégua, a baixeza apareceu.
Aqui, sinto que vacilo; mas, devo mergulhar. Seguir relatando o que havia de
hediondo em Bly não é apenas desafiar a boa-fé o que pouco me importa mas e aí é
outro assunto voltar a sofrer aquilo que sofri, percorrendo o mesmo caminho árduo até o
fim. Sobreveio uma hora na qual, relembro, o caso pareceu revestir-se de total sofrimento para
mim; mas pelo menos eu tinha atingido seu âmago e a solução mais acertada seria ir em frente.
Uma noite sem que nada me conduzisse ou preparasse para isso senti o friozinho da
impressão que me arrepiara na noite em que chegara; na primeira ocasião, ele fora mais leve,
como disse, e não teria me deixado lembrança alguma se minha estada posterior tivesse sido
menos agitada. Eu não tinha me recolhido; lia ainda sob a luz de dois candelabros. Havia um
quarto cheio de livros velhos em Bly romances do século passado, entre eles alguns que
tinham uma reputação duvidosa, mas não a ponto de virarem relíquia e não chegarem àquele
casarão retirado; não tinham perdido seu apelo para minha curiosidade de jovemdescomprometida. Lembro-me que o livro que estava em minhas mãos era o Amélia, de
Fielding; lembro-me também que estava completamente desperta. Recordo que estava
tomada, simultaneamente, pela convicção de que era já terrivelmente tarde e por uma
objeção particular à ideia de consultar meu relógio. Revejo, finalmente, a cortina branca que
envolvia, o que era moda naqueles dias, a cabeceira da pequena cama de Flora, e que havia
muito me assegurara de que ela repousava perfeitamente bem. Recordo, em resumo, que
embora estivesse muito interessada por Fielding, achei-me, ao virar uma página e deixar o seu
encanto dissipar-se, erguendo a cabeça e olhando fixamente para a porta do meu quarto.
Houve um momento durante o qual escutei bem e notei, lembrando a vaga sensação, que
tivera naquela primeira noite, de que havia alguma coisa indefinida movimentando-se na casa,
uma brisa que passava levemente pela janela agitar a cortina entreaberta. E então, dando
todas as mostras de uma coragem que teria parecido magnífica se houvesse ali alguém para
admirá-la, pus o livro de lado, levantei-me e, pegando um castiçal, saí resoluta do quarto e
ainda dali, do corredor, onde minha luz fazia pouca diferença, tranquei a porta ruidosamente.
Não sei dizer agora nem o que me levou a fazê-lo nem o que me guiava, mas fui
avante corredor afora, com o castiçal acima da cabeça, até me deparar com uma janela alta
que dominava a grande curva da escada. Nesse ponto, tomei rapidamente consciência de três
coisas. Eram praticamente simultâneas, embora me viessem em lampejos sucessivos. Minha
vela, devido a um movimento brusco, apagou-se, e eu percebi, pela janela desprovida de
cortina, que a escassa luz fornecida pela manhã que já surgia a tornava desnecessária. Sem ela,
eu vi, a seguir, que havia alguém na escada. Falo de sequências, mas não foi preciso mais que
um lapso de segundo para que eu, enrijecida, ficasse preparada para um terceiro encontro com
Quint. A aparição, na subida, tinha chegado ao patamar no meio da escada e estava, portanto,
no ponto mais próximo à janela, onde, quando me viu, deteve-se e me cravou os olhos
exatamente como o fizera da torre e do jardim. Conhecia-me tão bem quanto eu o conhecia; e
assim, na fria e tênue luz da manhã, entre o brilho do vidro da janela no alto e o das escadas de
carvalho bem enceradas embaixo, ficamos cara a cara, em intensidade mútua. Ele era, naquele
momento, uma presença vívida, detestável e perigosa de forma absoluta. Mas, isso não era de
modo algum o que de mais espantoso acontecia; reservo essa qualificação para uma
circunstância bem diferente: eu tinha perdido inequivocamente o meu terror e não havia nada
em mim que não o encarasse e medisse bem.
Tive angústia de sobra depois daquele momento extraordinário, mas, graças a Deus,
perdera o terror. E ele notou que eu não o tinha mais decorrido um instante, tive consciência
magnífica desse fato. Senti, num feroz assomo de confiança, que, se permanecesse em meu
lugar por mais um minuto, eu poderia pelo menos, por instantes confrontá-lo; e durante
esse minuto, de fato, a coisa foi tão humana e hedionda como uma entrevista real: hedionda
justamente por ser humana, tão humana quanto seria eu haver topado, em horas mortas, numa
casa adormecida, com algum inimigo, aventureiro ou criminoso. Era o silêncio de morte de
nossa troca de olhares à tão curta distância que dava ao horror todo, incomum como era, sua
única nota de sobrenatural. Se eu tivesse topado com um criminoso em tal lugar e em tal hora,
teríamos pelo menos nos falado. Alguma coisa teria se passado, na vida, entre nós; se não
tivesse se passado, um de nós ao menos teria se movido. Mas o momento, aquele, foi tãoprolongado que, tivesse durado um pouquinho mais, duvidaria até que eu estivesse viva. Não
posso exprimir o que veio a seguir senão dizendo que o silêncio em si o que, na verdade, de
certo modo atestava a minha força tornou-se o elemento no qual vi a figura ir
desaparecendo; em silêncio, como se assim eu pudesse contemplar o vil miserável a que
pertencera, a figura voltou-se para mim como se esperasse reverentemente uma ordem e
passou, com meus olhos presos às costas aversivas que nenhuma corcova teria desfigurado
mais, descendo a escada, e afundando-se na escuridão na qual a curva seguinte mergulhava. CAPÍTULO 10
Permaneci mais um pouco no topo da escada, mas apenas para certificar-me de que,
ao retirar-se, meu visitante realmente se fora; depois disso, retornei ao meu quarto. A primeira
coisa que lá vi à luz da vela que deixara acesa foi que a caminha de Flora estava vazia; diante
disso, prendi meu fôlego com todo o terror a que, cinco minutos atrás, eu fora capaz de
resistir. Atirei-me sobre o leito onde a deixara, vendo ali (pois a pequena colcha de seda e os
lençóis estavam desarrumados) que as brancas cortinas tinham sido por engano corridas; nesse
momento, o meu passo, dando-me um alívio inexprimível, produziu um ruído em resposta;
percebi um movimento nas cortinas da janela, e a menina, passando por baixo dela, apareceu
prontamente do outro lado. Ali estava, com muita candura e pouca camisola, com os róseos
pés descalços e o brilho dourado de seus cabelos encaracolados. Parecia intensamente séria, e
nunca tive uma tamanha sensação de perder uma vantagem adquirida (cujo efeito emocional
tinha sido tão fantástico) como naquele momento, quando percebi que ela se dirigia a mim
com reprovação. Sua malvada: onde é que a senhorita estava? e ao invés de questionar a
falta que ela cometera, peguei-me eu mesma em falta e tive que me explicar. Quanto a ela,
explicou-se sobre o caso com a mais adorável e ardente simplicidade. Percebera
repentinamente, enquanto repousava, que eu estava fora do quarto, e saltara fora da cama
para ver o que me acontecera. Com a alegria de seu reaparecimento, eu me deixara cair numa
cadeira sentindo aí, só aí, um certo desfalecimento; ela correu até mim, atirou-se em meus
joelhos, entregando-se para que eu a abraçasse com a chama da vela iluminando toda o seu
rostinho maravilhoso que ainda estava congestionado de sono. Lembro-me de ter fechado
meus olhos por um instante, rendendo-me, conscientemente, diante de alguma coisa
excessivamente bela que emanava do azul dos seus. Procurava por mim olhando para fora?,
eu disse. Pensou que eu podia estar andando lá pelo jardim?
Bem, sabe, eu pensei que havia alguém lá respondeu, sorrindo, sem empalidecer.
Oh, como eu a olhava agora! E chegou a ver alguém?
Ah, não!, replicou, com todo o privilégio de sua inconsequência infantil, quase
ofendida, embora pusesse uma prolongada doçura na ligeira indecisão da negativa.
Naquele momento, pelo estado dos meus nervos, tive certeza absoluta de que estava
mentindo; e se fechei meus olhos novamente, foi porque ficavam ofuscados diante das três ou
quatro possíveis maneiras pelas quais eu podia considerar a sua resposta. Uma delas, por um
momento, tentou-me com intensidade tão singular que, para resistir a ela, devo ter apertado a
menininha com um espasmo a que, maravilhosamente, ela se sujeitou, sem gemido ou sinal de
susto. Por quê não aproveitar aquele momento e dizer tudo de uma vez por todas? colocar
tudo diante daquele seu rostinho luminoso? Você vê, você vê, você sabe que sim e já está
quase certa de que eu sei; portanto, por quê não confessá-lo para mim, para que possamos
enfrentar a situação juntas e talvez aprender, na estranheza de nosso destino, onde estamos e o
que ela significa? Mas a súplica, ai de mim, desvaneceu-se: se eu tivesse sucumbido a ela, teria
poupado a mim mesma bem, vocês verão de quê. Em vez de sucumbir, de novo me pus em
pé, olhei para a cama da menina e adotei um meio termo inútil. Por quê você pôs a cortinasobre o leito, para me fazer pensar que estava ainda ali?
Ela refletiu por um minuto, luminosamente; depois, disse com seu sorrisinho divino:
Porque eu não gosto de assustar a senhorita!
Mas se eu tinha, pela sua lógica, saído ...?
Ela não estava de modo algum disposta a ficar intrigada; virou seus olhos para a
chama da vela como se a questão fosse insignificante, ou pelo menos tão indiferente quanto
uma pergunta sobre a Senhora Marcet ou de nove vezes nove. Oh, mas a senhorita sabia,
respondeu jeitosa, que ia voltar, querida, e foi o que fez! E, dentro em pouco, quando ela
voltou para cama, lá fiquei eu, por longo tempo, tendo que provar, sentada à sua cabeceira e
segurando sua mão, como minha volta tinha sido oportuna.
Podem imaginar a complicação geral de minhas noites, a partir daí. Eu ficava em
guarda repetidamente, até não sei que horas; escolhia momentos em que minha colega de
quarto estava inequivocamente dormindo, e, sorrateiramente, fazia rondas silenciosas na
passagem e mesmo em lugares mais além daqueles em que encontrara Quint pela última vez.
Mas nunca o reencontrei; e posso dizer agora que nunca mais o vi na casa. Por outro lado,
estive quase para perder, na escada, uma aventura diferente. Olhando do topo dela para a
descida, reconheci uma vez a presença de uma mulher que estava sentada num dos degraus
mais baixos com as costas voltadas para mim, a metade de seu corpo curvada e a cabeça, numa
atitude de desolação, enfiada em suas mãos. Embora eu tenha ficado ali por um instante, ela
desapareceu sem me notar. A despeito disso, eu sabia que rosto medonho ela me mostraria, se
o fizesse; e me perguntei se, ao invés de estar no topo, eu estivesse lá embaixo, teria tido a
coragem que demonstrara frente a Quint no último encontro. Bem, continuava a sobrar
oportunidade para mostrar coragem. Na décima primeira noite depois daquele encontro com
o referido cavalheiro porque eu as enumerava agora tive um sobressalto que a pôs à prova
e que se revelou de fato, devido à qualidade particular de seu caráter de inesperado, meu
choque mais violento. Foi precisamente na primeira noite desse período em que, cansada de
vigiar, sentira que, sem negligência, podia recolher-me na minha hora habitual. Caí no sono
imediatamente e, como pude verificar mais tarde, dormi até uma da madrugada; mas, quando
acordei, foi em estado de alerta, como se uma mão me houvesse sacudido. Tinha deixado uma
vela acesa, mas agora ela estava apagada, e por um instante tinha tido a certeza de que fora
Flora quem a apagara. Levantei-me rapidamente no escuro e fui direto para a sua cama, que
descobri vazia. Um olhar para a janela me esclareceu, e um fósforo que acendi completou o
quadro.
A menina tinha se levantado novamente dessa vez, apagando a vela, e tinha
novamente, com a finalidade de observar ou responder a algo, se espremido atrás da cortina,
de onde perscrutava a noite lá fora. Que ela via como da primeira vez estava convencida de
que não o conseguira ficou provado para mim pelo fato de que não ficou perturbada nem
por eu ter voltado a acender a luz nem pelos ruídos que eu fazia para colocar os chinelos e
embrulhar-me num roupão. Oculta, protegida, absorta, ela nitidamente se apoiava no
parapeito as persianas abertas para fora e mostrava-se por inteiro. Havia uma grande lua
tranquila para ajudá-la em seu intento, e esse fato influiu na rápida decisão que tomei. Elaestava cara a cara com a aparição que víramos no lago, e podia agora comunicar-se com ela de
um modo como, na ocasião, não pudera fazê-lo. Pelo meu lado, o que tinha de ser feito era,
sem interrompê-la, sair e alcançar, passando pelo corredor, uma outra janela no mesmo flanco.
Cheguei à porta sem que ela me ouvisse; passei por ela, fechei-a e escutei, já do outro lado,
algum débil som emitido por ela. Enquanto permanecia na passagem pusera meus olhos na
porta do quarto de seu irmão, que não estava a mais que dez passos, o que,
indescritivelmente, produziu em mim a renovação do estranho impulso que eu mencionei que
antes me tentara. Que tal se eu entrasse ali e marchasse direto para a janela dele? que tal se,
arriscando exibir ante seu assombro infantil a revelação de meus motivos, eu lançasse sobre o
resto desse mistério o longo laço de minha coragem?
Esse pensamento sustentou-me o bastante para cruzar a soleira e fazer uma nova
pausa. Eu ouvia tudo com uma nitidez sobrenatural; imaginava as coisas mais fantásticas a
partir do que ouvia; me indagava se a cama do menino também não estaria vazia e se ele
também não estaria fazendo uma espreita secreta. Foi um momento profundo e silencioso, ao
fim do qual meu impulso cedeu. Ele estava muito quieto; podia ser inocente; o risco era
hediondo; portanto, tive que me afastar. Havia uma presença nos jardins um vulto furtivo
ansioso por encontrar a sua presa, uma visita com quem Flora tinha encontro marcado; não
era, certamente, a visita que ofereceria um interesse lógico ao meu menino. Hesitei de novo,
mas por outros motivos e apenas momentaneamente; então, fiz a minha escolha. Havia quartos
vazios em Bly, e era apenas uma questão de escolher o mais apropriado. Este logo se provou ser
um que se apresentava no térreo embora acima dos jardins situado no ângulo sólido da
casa que a que me referi como a velha torre. Era um aposento amplo, quadrado, arrumado com
uma certa gala, como um quarto de dormir, mas seu tamanho fora do comum o tornava tão
incômodo que não vinha sendo ocupado há muitos anos, embora fosse mantido em ordem
exemplar pela Senhora Grose. Eu já o tinha admirado e conhecia bem a sua disposição; tinha
apenas que, superando o arrepio que me daria a escuridão de seu abandono, atravessá-lo e ir
avante para destravar seus postigos. Feito o percurso, afastei a cobertura sem mínimo ruído e,
encostando meu rosto à vidraça, notei, devido a haver mais escuridão lá fora que ali dentro,
que tinha tomado a direção certa. Aí, vi algo mais. A lua tornava a noite extraordinariamente
nítida e mostrou-me no gramado uma pessoa que, diminuída pela distância, ali estava imóvel
e como que fascinada, olhando para mais acima de onde eu tinha aparecido isto é, olhando
não diretamente para mim, mas para alguma coisa que estava fora de minha vista, no alto.
Havia claramente outra pessoa acima do ponto que eu ocupava havia uma pessoa na torre;
mas a presença no gramado não era de modo algum aquela que eu imaginara e que, cheia de
certeza, eu fora correndo para encontrar. Quem estava ali quase desmaiei ao descobri-lo
era o próprio Miles. CAPÍTULO 11
Só pude conversar com a Senhora Grose numa hora avançada do dia seguinte; o
esforço com que eu mantinha meus alunos sob minhas vistas fazia com frequência que fosse
difícil encontrá-la privadamente, e mais ainda porque ambas sentíamos a importância de não
provocar tanto da parte dos empregados quanto da parte das crianças nenhuma suspeita
de uma perturbação secreta ou de uma discussão de mistérios. Nesse particular, eu extraía
uma grande segurança do simples fato de a Senhora Grose oferecer uma aparência tranquila.
Nada havia em seu rosto radiante que pudesse sugerir aos outros as horríveis confidências que
recebia de mim. Ela acreditava em mim absolutamente, creio: se não o fizesse, não sei o que
teria me acontecido, porque eu não teria podido suportar tudo aquilo sozinha. Mas, ela era um
magnífico monumento à benção que pode ser a falta de imaginação, e, não vendo em nossas
crianças nada a não ser sua beleza e afetividade, sua alegria e sua inteligência, não tinha
comunicação direta com as fontes de meu dilema. Se eles fossem visivelmente infectados ou
feridos ela, procurando os motivos, ficaria perturbada o suficiente para interrogá-los; mas, do
modo como as coisas iam, eu sentia, quando ela os vigiava, com seus largos e alvos braços
cruzados e o hábito da serenidade em todo o seu rosto, que ela agradecia a Deus achando que,
mesmo que eles estivessem destruídos, os pedaços que restavam ainda serviriam. Chamas de
fantasia davam lugar, em seu espírito, a um doméstico e sólido foguinho de lareira, e eu já
tinha começado a perceber que desenvolvera a convicção de que tendo os dias
transcorridos sem nenhum acidente notório os pequeninos podiam, afinal de contas, cuidar
bem de si mesmos, sendo que ela precisava dirigir as suas atenções para o triste caso da
preceptora. Isso, para mim, era uma simplificação saudável; eu podia esforçar-me para que
em meu rosto não transparecessem meus problemas, mas teria sido, naquelas condições, uma
imensa contrariedade que eu tivesse que me preocupar com o que rosto dela poderia revelar.
Na hora a que me refiro ela tinha se juntado a mim, depois de pressionada, no
terraço, onde, com o amenizar da estação, o sol da tarde era agora agradável; e ali nos
sentamos, enquanto, diante de nós, a certa distância, mas ao alcance da nossa voz, as crianças
passeavam daqui para ali com a melhor das disposições. Moviam-se lentamente, em uníssono,
abaixo de nós, sobre o gramado, o garoto, enquanto andavam, lendo em voz alta um livro de
histórias e passando o braço pela cintura da irmã para mantê-la atenta. A Senhora Grose os
observava com uma placidez imperturbável; então, percebi o sufocado gemido intelectual
com que se voltou intencionalmente para mim a fim de obter uma explicação do que podia
haver no avesso daquela tapeçaria. Eu a tinha tornado um receptáculo de coisas sinistras, mas
havia um estranho reconhecimento de minha superioridade devido a meus predicados e à
minha função na paciência que demonstrava diante de minha dor. Ela oferecia seu espírito
às minhas revelações como se, caso eu tivesse desejado fazer uma poção de bruxa e lhe
propusesse isso com autoridade, me passasse sem protesto uma grande caçarola bem limpa.
Essa se tornou sua atitude na ocasião em que, na narrativa que lhe fiz dos fatos da noite
anterior, cheguei ao ponto daquilo que Miles me respondera quando, depois de vê-lo, numa
hora tão imprópria, quase no mesmo lugar onde brincava agora, eu me precipitara para ir
buscá-lo; para isso, tinha escolhido, lá da janela, não um método, mas um meio menosruidoso, para não alarmar a casa. Dei a entender a ela que não poderia descrever com sucesso,
mesmo diante de sua imensa boa vontade, minha impressão de que o menino se saíra com
fantástica inspiração diante de minhas perguntas, depois que o repus na casa. Assim que eu
aparecera à luz do luar no terraço, caminhou na minha direção da maneira mais tranquila; a
seguir, tomei sua mão sem uma palavra e o levei, através de espaços escuros, pela escada
acima, passando pelos lugares onde Quint rondara, faminto, à sua procura, pelo vestíbulo
onde eu escutara e tremera, e finalmente entramos em seu quarto abandonado.
Nenhuma palavra foi trocada entre nós no caminho, e eu ia me indagando oh, como
me indagava! o que seu pequeno espírito não estaria tateando à procura de uma explicação
que fosse plausível e não demasiado grotesca. A coisa ia requerer seus recursos de invenção,
certamente, e eu senti, naquele momento, diante da encrenca em que ele se encontrava, uma
curiosa emoção de triunfo. Era uma boa armadilha para alguém tão astucioso! Ele não ia
poder mais fingir inocência; assim, como diabos se safaria dessa? De súbito, pensei também,
ao colocar apaixonadamente essa questão, como diabos eu me safaria. Estava por fim tendo
que me confrontar, como nunca o fizera, com todo o risco que havia em minha atitude horrível.
Recordo de fato que, enquanto entrávamos em seu pequeno quarto, onde a cama mal tinha
sido remexida e a janela, aberta à luz da lua, tornava tudo tão claro que não era preciso riscar
um fósforo eu subitamente deixara-me cair à beira do leito, sucumbindo ante a força da
ideia de que ele devia realmente saber como lidar comigo. Faria o que quisesse, com toda a sua
inteligência o ajudando nisso, enquanto eu continuaria a pertencer à antiga tradição de
culpabilidade daqueles mestres que infundem em seus discípulos suas próprias superstições e
terrores. Ele me pegara, de fato, e bem de jeito; porque, quem me absolveria, quem me salvaria
da forca se, pelo mais leve tremor de uma insinuação, eu era a primeira a introduzir em nossa
perfeita relação um elemento tão medonho? Não, não; era inútil tentar fazer a Senhora Grose
compreender, como é talvez inútil tentar sugerir aqui, como, em nosso breve e firme embate
no escuro, ele ganhou com perícia minha admiração. Naturalmente, fui amável e compassiva o
tempo todo; nunca, nunca pusera em seus ombros mãos tão ternas como aquelas com as quais,
enquanto sentava em sua cama, mantive-o junto a mim, bem debaixo da luz. Não tinha
alternativa senão lhe interrogar, ao menos formalmente.
Você precisa me contar agora contar toda a verdade. Para que você foi lá fora? O
que estava fazendo lá?
Ainda revejo seu sorriso maravilhoso, a luz de seus belos olhos e dos pequenos dentes
a brilhar na penumbra. Se eu lhe contar, a senhorita entenderá?. Meu coração quase me saiu
pela boca, quando ouvi isso. Ele ia mesmo me revelar o motivo? Eu não achava voz para pedir,
e respondi apenas com um vago, repetido sinal de cabeça. Ele era a doçura em pessoa, e
enquanto eu a balançava diante dele, portava-se como se ali estivesse um príncipe de conto de
fadas. Essas demonstrações todas acabaram por me dar algum alívio. Seriam assim tão
grandiosas se ele fosse de fato contar a verdade? Bem, disse por fim, fiz o que fiz apenas para
que a senhorita fizesse isso.
Isso o quê?
Para que pensasse para variar que posso ser malvado! Não esquecerei nunca ojeito doce e gaiato com que ele proferiu essa palavra, nem como, para completar a cena, ele se
inclinou e me beijou. Foi praticamente o fim de tudo. Devolvi-lhe o beijo e tive que fazer,
enquanto o estreitava por um minuto em meus braços, o mais fabuloso esforço para não
chorar. Ele prestara contas de sua conduta de maneira a não permitir que eu avançasse o sinal,
e foi apenas com a finalidade de confirmar minha aceitação de suas palavras que, lançando
meu olhar pelo quarto, consegui perguntar Então, foi por isso que não tirou a roupa para
dormir?
Ele estava radioso no escuro. Não foi bem por isso. Decidi ficar lendo.
E quando foi que você desceu?
À meia-noite. Quando sou mau, sou mau de fato!
Entendo, entendo uma coisa encantadora. Mas, como é que tinha certeza de que
eu acabaria sabendo?
Oh, eu combinei a coisa com Flora. Suas respostas saíam com uma rapidez!
Combinamos que ela se levantaria e olharia pela janela.
Que foi o que ela fez, realmente. Fui eu que caí na armadilha!
Portanto, ela chamou a sua atenção, e, para saber para o que ela estava olhando, a
senhorita também olhou e viu.
Enquanto você cooperei se arriscava a perder a saúde pegando o ar da noite!
Ele literalmente explodia de orgulho de sua façanha, a tal ponto que ficou radiante
de poder concordar, retrucando: De que outro modo eu poderia provar que fui malvado de
fato?. Assim, depois de outro abraço, o incidente e nossa conversa se encerraram com o meu
reconhecimento de todas as reservas de bondade de que, para aprontar sua brincadeira, ele
lançara mão. CAPÍTULO 12
A impressão particular que tivera disso provou-se, à luz da manhã, repito, nada fácil
de transmitir a Senhora Grose, embora eu a reforçasse com a menção de outra observação que
Miles fizera antes que nos despedíssemos. Tudo se reduz a meia dúzia de palavras, eu disse a
ela, palavras que resolvem o assunto: Pense só no que eu poderia fazer! Aprontou-me isso
para provar o quanto é bom. Sabe de sobra o que poderia fazer. Deu uma mostra disso ao
pessoal lá do colégio.
Deus do céu, a senhorita muda demais de ideia!, gemeu minha amiga.
Não mudo apenas vou tornando a coisa mais clara. Esses quatro, a senhora tenha
certeza, vivem se encontrando. Se nessas duas últimas noites a senhora tivesse ficado com as
crianças, teria entendido claramente. Quanto mais eu vigiava e esperava, mais sentia que,
mesmo que não houvesse mais nada para servir de prova, o silêncio sistemático de ambos
serviria. Nunca, nem por descuido, aludiram a nenhum de seus velhos amigos, da mesma forma
como nunca Miles aludiu à sua expulsão do colégio. Oh sim, podemos ficar aqui a contemplá-
los, e eles ficarão lá mostrando-nos apenas aquilo que lhes apetece; mas mesmo quando
fingem estar mergulhados lá no seu faz de conta, estão voltados para a visão dos mortos que
voltaram. Ele não está lendo para ela ali, declarei; conversam sobre eles coisas horrorosas!
Prossigo, eu sei, como se tivesse ficado louca; é estranho que eu ainda não o tenha. O que vi, já
teria feito a senhora ficar; mas isso só me fez ficar mais lúcida, me fez compreender muito mais
coisas.
Minha lucidez devia parecer medonha, mas a visão das criaturinhas encantadoras que
dela eram vítimas, passando e repassando no gramado em doce entrelaçamento, dava à minha
companheira alguma coisa em que se apoiar; e senti o quanto se apoiava nessa coisa
observando que, sem deixar-se contagiar pela força de minha paixão, ela prosseguia olhando-
os com cuidado e carinho. Que outras coisas a senhorita compreendeu?
Ora, essas mesmas coisas que tanto me deliciaram, fascinaram e que, no fundo, como
agora vejo, só me mistificaram e atrapalharam meu entendimento. A beleza sobre-humana, a
doçura fora do comum dessas crianças. É um jogo, continuei; é um cálculo e uma impostura!
Da parte dessas criaturinhas ...?
Que agem como uns bebês adoráveis? Sim, por mais louco que pareça! O simples
ato de conseguir exprimir o que eu sentia ajudava-me a analisar o caso rastreando-o todo e
juntando seus elementos. As crianças não têm sido boas têm sido apenas ausentes. Tem sido
fácil conviver com elas, porque elas simplesmente possuem uma outra vida. Elas não são
minhas não são nossas. São dele e dela!
De Quint e daquela mulher?
Sim. Os dois querem aproximar-se delas.
Oh, como a Senhora Grose, ao ouvir isso, olhou para as crianças! Mas, para quê?
Pelo amor de todo o mal que, naqueles dias terríveis, a dupla colocou nelas. Paracontinuar a insuflar esse mal, seguir com o trabalho dos demônios, é por isso que reaparecem.
Pai do céu!, exclamou minha amiga em surdina. A exclamação era familiar, mas
revelava uma aceitação autêntica da minha prova daquilo que, nos maus tempos porque
houvera tempos piores! devia ter ocorrido. Não havia melhor justificação para mim que essa
simples aceitação, da parte de sua experiência, do sem-fim de depravações que eu supunha
ter sido cometido por aquela dupla de sórdidos. Foi numa evidente rendição à memória que
ela disse, momentos depois: Eles eram uns crápulas! Mas, que podem fazer agora?, ela
prosseguiu.
Fazer?, repeti em voz tão alta que Miles e Flora, passando lá ao longe, pararam um
instante e olharam para nosso lado. Já não fazem o bastante?, perguntei num tom mais surdo,
enquanto as crianças, depois de sorrir e acenar e mandar beijinhos com as mãos para nós,
prosseguiram com sua exibição. Ficamos mudas por um instante; depois disso, eu mesma
respondi: Os dois podem destruí-los! Ouvindo isso, minha companheira virou-se para mim,
mas a indagação que me lançou foi muda, o que fez com que eu ficasse mais explícita. Eles
ainda não sabem como fazê-lo mas estão tentando saber seja lá como for. Enquanto isso,
aparecem aqui e ali em lugares estranhos e elevados, o alto das torres, o telhado das casas,
perto das janelas, no outro lado das águas; mas há neles uma determinação profunda no
sentido de encurtar a distância e vencer os obstáculos; o sucesso das tentativas é apenas uma
questão de tempo. Eles precisam apenas continuar a sugerir perigo.
Para as crianças se aproximarem?
E perecerem na tentativa! A Senhora Grose levantou-se devagar, e eu acrescentei
escrupulosamente: A menos, claro, que possamos impedir!
Plantada ali á minha frente enquanto eu permanecia sentada, ela visivelmente
revirava as ideias à procura de solução. O tio das crianças deve impedir. Ele deve levá-las
embora.
E quem vai convencê-lo a fazer isso?
Ela sondou a distância, pensativa, e voltando a ter uma expressão ingênua, declarou.
A senhorita, naturalmente.
Escrevendo a ele que sua casa está envenenada e que seus sobrinhos
enlouqueceram?
Mas, e se eles estiverem, senhorita?
E se eu também estiver, é o que a senhora quer dizer? Belas notícias para dar da
parte de uma preceptora cujo principal dever era não lhe dar problemas.
A Sra Grose refletiu, seguindo as crianças novamente com o olhar. Sim, ele detesta
problemas. Essa foi a grande razão...
De esses perversos o enganarem por tanto tempo? Sem dúvida, embora a sua
negligência deva ter sido também medonha. Como não sou uma perversa, de qualquer modo,
não vou aborrecê-lo.Minha companheira, depois de um instante e como resposta, sentou-se novamente e
agarrou firmemente o meu braço. Peça a ele que venha.
Arregalei os olhos. Que venha a mim?. Fiquei subitamente com medo do que ela
poderia fazer. Ele?
Ele precisa estar aqui ele precisa ajudar.
Levantei-me rapidamente, e creio que lhe exibi um rosto estranho como nunca. A
senhora acha que sou capaz de pedir a ele uma visita? Não, com os olhos postos no meu rosto,
ela evidentemente não se atrevia a achar. Ao invés disso tal como uma mulher lê no rosto de
outra ela via o que eu via: o desfrute, a diversão, o menosprezo dele por eu ter me resignado
a viver em tamanha solidão e pelos mecanismos sutis que eu pusera em movimento a fim de
atrair sua atenção para meus encantos insignificantes. Ela não sabia de resto, ninguém
quanto eu me sentia orgulhosa de servi-lo e ser estritamente fiel ao nosso contrato; contudo,
creio que levou bem em conta a advertência que eu então lhe fiz: Se a senhora perder a
cabeça a ponto de apelar para ele em meu favor...
Ela se assustou. Sim, senhorita?
Abandono ele e a senhora. CAPÍTULO 13
Conviver com eles era simples e fácil, mas falar com eles chegou a ser uma coisa quase
além das minhas forças oferecia, em particular, dificuldades tão intransponíveis como
sempre. A situação continuou desse modo por um mês, com novos agravantes e notas
peculiares, sendo a mais perceptível destas, e cada vez mais acentuada, a que revelava uma
leve consciência irônica por parte de meus alunos. Não era, tenho certeza hoje como tinha
certeza então, apenas consequência de minha imaginação infernal; era absolutamente visível
que tinham consciência de meu padecimento e que essa estranha relação constituía, de certo
modo, a atmosfera em que vivíamos. Não quero dizer que me mostrassem a língua ou fizessem
algo vulgar, porque não isso não estava entre seus defeitos: quero dizer, ao contrário, que o
elemento indizível e inabordável tornou-se, entre nós, maior que qualquer coisa, e que o
esforço por evitá-lo não seria tão bem sucedido sem que exigisse uma boa parte de acordo
tácito. Era como se, em certos momentos, esbarrássemos em pontos diante dos quais
tivéssemos que estacar, desviando repentinamente de becos que percebíamos serem sem
saída, fechando com um barulho que fazia com que olhássemos uns para os outros porque,
como todos os barulhos, era um pouco mais alto do que pretendíamos as portas que
tínhamos aberto indiscretamente. Todos os caminhos levam a Roma, e houve ocasiões em que
devíamos ter a impressão de que qualquer tópico de estudo ou tema de conversa roçava um
terreno proibido. Assim como terreno proibido era a questão do retorno dos mortos em geral e
daqueles que, em particular, sobreviviam na lembrança das crianças como amigos que tinham
perdido. Houve dias em que eu podia jurar que um deles, com uma cotovelada quase
imperceptível, dizia ao outro: Ela pensa que vai falar dessa vez mas não vai!. Falar
significaria, por exemplo e por uma vez referir-me à mulher que me antecedera. Tinham
um apetite deleitoso e insaciável por passagens de minha própria história, às quais eu várias
vezes retornava; tomaram posse de tudo que me acontecera, conscientizando-se, em cada
circunstância, da história de minhas pequenas aventuras e das aventuras de meus irmãos e
minhas irmãs e mesmo do cão e do gato que tínhamos em minha casa, bem como de alguns
pormenores do caráter excêntrico de meu pai, da mobília e da disposição da nossa casa e das
conversas das velhas mulheres de nossa aldeia. As coisas se ligavam umas às outras, e não
faltava sobre que conversar, contanto que se contornasse rápida e instintivamente o que não
podia ser mencionado. Puxavam com uma arte muito própria os cordéis de minha invenção e
de minha memória; e talvez nada tenha despertado em mim tanta suspeita de estar sendo sub-
repticiamente observada como essas ocasiões, das quais lembrei-me depois. Em todo caso, era
sobre minha vida, meu passado e meus amigos apenas que podíamos conversar com toda
comodidade; era um estado de coisas que às vezes os levava, sem a menor pertinência, a
invadir minhas recordações sociais. Eu era convidada sem ligação aparente a repetir o
famoso mote de Goody Gosling ou a de novo confirmar detalhes já fornecidos sobre a
inteligência do pônei do vicariato.
Era em parte devido a circunstâncias como essas e também devido a outras que, com
o rumo que meus problemas tinham tomado, meu padecimento, como eu o chamava, tinha
ficado mais sensível. O fato de que os dias passavam para mim sem qualquer outro encontrodevia, pelo que parecia, ter feito alguma coisa no sentido de acalmar meus nervos. Desde o
ligeiro roçar, naquela segunda noite no andar de baixo, da presença de uma mulher ao pé da
escada, não vira mais nada, fosse dentro ou fora da casa, que fosse preferível não ver. Havia
muitos esconsos onde eu podia esperar uma topada com Quint, e muitas situações que, de um
modo simplesmente sinistro, teriam favorecido o aparecimento da Senhorita Jessel. O verão
veio, o verão se foi; o outono caiu sobre Bly e fez com que metade das nossas luzes se
dissipasse. O lugar, com seu céu cinzento e suas grinaldas murchas, seus espaços vazios e suas
folhas mortas espalhadas, parecia um teatro depois de encerrada uma apresentação todo
coberto por programas amarrotados. Havia no ar as vibrações e condições exatas de som e de
silêncio, das impressões indizíveis daquele tipo de momento propício, que me traziam de
volta, prolongada o bastante para que eu a captasse, a sensação do ambiente no qual, naquele
entardecer de Junho ao ar livre, eu tivera minha primeira visão de Quint e no qual também,
naqueles outros momentos posteriores, depois de vê-lo através da janela, eu procurara por ele
inutilmente em meio aos arbustos. Eu reconhecia os sinais, os agouros reconhecia o
momento, o lugar. Mas tudo permanecia desolado e vazio, e eu continuava ali, sem ser
molestada; estava tão incólume quanto poderia estar uma moça cuja sensibilidade tivera, do
modo mais extraordinário, não uma decaída, mas um aprofundamento. Dissera à Senhora
Grose ao falar daquela cena horrenda que sucedera com Flora junto ao lago e a deixara
perplexa ao fazê-lo que, daquele momento em diante, ficaria muito mais desgostosa em
perder meu dom que em conservá-lo. Expressara, então, o que estava vívido em meu espírito:
a verdade de que, se as crianças vissem ou não posto que isso ainda não fora definitivamente
provado eu, em qualquer caso, preferiria, como salvaguarda, expor-me totalmente. Estava
pronta para conhecer o que houvesse de pior para ser conhecido. Tivera então um vislumbre
monstruoso de que meus olhos podiam estar selados exatamente quando os das crianças
estariam abertos ao máximo. Bem, meus olhos estavam selados, parecia, naquela ocasião
uma conclusão diante da qual seria blasfemo não agradecer a Deus. Havia, ai de mim, uma
dificuldade nisso: teria agradecido a Ele com toda a minha alma se não tivesse em medida
proporcional a convicção de que meus alunos guardavam um segredo.
Como poderei hoje refazer os estranhos passos de minha obsessão? Havia horas, em
nosso convívio, quando eu estava pronta a jurar que, literalmente, em minha presença, mas
sem que eu tivesse acesso direto, as crianças recebiam e davam boas-vindas a seus visitantes.
Era então que, se não me detivesse o receio oportuno de que um tal dano pudesse ser maior
que o dano a ser conjurado, eu teria rompido em exaltação. Eles estão aqui, eles estão aqui,
meus pequenos infelizes!, e teria gritado, e agora vocês não podem mais negar!. Os pequenos
infelizes negavam-no juntando toda a força de sua sociabilidade e de sua ternura, lá das
profundezas cristalinas onde como o lampejo de um peixe na corrente a sua zombeteira
vantagem despontava. O choque, na verdade, me atingira mais profundamente quando,
procurando avistar fosse Quint fosse a Senhorita Jessel sob as estrelas, descobrira o menino
cujo sono eu até aí julgara estar velando e notara que, imediatamente, ele se recompusera
virara-se diretamente para mim tirando os olhos lá do alto, das ameias acima do ponto em
que eu me encontrava e onde Quint fazia sua aparição hedionda. Se era uma questão de susto,
minha descoberta nessa ocasião tinha me assustado mais que qualquer outra, e era nascondições de nervos por ela produzida que eu fazia minhas verdadeiras induções. Elas me
atormentavam tanto que às vezes, em estranhos momentos, eu precisava trancar-me no quarto
e ensaiar em voz alta era ao mesmo tempo um alívio fantástico e um desespero renovado a
maneira pela qual poderia abordar o assunto. Tateava-o de um modo ou de outro enquanto
vagueava em meu quarto, mas sempre sucumbia quando tinha que proferir os nomes próprios
monstruosos. Enquanto estes morriam em meus lábios eu dizia a mim mesma que talvez os
estivesse ajudando a representar algo infame já que, pelo fato de pronunciá-los, eu poderia
estar violando um caso de delicadeza instintiva que, raro como esse, talvez nenhuma outra sala
de estudos houvesse conhecido. Quando eu me dizia: Eles têm a delicadeza de se calar, e
você, tão decente, a baixeza de falar!, me sentia ruborizar e tapava meu rosto com as minhas
mãos. Depois dessas cenas secretas, eu conversava mais que nunca, tagarelando de modo
volúvel até que ocorria um de nossos prodigiosos, palpáveis silêncios não posso chamá-los
de outra coisa e um estranho arrebatamento ou mergulho (procuro os termos!) numa
quietude, uma interrupção de toda vida, que não tinha nada a ver com o ruído maior ou
menor que pudéssemos estar fazendo no momento e que eu podia ouvir em meio a qualquer
animação mais exaltada ou declamação mais apressada ou acordes mais fortes do piano.
Significava que os outros, os intrusos, lá estavam. Embora não fossem anjos, passavam, como
dizem os franceses, provocando em mim, enquanto ficavam, um estremecimento de terror por
eu pensar que podiam dar às suas vítimas mais jovens alguma mensagem ainda mais infernal ou
alguma imagem mais vívida que aquelas que julgavam suficientes para mim.
O que me parecia o mais impossível era eu me livrar da ideia de que, o que quer que
eu tenha visto, Miles e Flora tinham visto mais coisas terríveis e inimagináveis que emergiam
das tenebrosas passagens das relações que tinham tido com a dupla no passado. Tais coisas
deixavam naturalmente na superfície, por momentos, um arrepio que nós, os rumorosos,
negávamos sentir; e tínhamos, todos os três, devido à repetição, chegado a uma técnica tão
esplêndida que, de cada vez, para assinalar o fim do incidente, íamos executando quase
automaticamente os mesmos movimentos. Era espantoso que as crianças, em todo caso, nunca
deixassem de me beijar com uma espécie de selvagem despropósito ou nunca cessassem ora
uma ora outra de fazer a preciosa pergunta que nos tinha ajudado a cruzar tantos perigos.
Quando você acha que ele virá? Não acha que devemos escrever? não havia nada como
essa pergunta, aprendêramos por experiência, para espantar qualquer embaraço. Ele
naturalmente era o tio em Harley Street; e vivíamos a repetir a teoria de que ele poderia
chegar a qualquer momento para se juntar a nosso círculo. Impossível haver alguém que desse
menos encorajamento a essa doutrina do que ele, mas, se não a usássemos como apoio,
teríamos nos privado um aos outros de algumas de nossas mais habilidosas representações.
Nunca escrevia às crianças podia ser uma atitude egoísta, mas era parte da lisonjeira
confiança que depositava em mim; pois o modo pelo qual um homem presta seu mais alto
tributo a uma mulher pode não ser nada além da celebração festiva de uma das sagradas leis
de seu comodismo; e eu seguia fielmente a promessa de não importuná-lo fazendo as crianças
perceberem que suas cartas não passavam de encantadores exercícios literários. Eram belas
demais para serem postas no correio; eu as guardava comigo; tenho-as até hoje. Essa era, na
verdade, uma regra que apenas aumentava o efeito satírico de eu ter me agarrado à suposiçãode que ele poderia, a qualquer momento, estar entre nós. Era exatamente como se minhas
crianças soubessem que uma coisa dessas poderia ser a mais embaraçosa de todas para mim.
Ademais, quando olho para trás, não vejo nenhuma nota mais extraordinária que o simples
fato de nunca ter perdido a paciência com eles, apesar de viver em tensão e eles em triunfo.
Devem ter sido realmente adoráveis, reflito agora, para que eu não os odiasse naqueles dias!
Apesar disso, a exasperação não teria finalmente me traído se o alívio tardasse demais a
chegar? Pouco importa, porque o alívio chegou. Chamo-o de alívio, embora fosse apenas o
alívio que uma quebra traz a uma tensão ou que a irrupção de uma trovoada traz a um dia de
calor sufocante. Era, ao menos, uma mudança, e chegou com fúria. CAPÍTULO 14
Caminhávamos para a igreja numa certa manhã de domingo, eu levando Miles ao
meu lado e sua irmã seguindo à nossa frente pelo braço da Senhora Grose, bem à vista. Era um
dia claro, revigorante, o primeiro dessa espécie por uma temporada; a noite trouxera um
toque de geada, e o ar de outono, brilhante e vívido, tornava o repicar dos sinos quase alegre.
Foi uma estranha associação de pensamentos que me fez, naquele momento, sentir-me
particularmente tomada de gratidão pela obediência de minhas crianças. Por que nunca se
rebelavam contra minha inexorável, perpétua companhia? Uma ou outra coisa deu-me a
sensação bem íntima de que eu trazia o menino como um alfinete espetado em meu xale e,
pelo modo com que meus companheiros marchavam diante de mim, podia até parecer que eu
encontrara um meio de impedir qualquer tipo de rebelião. Eu agia como um carcereiro de olho
nas possíveis surpresas e fugas. Mas tudo isso pertencia me refiro à sua magnífica submissão
a um conjunto especial de fatos que eram os mais insondáveis. Vestido em caráter
domingueiro pelo alfaiate de seu tio, que tinha carta branca e habilidade para fazer coletes
que realçavam o seu ar pomposo de menino, os títulos de independência, os direitos de seu
sexo e de sua posição, estavam tão patentes em Miles que, se subitamente ele tivesse
reclamado liberdade, eu nada teria a dizer. Pela mais estranha das coincidências, eu pensava
em como poderia me defrontar com ele num caso desses, quando a revolução
inequivocamente aconteceu. Chamo-a de revolução porque vejo agora que, com o que ele
disse, a cortina se ergueu para o último ato de meu terrível drama e a catástrofe se precipitou.
Olhe aqui, minha querida, vamos lá, ele disse charmosamente, pode me dizer, por favor,
quando afinal vou voltar para o colégio?
Transcrita aqui, sua fala parece bastante inofensiva, e ainda mais na maneira como era
proferida por ele, num tom doce, alto, casual, que usava para se dirigir a todos, mas muito em
especial à sua eterna preceptora, para quem reservava entonações parecidas a um lançamento
de rosas. Havia nelas algo que fisgava as pessoas , e naquele momento, fui fisgada tão
efetivamente que parei de modo brusco, como se uma das árvores do parque houvesse caído
no caminho. Havia alguma coisa nova ali, entre nós, e ele sabia perfeitamente que eu a
reconhecia, embora, para que eu também o fizesse, ele não precisasse abrir mão de nada do
seu ar cândido e encantador. Pude sentir que, a partir do fato de que eu nada respondera, ele
já percebera que levava uma vantagem. Fiquei tão lerda para achar alguma coisa que dizer
que ele teve tempo de sobra para, depois de um minuto, continuar falando com seu sorriso
sugestivo e indeciso: Você sabe, minha querida, que, para um homem, ficar sempre com uma
mulher...! Trazia nos lábios esse constante minha querida ao falar comigo, e nada podia
expressar melhor o exato tom de sentimento que eu desejava inspirar a meus alunos do que a
familiaridade terna que nele havia. Era tão respeitosamente espontâneo!
Mas, oh, como eu sentia, naquele momento, que tinha escolher muito bem as minhas
palavras! Recordo que, para ganhar tempo, tentei rir, e pareci notar no belo rostinho dele
como eu devia ter ficado feia e esquisita. E sempre com a mesma mulher?, respondi.
Ele não vacilou nem piscou. A coisa toda estava bem clara entre nós. Ah,naturalmente, ela é uma dama alegre, perfeita; mas afinal, sou um homem, não vê? bem ao
menos, já estou ficando.
Fitei-o um pouco mais, comovida com aquela delicadeza. Sim, você está crescendo.
Oh, mas como me sentia desamparada!
Tenho até hoje a triste ideia de que ele sabia muito bem disso e se divertia comigo. E
a senhorita não pode dizer que não tenho sido fantasticamente bom, não é?
Pus minha mão em seu ombro, porque, embora sentisse que seria muito melhor seguir
caminhando, não me sentia capaz disso. Não, não posso dizer, Miles.
Exceto por aquela noite, a senhorita sabe...!
Aquela noite qual? Eu não conseguia olhá-lo nos olhos.
Ora, aquela em que eu desci do quarto saí da casa.
Oh, sim. Mas me esqueço por que você fez aquilo.
Esquece? ele falou com a doce extravagância de uma censura infantil. Ora, era
para lhe mostrar que eu podia!
Oh, sim, você podia.
E posso novamente.
Senti que poderia, talvez, afinal de contas, manter a cabeça fria. Naturalmente. Mas
não o fará.
Não, aquilo outra vez não. Não foi nada.
Não foi nada, eu disse. Mas, devemos andar.
Ele retomou os passos comigo, passando sua mão pelo meu ombro. Então, quando é
que vou voltar?
Para responder à pergunta, adotei o ar mais responsável. Você estava feliz no
colégio?
Ele refletiu um pouco. Oh, fico feliz em toda parte!
Bom, então, minha voz tremeu, se você se sente feliz também aqui...!
Ah, mas isso não é tudo! Claro, a senhorita sabe muita coisa...
Está insinuando que sabe tanto quanto eu?, arrisquei, aproveitando a pausa.
Nem metade do que queria!, ele confessou com honestidade. Mas, não é bem isso.
O que é então?
Bem eu queria conhecer mais a vida.
Entendo; entendo. A essa altura, chegávamos perto da igreja e de várias pessoas,
entre as quais alguns empregados de Bly, que se encaminhavam para ela e que se agrupavam
para ver-nos entrar. Apressei nosso passo; eu queria chegar lá antes que a questão entre nós
tomasse rumos maiores; refletia ansiosamente que, pelo menos por uma hora, ele teria queficar em silêncio; pensei com cobiça na relativa obscuridade do banco e na ajuda quase
espiritual da almofada na qual apoiaria meus joelhos. Eu parecia literalmente estar disputando
uma corrida com alguma confusão à qual ele estava quase conseguindo me reduzir, mas vi que
ele tinha chegado em primeiro lugar quando, antes que cruzássemos o cemitério da igreja, ele
exclamou Quero ficar com gente como eu!
Isso me deixou literalmente zonza. Não há muita gente como você, Miles!, ri.
Salvo, talvez, a pequena Flora!
Vai me comparar com uma menininha?
Ouvindo isso, enfraqueci. Então, você não ama nossa doce Flora?
Se eu não a amasse e amasse a senhorita; se eu não...!, ele repetiu, como se desse
um recuo para saltar, mas deixando seu pensamento tão inconcluído que, depois de
chegarmos ao portão, uma outra parada, que me impôs pela pressão sobre meu braço, foi
inevitável. A Senhora Grose e Flora tinham entrado na igreja, os outros fiéis também o
fizeram, e ficamos, por uns minutos, sozinhos em meio aos velhos e enormes túmulos.
Detivemo-nos no caminho que partia do portão, junto a uma tumba baixa, oblonga, em
formato de mesa.
Sim, se não nos amasse...?
Enquanto eu esperava a resposta, ele olhava para os túmulos. Bem, a senhorita sabe!.
Mas ele não se moveu, acabando por dizer uma coisa que me fez desabar na laje da tumba,
como se eu precisasse, subitamente, de descanso. Meu tio pensa o mesmo que a senhorita?
Demorei a responder. Como é que você sabe o que eu penso?
Ah bem, claro que não sei; é que me incomoda que a senhorita nunca me diga. Mas o
que eu quero saber é se ele sabe?
Sabe o quê, Miles?
Ora, o que se passa comigo.
Percebi com rapidez que não podia dar a essa pergunta resposta alguma que não
implicasse em algum sacrifício para meu patrão. A despeito disso, pareceu-me que todos nós
fazíamos, em Bly, sacrifícios o bastante para que a coisa não passasse de um pecado venial. Eu
acho que seu tio não se preocupa muito.
Miles, ouvindo isso, ficou me olhando. Então, a senhorita não acha que a gente podia
fazer com que ele se preocupasse?
De que jeito?
Ora, fazendo-o vir.
Mas, quem é que vai conseguir fazê-lo vir?
Eu!, o menino disse com um brilho e uma ênfase extraordinários. Lançou-me um
outro olhar carregado com aquela determinação e marchou sozinho para dentro da igreja. CAPÍTULO 15
A questão se encerrou praticamente aí, pois não tive coragem de segui-lo. Era uma
lamentável concessão ao meu nervosismo, mas compreender tal coisa não me devolvia a
calma. Fiquei lá apenas, sentada em minha tumba, tentando apreender todo o significado do
que meu pequeno amigo dissera; quando senti que tinha compreendido a coisa toda, decidira
também ir-me embora, alegando depois aos meus alunos e ao resto da congregação o
pretexto de que não quisera dar exemplo de atraso. O que eu me dizia acima de tudo era que
Miles conseguira uma vantagem sobre mim e que a prova disso, para ele, seria justamente essa
embaraçosa ausência. Ele conseguira arrancar de mim que havia algo que eu temia muito e a
partir daí poderia sentir-se capaz de fazer uso desse meu medo para ganhar, para executar
seus propósitos, mais liberdade. Meu medo era ter que lidar com a intolerável questão dos
detalhes de sua expulsão do colégio, pois não era senão a questão atrás de qual os horrores se
ocultavam. Que seu tio viesse tratar comigo desse assunto era uma solução que, estritamente
falando, eu mesma já devia ter desejado; mas eu tinha tão pouco poder para encarar a feiura e
a aflição da coisa que simplesmente adiava e me entregava ao presente. O menino, para minha
grande tristeza, estava imensamente certo em seus direitos e mesmo em posição de me dizer:
Ou a senhorita esclarece com meu tutor o mistério dessa interrupção dos meus estudos, ou
deixa de esperar que eu viva aqui uma vida que é tão pouco natural para um menino. O que
era pouco natural no menino com quem eu lidava era essa súbita revelação de uma
consciência e um plano.
Foi o que na verdade me derrotou, o que me impediu de segui-lo. Andei ao redor da
igreja hesitando, vacilando; refletia que, junto a ele, já tinha cometido uma falta irreparável.
Portanto, não remendaria nada, e seria esforço demasiado procurar lugar ao lado dele no
banco: ele estaria mais que nunca confiante para dar-me o braço e fazer-me sentar por uma
hora em estreito, silencioso contato para ouvir suas deduções sobre o que conversáramos.
Quando parei ao lado da alta janela ao leste e escutei os sons do culto, fui tomada por um
impulso que me dominaria por completo, sentia, se eu lhe desse um pouco de estímulo. Eu
poderia pôr um fim ao meu padecimento simplesmente desaparecendo. Ali estava minha
oportunidade; ninguém me deteria; poderia desistir de tudo dar minhas costas e recuar.
Seria apenas questão de me retirar rapidamente, fazer alguns preparativos, lá na casa, que
estaria praticamente desocupada devido aos empregados terem ido à igreja. Ninguém, em
resumo, poderia culpar-me se eu apenas saísse desesperadamente de cena. De que me
adiantaria fugir no momento se eu ficaria ausente só até o jantar? Este aconteceria dentro de
um par de horas, ao fim do qual previa com clareza meus pequenos alunos fingiriam um
inocente espanto ante meu não aparecimento junto à comitiva.
O que a senhorita fez, sua desobediente, malvadinha? Que foi lhe deu que nos deixou
tão preocupados e confundiu nossa cabeça também, não sabe? abandonar-nos lá, bem na
porta da igreja? Não poderia enfrentar tais perguntas nem, enquanto ele as formulassem, seus
falsos olhinhos adoráveis; contudo, isso era tão exatamente o que deveria acontecer que, à
medida que a perspectiva se tornava mais clara para mim, acabei por ir-me embora.Afastei-me, ao menos por aquele momento; saí do cemitério e, refletindo seriamente,
fiz o caminho de volta pelo parque. Parecia-me que, ao chegar à casa, já tinha firme a decisão
de fugir. A tranquilidade de domingo, que reinava tanto nas cercanias quanto no interior da
casa, na qual não encontrei ninguém, ajudou a excitar em mim um senso de oportunidade. Se
eu quisesse bater em retirada rapidamente, desse modo, conseguiria fazê-lo sem uma só cena,
uma só palavra. Minha rapidez teria que ser notável, contudo, e a questão de arranjar
transporte era a mais urgente a resolver. Atormentada, no hall, pelas dificuldades e obstáculos,
recordo que me deixei cair ao pé da escada subitamente desabando ali no primeiro degrau e
então, com repulsa, lembrando que foi exatamente naquele lugar que, havia mais de um mês,
na escuridão da noite e tão abatida por coisas malignas, eu vira o espectro da mais horrível de
todas as mulheres. Diante disso, fui capaz de me dar forças; subi pelo resto do andar superior;
perturbada, fui para a sala de estudos, onde havia objetos de minha propriedade que eu teria
que levar na fuga. Mas abri a porta apenas para ficar, num relance, com os olhos arregalados.
Diante do que vi, cambaleei, tendo que me valer de toda a minha resistência.
Sentada em minha própria mesa, à clara luz do meio-dia, vi uma pessoa que, se eu
não tivesse tido minha experiência anterior, poderia ter tomado, no primeiro impacto, por
alguma empregada que houvesse ficado em casa para tomar conta do lugar e que,
aproveitando-se de um raro momento em que não era observada, da mesa da sala de estudos,
de minhas canetas, tinta e papel, tinha se empenhado no considerável esforço de escrever para
o namorado. Havia um esforço penoso no jeito com que, pousando seus braços na mesa, suas
mãos, com evidente cansaço, apoiavam sua cabeça; mas, no momento em que percebi isso, já
tinha notado que, a despeito de minha chegada, sua atitude persistia estranhamente. Foi então
que, ao mudar de postura com o simples ato de anunciar-se sua identidade revelou-se por
completo. Ela ergueu-se, não como se tivesse me ouvido, mas com uma grande melancolia
cheia de indiferença e desapego, e, a cerca de uma dúzia de passos à minha distância, ali
estava minha vil antecessora. Desonrada e trágica, desvendava-se toda diante de mim; mas
mesmo quando a fixei e, pela memória, me certifiquei de sua identidade, a imagem se
desvaneceu. Escura como a meia-noite em seu vestido negro, em sua desfigurada beleza e sua
inexprimível desgraça, ela me fitou tempo suficiente para parecer dizer que seu direito de
sentar-se à minha mesa era igual ao meu. Enquanto esses instantes duraram, na verdade, tive a
sensação arrepiante e extraordinária de que eu sim era a intrusa. Foi protestando
furiosamente contra isso que, dirigindo-me a ela Mulher terrível, miserável! ouvi-me
rompendo num grito que, saindo pela porta aberta, ressoou pelo longo corredor e pela casa
vazia. Ela olhou-me como se me ouvisse, mas eu me recuperei, abri as janelas e purifiquei o ar.
Dentro em pouco, nada havia no quarto senão a claridade do sol e a convicção de que eu
devia ficar. CAPÍTULO 16
Tinha esperado com tanta certeza que a volta dos meus alunos seria marcada por
alguma cobrança que fiquei perturbada ao ter que constatar que ficaram silenciosos em
relação à minha ausência. Ao invés de alegremente me denunciar e acariciar, eles não fizeram
alusão alguma sobre a minha falta, e fiquei restrita a perceber que também ela nada dissera,
ao observar a estranha expressão da Senhora Grose. Observei-a para verificar se eles, de algum
modo, não tinham-na subornado para que ficasse em silêncio; um silêncio que, de algum
modo, eu daria um jeito de quebrar na primeira oportunidade em que ficássemos a sós. Essa
oportunidade chegou antes do chá: consegui cinco minutos com ela no aposento da
governanta, onde, à luz do crepúsculo, em meio a um cheiro de pão recém-saído do forno, o
lugar todo asseado e enfeitado, encontrei-a tomada por melancólica placidez, sentada diante
do fogo. Ainda a vejo assim, assim a recordo melhor: fitando a chama dali de sua cadeira no
aposento sombrio, polido, uma grande imagem clara de coisas postas à parte de gavetas
fechadas a chave e de repouso irremediável.
Oh, sim, pediram-me para não dizer nada; e para agradá-los enquanto estavam lá
é claro que eu prometi. Mas o que aconteceu com a senhorita?
Fui com vocês apenas para dar uma caminhada, eu disse. Tive que voltar para
encontrar um amigo.
Ela mostrou-se surpresa. Um amigo a senhorita?
Oh, sim, tenho um par deles!, ri. Mas, as crianças não lhe deram uma razão?
Para não mencionar que nos deixara? Sim; disseram que a senhorita ia preferir assim.
Prefere mesmo?
A expressão do meu rosto a entristeceu. Não prefiro, lastimo! Mas, depois de um
instante, acrescentei: Eles disseram por que eu haveria de preferir?
Não; o patrãozinho Miles disse apenas Não devemos fazer nada além do que ela
gosta!
Que bom se ele me fizesse o que gosto! E o que disse Flora?
Foi uma doçura. Ela disse Oh, claro, claro e eu disse o mesmo.
Refleti um momento. A senhora foi uma doçura também pareço estar ouvindo os
três. Mas, de qualquer maneira, entre Miles e eu, tudo ficou claro.
Tudo claro?. Minha companheira fitou-me. Mas, o que, senhorita?
Tudo. Não importa. Tomei uma decisão. Vim para cá, minha cara, continuei, para
ter uma conversa com a Senhorita Jessel.
A essa altura, eu tinha estabelecido o hábito de primeiro ficar com a Senhora Grose
literalmente em minhas mãos para poder proferir esse nome; de modo que, mesmo agora,
enquanto ela piscava corajosamente sob o impacto de minhas palavras, conseguia mantê-la
relativamente firme. Uma conversa! Quer dizer que ela falou?Foi como se falasse. Encontrei-a, ao retornar, na sala de estudos.
E o que ela falou?, posso ouvir ainda a boa mulher, e a candura de sua estupefação.
Que sofre os tormentos... !
Foi isso, na verdade, que fez com que ela, preenchendo o quadro em sua mente,
ficasse boquiaberta. Quer dizer vacilou dos perdidos?
Dos perdidos. Das almas penadas. E é por isso que, para compartilhá-los... eu
própria vacilei diante do horror da coisa.
Mas minha companheira, dotada de menos imaginação, me susteve. Para
compartilhá-los...?
Ela quer Flora. A Senhora Grose, quando eu disse isso, teria fugido, se eu não
estivesse prevenida. Mantive-a ali, para provar que estava. Mas, como eu já lhe disse, não
importa.
Porque a senhorita tomou uma decisão? Mas, decidiu o quê?
Tudo.
E o que a senhorita chama de tudo?
Ora, mandar chamar o tio.
Oh, senhorita, faça isso, por piedade, minha amiga gemeu.
Ah, mas eu vou chamar, eu vou! Vejo que é o único jeito. O que está claro com
Miles, como eu lhe disse, é que, se ele pensa que eu tenho medo disso e tem ideias do que
pode ganhar com esse meu medo ele verá que está enganado. Sim, sim; o tio vai saber
comigo aqui (e diante do próprio menino, se necessário for) se devo ser censurada pelo fato
de não fazer nada para que ele tivesse um outro colégio.
Sim, senhorita..., minha amiga insistiu.
Bem, existe um motivo medonho.
Havia tantos motivos desse tipo para a minha pobre companheira que era
compreensível que ela fosse vaga. Mas qual?
Ora, a carta que veio de lá do primeiro.
Vai mostrá-la ao patrão?
Eu devia tê-lo feito no instante em que a recebi.
Oh, não!, disse a Senhora Grose com decisão.
Vou mostrar para ele, continuei, inexorável, que não posso me ocupar de uma
questão dessas, de um menino que foi expulso...
Por uma razão que nunca chegamos a saber qual!, a Senhora Grose declarou.
Por perversidade. Que outro motivo haveria sendo ele tão inteligente e bonito e
perfeito? É estúpido? É sujo? É débil? É doente? Ele é primoroso portanto, só pode ser isso;e esse motivo explicaria tudo. Afinal, eu disse, é culpa do próprio tio. Se ele deixava aqui
esse tipo de gente...
Ele não sabia nada a respeito deles. A culpa é minha.
Bem, a senhora não pagará por isso, respondi.
As crianças também não devem pagar!, ela respondeu enfaticamente.
Fiquei em silêncio por um instante; olhamos uma para a outra. Então, o que vou
dizer a ele?
A senhorita não precisa dizer nada. Eu direi.
Avaliei a resposta. Quer dizer que a senhora escreverá...? Lembrando que ela não
sabia, voltei a mim. Como é que a senhora se comunica?
Falo ao mordomo. Ele escreve.
E a senhora gostaria que ele escrevesse a nossa história?
Minha pergunta tinha uma força sarcástica que não era de todo intencional, e fez
com que ela, depois de um momento, perdesse o controle. As lágrimas voltaram a seus olhos.
Ah, a senhorita escreverá!
Bem hoje à noite o farei, respondi finalmente; e, com isso, nos separamos. CAPÍTULO 17
À noite, cheguei a escrever um começo de carta. O tempo mudara bastante, lá fora
soprava um vento forte e, debaixo da lâmpada, no meu quarto, com Flora dormindo em paz
ao meu lado, fiquei durante longo tempo diante de uma folha de papel em branco, escutando
o açoite da chuva e o fustigar da ventania. Finalmente saí, levando um castiçal; atravessei o
corredor e fiquei um minuto escutando à porta do quarto de Miles. Movida por minha
obsessão interminável, eu pretendia descobrir algum sinal de ele não estar dormindo coisa
nenhuma, e realmente consegui captar um, mas não da maneira como tinha esperado. A voz do
menino retiniu. Vamos lá, a senhorita aí! pode entrar. Foi uma nota alegre no ambiente
sombrio!
Entrei com meu castiçal e encontrei-o bem desperto e à vontade, na cama. Bem, o
que a senhorita está fazendo por aí?, ele perguntou com uma graça efusiva na qual me
ocorreu que a Senhora Grose, se estivesse ali, teria procurado em vão uma prova de que as
coisas tinham ficado claras.
Fiquei diante dele com meu castiçal. Como é que sabia que eu estava ali?
Ora, porque escutei a senhorita. Imaginou por acaso que não fazia barulho? Pois fez,
como uma tropa de cavalaria!, ele riu maravilhosamente.
Então, não estava dormindo?
Não muito! Estava acordado e pensava.
Eu pusera meu castiçal, de propósito, um pouco mais além, e então, enquanto ele
estendia sua habitual mão amigável para mim, sentei-me à beira de sua cama. O que é,
perguntei, que você pensava?
Em que mais poderia pensar, querida, além da senhorita?
Ah, não precisava tudo isso para me deixar orgulhosa! Teria preferido muito mais
que estivesse dormindo.
Bem, eu também pensava, sabe, nesse nosso estranho assunto.
Percebi que sua mãozinha firme esfriara. Que estranho assunto, Miles?
Ora, o jeito que a senhorita me educa. E tudo mais!
Fiquei com a respiração suspensa por um momento, e mesmo à luz incerta da vela,
havia claridade suficiente para mostrar como ele sorria para mim dali de seu travesseiro. Que
é que você quer dizer com tudo mais?
Oh, a senhorita sabe, a senhorita sabe.
Não consegui dizer nada por um minuto, embora sentisse, enquanto apertava a sua
mão e nossos olhos continuavam a fitar-se, que meu silêncio tinha todo o jeito de aceitar a sua
imputação e que nada no mundo real todo era talvez, naquele momento, tão fabuloso quanto
nossa verdadeira relação. Você vai voltar para o colégio com certeza, eu disse, se é isso que
lhe incomoda. Mas não para aquele vamos achar outro, um que seja melhor. Como é que eupodia saber que isso lhe incomodava, essa questão, se você nunca me contou, se nunca me
falava nada? Seu rosto claro, atento, aureolado de suave brancura, tornou-o por um momento
tão suplicante como algum paciente ansioso de um hospital infantil; e, quando a comparação
me ocorreu, senti que teria dado tudo que possuísse neste mundo para ser a enfermeira ou
irmã de caridade que conseguisse curá-lo. Bem, mesmo do jeito que as coisas estavam, talvez
eu conseguisse ajudá-lo! Você sabe que nunca me disse uma só palavra sobre seu colégio
me refiro ao velho; nunca o mencionou de modo algum?
Pareceu refletir; sorria com o encantamento de sempre. Mas, claramente procurava
ganhar tempo; ele esperava, suplicava por orientação. Não falei nada? Não esperava que eu
o ajudasse esperava ajuda da coisa que eu conhecera!
Alguma coisa em seu tom e na expressão de seu rosto, enquanto me dizia isso, fez
com que meu coração doesse com uma angústia tal como eu nunca sentira; tão indizivelmente
tocante era ver seu pequeno cérebro confuso e todos os seus pequenos recursos mentais
forçados a representar, oprimidos pelo feitiço que o contaminara, um papel que fosse inocente
e lógico. Não, nunca em nenhum momento desde a hora que você voltou de lá. Você nunca
mencionou nenhum de seus professores, nenhum de seus colegas, nem a menor coisa que lhe
tivesse acontecido lá. Nunca, pequeno Miles não, nunca me deu um traço do que pudesse
ter-lhe acontecido no colégio. Portanto, pode imaginar como estou no escuro. Até que falou,
daquele jeito, hoje cedo, não tinha, desde a primeira vez em que lhe vi, feito a mais vaga
referência que fosse a nada de sua vida anterior. Você parecia aceitar perfeitamente o
presente. Era extraordinário como minha certeza absoluta de sua precocidade secreta (ou
como quer que eu possa denominar o veneno de uma influência a que só me referia por meias
palavras) fazia com que ele, apesar do leve sopro de sua perturbação interior, parecesse tão
acessível como uma pessoa mais velha impunha-o a mim como se fossemos intelectualmente
iguais. Eu pensei que você quisesse continuar a ser como você é.
Tive a impressão de que, ao ouvir isso, ficou um pouco ruborizado. De qualquer
modo, à maneira de um convalescente um pouco fatigado, balançou a cabeça languidamente.
Eu não quero. Eu quero é ir-me embora.
Está cansado de Bly?
Oh, não, eu gosto de Bly.
Bem, então... ?
Oh, a senhorita sabe o que um menino quer!
Senti que não sabia tão bem como ele, e busquei um refúgio temporário. Você quer
ir ficar com seu tio?
De novo, ouvindo isso, com seu doce rostinho irônico, ele mexeu-se no travesseiro.
Ah, a senhorita não vai conseguir se livrar com essa!
Fiquei em silêncio um pouquinho, e penso que fui eu, nesse momento, quem mudou
de cor. Meu querido, eu não estou querendo me livrar!
Não pode, mesmo que queira. Não pode, não pode! ele exclamou, com os belosolhos fitos em mim. Meu tio virá, e vocês terão que arrumar as coisas direitinho.
Se nós o fizermos, respondi com certo espírito, pode estar certo que será para
levar você embora.
Bem, não compreende que é para isso mesmo que eu estou me preparando? A
senhorita terá que contar a ele contar que foi negligente: terá que contar a ele um monte de
coisas!
A exultação com que disse isso ajudou-me de algum modo, naquele momento, a
procurar tirar dele um pouco mais. E quantas coisas você terá que lhe contar, Miles? Ele na
certa lhe fará perguntas!
Refletiu. É possível. Mas, que coisas?
As que você nunca me contou. Para que ele possa decidir o que fazer com você. Ele
não pode lhe mandar de volta para lá.
Oh, eu não quero voltar, mesmo!, interrompeu. Quero um ambiente novo.
Ele disse isso com serenidade admirável, com uma satisfação em que nada havia de
condenável; e sem dúvida era esse tom o que mais sugeria para mim a pungência, a
anormalidade da tragédia infantil que seria a sua volta ao colégio ao fim de três meses com
toda essa bravata e ainda mais desonra. Oprimiu-me, então, a certeza de que eu não seria mais
capaz de suportar aquilo, e não me contive mais. Lancei-me sobre ele e, na ternura de minha
compaixão, abracei-o. Meu pequeno querido, meu pequeno querido...!
Meu rosto estava colado ao dele, e ele me deixou beijá-lo, considerando a efusão
com bom-humor indulgente. E aí, minha velha senhora?
Não há nada nada mesmo que você queira me contar?
Ele recuou um pouco, deixando o olhar vagar sobre a parede e ficou com a mão
erguida para olhar, como fazem as crianças enfermas. Eu lhe contei eu lhe contei hoje de
manhã.
Oh, eu sentia por ele! Que você quer apenas que eu não o aborreça?
Ele olhou-me mais detidamente, como que reconhecendo que eu finalmente o
entendera; então respondeu, sempre gentil: Que me deixe em paz.
Havia nessa resposta um toque peculiar de dignidade, algo que me fez soltá-lo,
embora, enquanto lentamente me levantava, ainda me demorasse ao seu lado. Deus sabe que
nunca desejei importuná-lo, mas senti, depois disso, que simplesmente dar as costas a ele seria
abandoná-lo ou, para ser mais verdadeira, perdê-lo. Há pouco comecei uma carta para o seu
tio, disse.
Bem, então, termine-a!
Esperei um minuto. O que aconteceu antes?
Ergueu os olhos novamente para mim. Antes de quê?
Antes de você voltar. E antes da sua ida.Permaneceu em silêncio por um momento, mas continuou a fitar-me. O que
aconteceu?
O som de suas palavras, no qual me pareceu ter captado pela primeira vez um
pequeno tremor de aprovação consciente, me afetou fez com que eu caísse de joelhos ao
lado da cama e agarrasse mais uma vez a oportunidade de possuí-lo. Querido Miles, querido
Miles, se você soubesse como eu quero ajudá-lo! É só isso, nada mais que isso o que quero, e eu
preferiria morrer a lhe causar algum sofrimento ou lhe fazer algum dano morrer a ferir um fio
que fosse de seus cabelos. Querido Miles continuei, mesmo correndo o risco de ir muito
longe Eu só quero que você me ajude a salvá-lo!. Mas soube imediatamente que havia me
excedido. A resposta ao meu apelo foi instantânea, mas veio na forma de um pé-de-vento e um
calafrio, uma rajada de ar gelado e um tremor no quarto tão grande como se, sob efeito do
vendaval, os gonzos das janelas estalassem. O menino soltou um longo grito estridente que,
confundindo-se com o resto do estrépito, poderia ser tomado, indistintamente, embora eu
estivesse tão próxima a ele, por uma nota de júbilo ou de terror. Fiquei de pé rapidamente e
tomei consciência da escuridão. Assim ficamos por um momento, enquanto eu, lançando o
olhar pelo quarto, vi que as cortinas estendidas estavam imóveis e a janela firmemente fechada.
Ora, a vela se apagou!, então exclamei.
Fui eu quem a soprou, querida! respondeu Miles. CAPÍTULO 18
No dia seguinte, depois das aulas, a Senhora Grose encontrou um momento para
perguntar-me baixinho: Então, a senhorita escreveu?
Sim eu escrevi. Mas não acrescentei naquele momento que a carta, selada e
endereçada, continuava no meu bolso. Haveria tempo suficiente para enviá-la antes que o
mensageiro fosse à aldeia. Entrementes, tinha havido, da parte de meus alunos, uma manhã
brilhante e exemplar como nenhuma outra. Era exatamente como se ambos tivessem decidido,
de coração, apagar os indícios de qualquer atrito recente que pudesse ter ocorrido.
Desempenharam estonteantes proezas em aritmética, elevando-se muito além de meu fraco
alcance, e perpetraram, com o espírito mais animado que nunca, peças geográficas e
históricas. Era visível em Miles a particular maneira com que ele parecia, naturalmente, querer
demonstrar que podia sobrepujar-me com facilidade. Esse menino, na minha memória, vive
ainda num cenário de beleza e miséria que as palavras não conseguem traduzir; havia uma
distinção toda própria em cada impulso que ele revelava; nunca houve uma pequena criatura
natural, toda composta de franqueza e liberdade para um olhar não iniciado, que fosse assim
tão engenhosa e tão extraordinariamente cavalheiresca. Eu tinha que ficar em guarda
perpétua contra o impulso de me deixar deslumbrar pela contemplação dentro da qual minha
visão experiente me traíra; controlar a facilidade com que caía em olhares de admiração
gratuita e suspiros desanimados, pois que, com os últimos, eu constantemente abordava e
desistia de entender o enigma do que poderia ter feito esse pequeno gentleman para merecer
um tal castigo. Dizia a mim mesma que, pelo negro prodígio que eu bem conhecera, a
imaginação de todo mal abrira-se totalmente para ele: todo o senso de justiça que havia em
mim palpitava dolorosamente na procura da prova de que esse mal havia florescido em algum
ato concreto.
De todo modo, nunca tinha sido tão pouco cavalheiro que quando, depois de nosso
jantar antecipado nesse dia tenebroso, ele se aproximou de mim e perguntou-me se não
gostaria que, por uma meia hora, me executasse alguma música. David tocando para Saul não
mostraria um senso de ocasião mais refinado. Foi literalmente uma encantadora exibição de
tato, de magnanimidade, e equivalia quase a dizer sem reservas: Os verdadeiros cavaleiros
sobre os quais apreciamos ler nunca levam longe demais uma vantagem. Sei o que a senhorita
quer dizer agora: quer dizer que para ser deixada em paz e não vigiada deixará de
espionar-me e preocupar-se comigo, não me manterá tão por perto, deixará que eu vá e
venha à vontade. Bem, eu venho, como vê mas, não vou! Haverá tempo de sobra para que
eu possa fazê-lo. Fico realmente deleitado com sua companhia, e quero apenas lhe provar que
lutava por uma questão de princípio. Pode-se imaginar se eu resisti a esse apelo ou deixei de
acompanhá-lo novamente, de mãos dadas, até a sala de estudos. Ele sentou-se ao velho piano
e tocou como nunca tinha tocado; e se houver os que digam que era melhor que estivesse
jogando futebol, responderei apenas que concordo com eles. Porque, ao fim de um tempo que,
sob a influência dele eu cessara de sentir passar, levantei-me com a estranha sensação de haver
literalmente dormido em serviço. Foi depois de lanchar, e junto à lareira da sala de estudos, e
eu ainda não tinha, na verdade, dormido: fizera na verdade uma coisa pior tinha esquecido.Onde, nesse tempo todo, tinha ficado Flora? Quando coloquei a pergunta para Miles, tocou
um pouquinho mais antes de responder, e por fim disse apenas: Ora, minha querida, como
posso eu saber? e ainda por cima rompeu numa gargalhada satisfeita, a qual, logo a seguir,
como que fazendo uma espécie de acompanhamento vocal, emendou com uma canção
incoerente e extravagante.
Subi direto para meu quarto, mas sua irmã não estava lá; depois, antes de descer,
verifiquei vários outros. Como não estava em parte alguma por ali, certamente devia estar com
a Senhora Grose, a quem, tranquilizada pela ideia, fui procurar. Encontrei-a onde a encontrara
na noite anterior, mas ela recebeu minha pergunta com um ar de alheia e assustada ignorância.
Tinha apenas suposto que, depois do repasto, eu saíra com ambas as crianças; no que estava
inteiramente correta, porque essa fora a primeira vez que eu permitira que a menininha ficasse
fora de minha vista sem alguma providência especial. Naturalmente, achei que ela devia estar
com as empregadas, de modo que o imediato a fazer era procurá-la sem dar um ar de alarme.
Planejamos a coisa prontamente entre nós; mas quando, depois de dez minutos e em
obediência ao plano, nos reencontramos no hall, foi apenas para relatar-nos mutuamente,
após inquirições reservadas, que tínhamos ambas falhado e não a encontráramos. Por um
minuto ali, fora de observação, trocamos nossos mudos sustos, e eu senti com que alto
interesse a minha amiga me devolveu tudo que eu já tinha lhe transmitido.
Deve estar lá em cima, ela disse num dos quartos que a senhorita não verificou.
Não; ela está longe. Eu já tinha compreendido. Ela saiu.
A Senhora Grose ficou surpresa. Sem chapéu?
Eu, naturalmente, também estava perplexa. Aquela mulher não anda sempre sem
chapéu?
Flora está com ela?
Está com ela!, declarei. Precisamos achá-las.
Minha mão estava no ombro de minha amiga, mas, naquele momento, confrontada
com a seriedade da coisa, ela deixou de responder à minha pressão. Ao contrário, ela só se
comunicava, ali, com sua própria inquietação. E onde está o patrãozinho Miles?
Oh, ele está com Quint. Estão lá na sala de estudos.
Por Deus, senhorita! Minha visão, eu estava certa e, portanto, meu próprio tom
nunca tinha atingido tamanha segurança.
O truque foi feito, continuei; eles atingiram sucesso em seu plano. Ele achou o jeito
mais divino de me manter imóvel enquanto ela fugia.
Divino?, a Senhora Grose repetiu, desconcertada.
Infernal, que seja!, eu retruquei quase alegremente. Ele também arranjou um jeito
de escapar. Mas, a senhora venha comigo!
Ela lançou um olhar desesperado para o andar superior. A senhorita vai deixá-lo...?Com Quint por tanto tempo? Sim não me importa, agora.
Ela sempre terminava, nesses momentos, por pegar a minha mão, e dessa maneira
conseguia ainda me deter. Mas depois de ficar boquiaberta por um instante com a minha
repentina resignação, perguntou ansiosamente: Por causa da carta?
Como resposta, rapidamente apalpei a carta, tirei-a do bolso, mostrei-a, e depois, e
livrando-me da mão, fui em frente e coloquei-a sobre a grande mesa do hall. Luke a levará,
disse, ao voltar. Atingi a porta da frente e abri-a; já estava nos degraus.
Minha companheira ainda hesitava: a tempestade da noite e da manhã tinha cessado,
mas a tarde estava úmida e cinzenta. Desci para o passeio enquanto ela permanecia junto à
porta. Vai sair sem nada?
Que me importa, se a menina também saiu deste jeito? Não posso perder tempo me
vestindo, exclamei, e se a senhora quer fazê-lo, pois bem, já vou indo. Enquanto isso, dê uma
olhada lá no andar superior.
Com eles lá? Oh, ao ouvir isso, a mulher mais que depressa me alcançou! CAPÍTULO 19
Fomos diretamente para o lago, como era chamado em Bly, e ouso dizer corretamente
chamado, embora reflita agora que podia ser não mais que um lençol de água menos notável
do que parecia aos meus olhos não viajados. Meu conhecimento de lagos era pequeno, e
aquele de Bly, em todos os casos, nas poucas ocasiões em que, protegida pelos meus alunos,
consenti em desafiar a sua superfície no velho barco de fundo chato que estava lá atracado
para nosso uso, impressionou-me tanto pela extensão quanto pelas águas agitadas. O lugar
usual de embarcação era a metade de uma milha distante da casa, mas eu tinha uma convicção
profunda de que Flora, estivesse onde estivesse, não estaria por perto. Ela não tinha
escapulido de mim nenhuma vez para qualquer pequena aventura, e, desde o dia daquela
especial que eu compartilhara com ela às margens do lago, fiquei conhecendo, em nossas
caminhadas, o lado para o qual ela parecia mais inclinada a seguir. Era por causa desse
conhecimento que eu dava agora aos passos da Senhora Grose uma direção tão precisa um
rumo que ela imediatamente percebeu, opondo-lhe uma resistência que me revelou que ela
fora de novo enganada. Está indo para a água, senhorita? acha que ela está em ... ?
Ela pode estar, embora a profundeza não seja grande em nenhum ponto, creio. Mas
o que me parece mais provável é que ela esteja no lugar de onde, no outro dia, vimos juntas o
que lhe contei.
Naquela vez que ela fingiu não ver...?
Com aquele espantoso autodomínio! Sempre tive certeza de que ela queria voltar
para lá sozinha. E agora o seu irmão arranjou a coisa direitinho para ela.
A Senhora Grose continuava no mesmo lugar onde tinha parado. A senhorita supõe
que as crianças conversam sobre eles?
Eu tinha uma tal confiança para responder a isso! Dizem coisas que, se pudéssemos
ouvir, ficaríamos simplesmente apavoradas.
E se ela está lá... ?
Sim?
Então a Senhorita Jessel também estará?
Sem dúvida. A senhora verá.
Oh, muito obrigada!, minha amiga exclamou, plantando-se tão firmemente no lugar
que eu, ao notá-lo, fui em frente sem contar com ela. No momento em que cheguei ao lago,
contudo, ela estava bem atrás de mim, e eu compreendi que, em sua apreensão, ela sentia que,
acontecesse o que me acontecesse, na minha companhia bem exposta ela correria perigo
menor. Soltou um gemido de alívio quando por fim chegamos perto da maior parte da água
sem obter um só vislumbre da criança. Não havia nenhum indício de Flora naquele lado mais
próximo da margem onde a observara daquela vez com tanto assombro, e nada também no
lado oposto, onde, preservado por uma orla de aproximadamente vinte jardas, um capão de
mato entrava pela água. O lago, de forma oblonga, tinha tão pouca largura em relação ao seucomprimento que, com seus extremos fora de vista, poderia ser tomado por um riacho.
Olhávamos para a extensão deserta, e senti o que sugeriam os olhos de minha amiga. Sabia o
que ela queria me dizer e repliquei movendo a cabeça negativamente.
Não, não, espere! Ela tomou o barco.
Minha companheira fitou o lugar de atracação, que estava vazio, e lançou outro olhar
sobre o lago. Então, onde ele está?
Não conseguirmos vê-lo é a mais forte das provas. Ela o usou para atravessar e,
depois, fez o que pôde para escondê-lo.
Tudo isso sozinha aquela menina?
Ela não está sozinha, e nesses momentos não é uma menina: ela é uma mulher velha,
velha. Olhei atentamente para toda a margem visível enquanto a Senhora Grose se afundava
novamente, diante do elemento estranho que eu lhe oferecia, numa de suas atitudes de
submissão; depois, sugeri que o barco poderia perfeitamente estar num pequeno refúgio
formado por um dos recessos do lago, uma reentrância disfarçada, pelo lado mais próximo,
por um avanço da margem e por uma moita de arbustos que crescia junto à água.
Mas, se o barco está lá, onde diabos poderá estar ela? minha companheira
perguntou ansiosamente.
É precisamente o que devemos descobrir. E comecei a andar depressa.
Rodeando todo o lago?
Certamente, longe que seja. Não vai nos tomar uns dez minutos, mas é longe o
bastante para fazer com que ela preferisse não ir a pé. Ela atravessou-o diretamente.
Senhor!, exclamou minha amiga novamente; o encadeamento de minha lógica era
sempre excessivo para ela. Fê-la grudar em meus calcanhares outra vez, e quando já tínhamos
já percorrido metade do caminho um processo tortuoso, cansativo, por um terreno cheio de
irregularidades e por uma senda em que a vegetação muito alta era um obstáculo dei-lhe
uma trégua para respirar. Amparei-a com um braço reconhecido, assegurando-a que podia ser
de grande ajuda para mim; isso nos reanimou, de modo que dentro de poucos minutos,
atingimos um ponto de onde constatamos que o barco estava mesmo onde eu o supusera. Fora
deixado intencionalmente tanto quanto possível fora de vista e estava amarrado a uma das
estacas de uma cerca que, bem ali, vinha até à beira do lago valendo como ajuda para o
desembarque. Reconheci, quando olhei para o par de curtos e grossos remos, tirados com
segurança da água, a natureza prodigiosa do que seria uma proeza para uma menininha; mas, a
essa altura, eu já tinha vivido muitos assombros e perdido o fôlego por razões muito mais
intensas. Havia um portão na cerca, pelo qual nós passamos, e isso nos levou, depois de um
intervalo mínimo, para campo aberto. Então, exclamamos juntas, imediatamente: Lá está
ela!
Flora, a pouca distância de nós, estava sobre a relva e sorria como se sua travessura
agora tivesse se completado. Contudo, o que fez a seguir foi abaixar-se e apanhar, como se isso
fosse toda a razão pela qual se encontrava ali um grande e feio ramalhete de fetos murchos.Imediatamente tive a certeza de que ela saíra do meio do mato. Esperou por nós, sem dar um
único passo, e me dei conta da rara solenidade com que nos aproximamos dela. Ela sorria e
sorria, e nos olhamos; mas tudo foi feito num silêncio que, a essa altura, se tornara ameaçador.
A Senhora Grose foi a primeira a quebrar o encanto: ajoelhou-se e, encostando a criança no seu
peito, estreitou num longo abraço o corpo terno e pequenino. Enquanto essa silenciosa efusão
durou, eu fiquei apenas observando o que fiz com mais decisão assim que percebi o rosto de
Flora me espiando por sobre os ombros de minha companheira. Era sério agora a agitação
alegre o deixara; mas isso fortalecia a angústia com que naquele momento eu invejava a
simplicidade da relação da Senhora Grose com a menina. Mas, nesses momentos, nada mais se
passou entre nós exceto que Flora deixou cair no chão seu ridículo ramalhete de fetos. O que
eu e ela tínhamos virtualmente dito uma a outra era que os pretextos eram inúteis agora.
Quando a Senhora Grose finalmente levantou-se, continuou a segurar a mão da menina, de
modo que as duas estavam ainda diante de mim; e a singular reticência dessa comunhão era
ainda mais evidenciada pelo olhar franco que ela me lançou. Serei enforcada, dizia o olhar,
se me fizerem falar!
Foi Flora que, olhando para mim com cândido espanto, falou primeiro. Ela estranhara
nossa cabeça descoberta. Ora, onde estão as suas coisas?
E onde estão as suas, minha querida?, respondi prontamente.
Ela tinha recuperado sua alegria, e pareceu tomar essa resposta como suficiente. E
onde está Miles?, continuou.
Havia algo na pequena desfaçatez que demonstrava com isso que acabou comigo:
essas três palavras ditas por ela foram, num lampejo fulgurante como o desembainhar de uma
espada, a gota d´água da taça que, por semanas e semanas, eu segurara alta e cheia até às
bordas e que agora, mesmo antes de falar, sentia transbordar em dilúvio. Eu responderei se
você me disser surpreendi-me dizendo, e ouvindo o tremor com que o dizia.
Bem, o quê?
A ansiedade da Senhora Grose me fulminava, mas era tarde demais agora, e eu fiz a
pergunta delicadamente. Onde está a Senhorita Jessel, minha querida? CAPÍTULO 20
Tal como no cemitério da igreja com Miles, a coisa toda desabou sobre nós. Por mais
que eu levasse em conta que esse nome nunca havia sido pronunciado em nosso convívio, o
rápido, dolorido clarão com que o rosto da menina o recebeu fez com que minha violação do
silêncio se assemelhasse a um espatifar de vidraça. Juntou-se a isso o brado de intervenção,
como se para atenuar o impacto, com que a Senhora Grose, no mesmo instante, pronunciou-se
contra minha violência o grito de uma criatura assustada, ou melhor, ferida, o qual, por sua
vez, dentro de poucos segundos, foi completado por um ofego de minha parte. Agarrei o braço
de minha companheira. Ela está ali, ela está ali!
A Senhorita Jessel estava diante de nós na margem oposta exatamente como ficara na
outra vez, e eu recordo, estranhamente, como a primeira sensação que aquilo me produziu, ter
tido um estremecimento de alegria por contar finalmente com uma prova. Ela estava lá para a
pobre e apavorada Senhora Grose, mas estava lá muito mais por Flora; e nenhum momento de
meu tempo monstruoso foi talvez tão extraordinário quanto esse em que conscientemente
dirigi a ela com a sensação de que, embora não passasse de um pálido e ávido demônio,
poderia captá-la e entendê-la uma inarticulada mensagem de agradecimento. Ela se
plantava ereta no lugar que eu e minha amiga tínhamos há pouco deixado, e não havia, no
longo alcance de seu desejo, nenhum milímetro de sua maldade que não se irradiasse. Essa
primeira nitidez de visão e emoção foi coisa de poucos segundos, durante os quais o fato de a
Senhora Grose olhar como que ofuscada para onde eu apontava atingiu-me como um sinal
infalível de que ela finalmente também via, assim como fez com que meus olhos se
precipitassem sobre a menina. A revelação que tive então da maneira como Flora era afetada
por aquilo me alarmou, na verdade, muito mais do que me alarmaria senti-la simplesmente
agitada, pois um terror direto era naturalmente o que eu esperava agora. Preparada e bem em
guarda como em verdade nossa busca a fizera ficar, ela reprimia qualquer manifestação que
pudesse traí-la; portanto, fiquei abalada ali pela percepção clara de que ela se portava de uma
maneira que eu não previra. Vê-la assim, sem um único tremor no pequeno rosto rosado, sem
nem mesmo fingir dar uma olhada na direção do fenômeno que eu anunciara, mas, ao
contrário, dirigindo a mim uma expressão de dura, tranquila seriedade, uma expressão
absolutamente nova e sem precedentes que parecia uma leitura e uma acusação e um
julgamento de minha atitude esse foi um golpe que de um algum modo a transformou na
própria presença que podia me fazer recuar. Recuei, embora minha certeza de que ela tinha
visto tudo nunca foi maior do que naquele momento, e, na necessidade premente de defender-
me, invoquei com paixão o seu testemunho. Ela está lá, sua coisinha infeliz lá, lá, lá, e você
a vê tão bem como me vê aqui! Há pouco dissera à Senhora Grose que nesses momentos ela
não era uma criança, mas uma mulher velha, velha, e essa descrição não poderia ser mais
claramente confirmada do que pela maneira com a qual, em resposta a meu pedido, ela
simplesmente me mostrou, sem uma concessão, sem uma admissão de seus olhos, uma
fisionomia de profunda e crescente reprovação, que se fixou por completo. A essa altura, eu
estava se posso resumir o que acontecia mais apavorada com o que podia denominar a sua
maneira do que com qualquer outra coisa, embora, ao mesmo tempo, tivesse percebido que aSenhora Grose também, e muito estranhamente, já não era apoio com que eu pudesse contar.
Minha idosa companheira, no momento seguinte, apagou de seu rosto tudo que não fosse um
afogueamento e um protesto alto, indignado, um jorro de intensa desaprovação. Que modos
pavorosos, senhorita! Onde diabos a senhorita vê alguma coisa?
Eu só conseguia agarrar o seu braço mais nervosamente, porque, mesmo enquanto ela
falava, a hedionda e patente presença lá estava, sem sofrer obscurecimento e sem recuar.
Tinha durado um minuto, e durara enquanto eu continuava, agarrando a minha companheira,
confiando nela e mostrando a aparição a ela, insistindo com minha mão apontada. Você não
a vê exatamente como nós a vemos? quer dizer que não a vê agora agora? Ela é tão clara
como um fogaréu! Olhe apenas, caríssima, olhe ...! Ela olhou, do mesmo modo que eu o fazia, e
deu-me, com um gemido profundo de negação, repulsa, compaixão uma mistura de sua
pena com seu alívio por ter escapado a ver uma sensação, comovente para mim mesmo
então, de que teria me apoiado se pudesse. Eu bem devia estar necessitada de apoio, pois, com
o sopro áspero da prova de que seus olhos estavam inapelavelmente cegos, senti que minha
situação se esboroava horrivelmente, senti e vi minha lívida predecessora, lá de seu posto,
forçar a minha derrota, e fiquei ciente, mais que tudo, daquilo com que teria de lidar a partir
daquele momento ao constatar a assustadora atitude da pequena Flora. A Senhora Grose
aderiu imediata e violentamente a essa atitude, rompendo, mesmo diante de minha sensação
de fracasso consumado, numa expressão de fabuloso triunfo pessoal, ofegando e oferecendo à
menina palavras tranquilizadoras.
Ela não está lá, senhorinha, e ninguém está lá e você nunca viu nada, meu doce!
Como poderia ver a pobre Senhorita Jessel quando ela está sem dúvida morta e enterrada?
Nós sabemos, não sabemos, amor? ela apelava, enganando-se voluntariamente, à criança.
Tudo não passa de simples engano, de preocupação sem sentido, de brincadeira e vamos
para casa o mais rápido possível!
Nossa companheira, diante disso, respondeu com uma estranha, rápida afetação de
dignidade, e com a Senhora Grose a seus pés, ambas ficaram unidas contra mim numa espécie
de oposição dolorosa. Flora continuou a me fixar com sua pequena máscara de reprovação, e
naquele mesmo momento pedi a Deus para me perdoar por ter achado que, enquanto ela se
agarrava fortemente à saia de nossa amiga, sua incomparável beleza infantil se apagara,
desaparecera completamente. Eu já o disse ela estava literal e hediondamente implacável;
ela se tornara comum e quase feia. Eu não sei o que a senhorita quer dizer. Eu não vejo
ninguém. Eu não vejo nada. Nunca vi. Eu acho que a senhorita é cruel. Eu não gosto da
senhorita! Então, depois desse desabafo, que podia ter sido feito por alguma atrevida
menininha de rua, ela apertou a Senhora Grose com mais força ainda e enterrou o seu terrível
rostinho na saia da mulher. Nessa posição ela emitiu um lamento quase furioso. Leve-me
embora, leve-me embora oh, leve-me para longe dela!
De mim?, eu perguntei, ofegante.
Da senhorita sim da senhorita!, ela gritou.
Mesmo a Senhora Grose olhou-me com desânimo; enquanto isso, eu nada tinha afazer senão entrar em comunicação outra vez com a figura que, na margem oposta, sem um
movimento, tão rigidamente atenta como, se no intervalo, captasse toda a nossa conversa,
estava lá, bem viva para a minha desgraça como não o estivera para meu proveito. A menina
infeliz tinha falado exatamente como se recebesse de uma fonte externa suas pequenas
palavras ferinas, e eu não pude, portanto, no completo desespero de tudo quanto tinha que
aceitar, fazer mais que balançar minha cabeça tristemente diante dela. Se eu algum dia
duvidei, toda a minha dúvida desapareceria agora. Tenho vivido com essa verdade miserável, e
agora tudo que ela fez foi fechar-se em torno de mim. É claro que já perdi você: eu interferi, e
você achou sob orientação dela nesse ponto, encarei de novo, do outro lado do lago,
nossa testemunha infernal o meio mais fácil e perfeito de sair disso. Fiz meu melhor, mas
perdi você. Adeus. Para a Senhora Grose, emiti um imperativo, um quase frenético Vá, vá!
diante do qual, com infinita aflição, mas silenciosamente agarrada à menininha e claramente
convencida, a despeito de sua cegueira, de que algo medonho ocorrera e algum colapso
desconhecido nos engolfara, ela recuou, retomando o caminho pelo qual viera, com um andar
o mais ligeiro possível.
Do que primeiro aconteceu quando fiquei sozinha depois eu não tenho memória
subsequente. Sabia apenas que ao fim de, digamos, um quarto de hora, uma umidade e uma
aspereza fragrantes, arrepiando e trespassando a minha dor, fizeram com que eu
compreendesse que devia ter-me atirado de bruços sobre o chão e dado vazão a uma aflição
selvagem. Possivelmente ficara estendida lá por longo tempo e chorado e soluçado, porque
quando ergui minha cabeça o dia estava quase acabado. Levantei-me e olhei por um momento,
através do crepúsculo, para o lago cinzento e sua margem vazia, assombrada, e empreendi, de
volta para casa, minha árida e penosa caminhada. Quando cheguei ao portão na cerca o barco,
para a minha surpresa, não estava mais ali, de modo que fiz uma nova reflexão sobre o
domínio extraordinário que Flora tivera da situação. Ela passara aquela noite, pela mais
tácita, e devo acrescentar, se a palavra não se constituísse uma nota tão grotesca, pela mais
feliz das combinações, com a Senhora Grose. Não vi nenhuma das duas em meu retorno, mas,
por outro lado, como se por uma ambígua compensação, vi Miles por bastante tempo. Eu o vi
não posso usar outra frase tantas vezes que era como se fosse mais do que nunca o vira.
Nenhuma noite que eu passara em Bly tivera a portentosa qualidade dessa; a despeito disso e
também a despeito dos mais fundos abismos de consternação que abriu sob meus pés havia
literalmente, nas horas do declínio, uma tristeza extraordinariamente doce. Ao chegar em
casa, nem me preocupei em procurar o menino; fui diretamente para o meu quarto para trocar
de roupa e para tomar ciência, num simples relance de olhar, de muitos testemunhos materiais
da ruptura com Flora. Seus pequenos pertences tinham sido todos removidos. Quando mais
tarde, junto à lareira da sala de estudos, a empregada habitual me serviu o chá, não cedi, com
respeito ao meu outro aluno, a nenhuma espécie de inquirição. Ele tinha sua liberdade agora
e podia tê-la até o fim! Bem, ele a tinha; e ela consistia naquele momento ao menos
parcialmente em poder entrar perto de oito da noite e sentar-se ao meu lado em silêncio. Na
remoção do serviço de chá, eu apagara os candelabros e puxara minha cadeira para mais
perto do fogo: tinha consciência de uma espécie de frio mortal e me sentia como se nunca mais
fosse possível me aquecer. Assim, quando ele apareceu, estava sentada na penumbra entretidacom meus pensamentos. Ele parou um instante perto da porta como se para me olhar melhor; e
então feito quisesse que eu compartilhasse tais pensamentos com ele veio ao outro lado da
lareira e afundou-se num assento. Ficamos sentados ali em absoluto silêncio; contudo, eu
sentia que ele queria ficar comigo. CAPÍTULO 21
Antes que um novo dia tivesse irrompido completamente em meu quarto, meus olhos
se abriram para deparar com a Senhora Grose, que se aproximara de minha cama com notícias
ainda piores. Flora estava com uma febre tão alta que possivelmente teria sido acometida de
alguma doença; a menina passara uma noite de inquietação extrema, uma noite agitada acima
de tudo por medos que tinham como motivo não a sua primeira, mas sim, e totalmente, a sua
segunda preceptora. Não era contra a possível reentrada em cena da Senhorita Jessel que ela
protestava era patente e apaixonadamente contra a minha. Ergui-me de pronto,
naturalmente, e com muitas perguntas a fazer; ademais, era evidente que minha amiga se
preparara para um novo confronto. Ela persiste em afirmar para a senhora que não viu coisa
alguma nem ontem nem nunca?
O embaraço de minha amiga era, na verdade, bem grande. Ah, senhorita, não é uma
questão de eu poder insistir com ela nesse assunto! E, devo dizer, parece que não é também
necessário que eu o faça. A coisa tomou conta dela completamente, tornou-a uma mulher
muito velha.
Oh, eu a vejo perfeitamente daqui. Ela ficou ofendida, como se fosse a mais elevada
personagem infantil deste mundo, com a dúvida que lancei sobre a sua palavra, como se eu
ferisse a sua própria dignidade. A Senhorita Jessel de fato ela! Ah, sim ela é muito digna, a
danadinha! A impressão que ela me deu ontem, asseguro à senhora, foi a mais estranha de
todas; foi muito além de qualquer outra. Eu pus o dedo na ferida! Ela não vai falar comigo
nunca mais.
Hediondo e obscuro como era, o assunto deixou a Senhora Grose em silêncio; então,
ela confirmou meu ponto de vista com uma franqueza que, eu tinha certeza, abrigava muitas
outras coisas. Acho que ela não vai mesmo falar, senhorita. Ela está de fato muito magoada!
E essa mágoa eu acrescentei é praticamente a razão da febre que ela está
apresentando.
Oh, era a razão, eu podia ler no rosto da minha visitante, e nada além disso! Ela me
pergunta a cada três minutos se a senhorita não vai aparecer.
Compreendo compreendo. Eu, por meu lado, trazia em mim muito mais do que
dizia. Ela disse à senhora desde ontem exceto para rejeitar que tivesse relação com uma
coisa tão terrível alguma outra coisa sobre a Senhorita Jessel?
Nada, senhorita. E é claro que a senhorita sabe, minha amiga acrescentou, Lá no
lago, consegui tirar dela apenas que não havia ninguém.
Certo! E, naturalmente, é isso o que ela diz ainda.
Não vou contradizê-la. Que mais posso fazer?
Nada neste mundo! A senhora está lidando com a pessoinha mais inteligente que
existe. Eles fizeram dessas crianças me refiro aos seus dois amigos ainda mais inteligentes
do que já eram por natureza; havia uma matéria-prima maravilhosa com que trabalhar! Floratem agora sua mágoa, e vai levá-la até o fim.
Sim, senhorita; mas até que fim?
Ora, delatar-me ao seu tio. Ela vai pintar-me para ele como a mais baixa das
criaturas...!
Estremeci diante da cena que se apresentava como que diante do rosto da Senhora
Grose; por um momento, pareceu-me que ela nitidamente já visualizava a sobrinha e o tio
juntos. E ele que tem tão elevado conceito da senhorita!
Ele tem um jeito bem estranho é o que me ocorre agora, eu dei uma risada, ... de
demonstrá-lo. Mas isso não importa. O que Flora quer, naturalmente, é livrar-se de mim.
Minha companheira, corajosa, respondeu afirmativamente. Não quer nunca mais
olhar para a senhorita.
De modo que a senhora veio aqui agora, eu perguntei para que eu vá embora o
mais rápido possível? Antes que ela tivesse tempo de responder, contudo, eu a dominei.
Tenho uma ideia melhor o resultado de minhas reflexões. Eu ir-me embora pareceria a coisa
certa, e no domingo eu estive terrivelmente perto disso. Mas, não vai funcionar. É a senhora
quem deve ir. A senhora deve levar Flora.
Minha visitante, ouvindo isso, especulou. Mas, para onde neste mundo...?
Para longe daqui. Para longe dos dois. Agora, mais que tudo, para longe de mim.
Direto para o tio dela.
Apenas para que ela diga a ele...?
Não, não apenas para isso! Para deixar-me aqui, além disso, aplicando o meu
remédio.
Ela ainda não parecia compreender. E qual é o seu remédio?
Sua lealdade, para começar. Depois, a de Miles.
Ela olhou fixamente para mim. A senhorita acha que ele...?
Não pode se voltar contra mim, se tiver chance? Sim, eu me arrisco a pensar isso. Em
todo caso, quero tentar. Afaste-se com a irmã tão logo seja possível e deixe-me sozinha com
ele. Eu estava espantada comigo mesma pela presença de espírito que tinha em reserva, e
portanto um pouco desconcertada pelo modo com que ela, apesar do belo exemplo que eu
dava, ainda se mantinha hesitante. Há uma coisa a fazer, porém, eu continuei: antes de Flora
ir, eles não devem se encontrar nem por três segundos. Então, tornou-se claro para mim que,
a despeito do presumível isolamento em que Flora ficara depois de retornar do lago, já podia
ser tarde demais. A senhora quer dizer, perguntei ansiosamente, que eles já se
encontraram?
Ouvindo isso, ela ficou ruborizada. Ah, senhorita, eu não sou tão boba assim! Se fui
forçada a deixá-la três ou quatro vezes, foi de cada vez com uma das empregadas, e neste
momento, embora esteja sozinha, ela está muito bem fechada. E no entanto e no entanto!Havia coisas demais.
E no entanto o quê?
Bem, como está tão segura assim a respeito do pequeno gentleman?
Não estou segura de nada, exceto de que a senhora está aqui comigo. Mas, desde a
noite passada, tenho uma nova esperança. Eu acho que o menino quer se abrir comigo. Eu
acredito que coitadinho desse maravilhoso infeliz! ele quer falar. Ontem, perto da lareira e
em silêncio, ele ficou comigo por horas como se quisesse me dizer alguma coisa.
A Senhora Grose olhava fixamente, pela janela, o dia cinzento que começava a
firmar-se. E ele disse essa coisa?
Não, embora eu tivesse esperado e esperado, confesso que não, e não quebramos o
silêncio nem fizemos a mais leve insinuação à condição e ausência da irmã no beijo de
despedida. Pela mesma razão, continuei, não posso, se o tio vir Flora, consentir em que veja
o irmão sem que eu tenha dado a ele e principalmente porque tudo ficou tão ruim um
pouquinho mais de tempo.
Minha amiga mostrou-se, nesse terreno, mais relutante do que eu podia compreender.
Que quer dizer com mais tempo?
Bem, um dia ou dois para que eu possa esclarecer tudo. Ele então estará do meu
lado coisa de que a senhora pode avaliar a importância. Se ele nada revelar, eu terei apenas
fracassado, e a senhora, na pior das hipóteses, fará o que achar mais viável ao chegar à
cidade. Assim me posicionei diante dela, mas continuou por alguns momentos tão
insondavelmente embaraçada que de novo procurei ajudá-la a entender. A menos, é claro,
emendei, que a senhora não queira ir.
Vi que, por fim, o seu rosto se iluminava: ela estendeu-me sua mão como uma
garantia. Eu vou eu vou. Parto ainda nesta manhã.
Eu queria ser muito justa. Se a senhora por acaso deseja ainda esperar, darei um jeito
de Flora não me ver.
Não, não; estou preocupada com este lugar. Ela tem que sair daqui. Ela fitou-me
com olhos pesados, e deixou escapar o resto. Sua ideia é que é certa. Eu mesma, senhorita...
Bem?
Não posso ficar.
O olhar que ela me lançou ao dizer isso fez com que eu me animasse a sondá-la
esperançosamente. Quer dizer que, desde ontem, a senhora viu...?
Ela balançou sua cabeça com dignidade. Eu ouvi...!
Ouviu?
Da boca da menina horrores! Lá!, ela suspirou com um alívio trágico. Por minha
honra, senhorita, as coisas que ela diz...! Mas, a essa evocação, ela desmoronou; caiu, com um
soluço súbito, sobre meu sofá e, como já a vira fazer uma vez, deu vazão a todo o seudesespero.
Foi bem de outra maneira que eu, de minha parte, me manifestei. Oh, graças a Deus!
Ela levantou-se rapidamente, enxugando os olhos com um gemido. Graças a Deus?
Isso que a senhora disse vai me justificar!
Vai mesmo, senhorita!
Eu não podia ter desejado maior ênfase, mas ainda hesitava. Ela é tão horrível?
Vi na minha companheira que ela mal sabia como expressá-lo. É chocante,
realmente.
E a meu respeito?
A seu respeito, senhorita já que me pergunta. É muito além do que se poderia
esperar, partindo de uma jovenzinha; e eu não consigo imaginar onde ela pode ter
aprendido...
A pavorosa linguagem que usou para me atacar? Bem, eu posso!, interrompi com
uma risada que era sem dúvida bastante significativa.
Mas isso, na verdade, fez com que minha amiga ficasse ainda mais séria. Bem, talvez
eu também a devesse ter aprendido já que ouvi essa linguagem em algumas ocasiões no
passado! Ainda assim, não a suporto, a pobre mulher continuou enquanto olhava, com o
mesmo movimento, para o relógio no meu toucador. Mas preciso ir.
Eu a retive, contudo. Ah, se a senhora não pode suportá-la...!
Como poderei calar a menina, não é? Bem, fazendo exatamente isso: levando-a
embora daqui. Para bem longe daqui, ela continuou, longe dos dois...
Será que ela pode ficar diferente? Será que ela pode se libertar?, eu a agarrei, quase
com alegria. Então, apesar do que aconteceu ontem, a senhora acredita...?
Nessas coisas? A simples descrição delas, pela expressão de seu rosto, já não
precisava ser feita, e ela confessou-me, como antes nunca o fizera. Acredito.
Sim, foi uma alegria, e nós estávamos ainda unidas: se eu podia continuar com essa
certeza, pouco me importaria o que ainda acontecesse. Meu apoio diante do desastre seria o
mesmo que tinha sido quando, no início, precisara de confiança, e se minha amiga respondesse
por minha honestidade eu responderia por todo o resto. Quando ela já estava prestes a sair,
contudo, fiquei um pouco embaraçada. Naturalmente, há uma coisa me ocorreu agora
que preciso lembrar. Minha carta, dando o alarme, terá chegado à cidade antes que a senhora
chegue lá.
Percebia agora o quanto ela se debatera em rodeios e como isso chegara a ela só
depois de um grande esforço. Sua carta não estará lá. Sua carta nunca foi mandada.
Que aconteceu com ela?
Só Deus sabe! O patrãozinho Miles...Você quer dizer que ele a pegou?, perguntei, ofegante.
Ela hesitou bastante, mas por fim venceu sua relutância. Quero dizer que ontem,
quando voltava com Flora, vi que ela não estava onde a senhorita a pusera. Mais tarde eu
consegui perguntar ao Luke, e ele declarou que não a vira nem tocara nela. Diante disso,
trocamos apenas um de nossos olhares de profunda sondagem mútua, e foi ela quem deu
prumo a tudo concluindo, quase com alegria: A senhorita percebe!
Sim, percebo que se Miles a pegou, ele provavelmente a leu e destruiu.
E não percebe mais nada?
Eu a encarei por um momento com um sorriso triste. Me impressiona ver que dessa
vez os olhos da senhora estavam bem mais abertos que os meus.
De fato estavam, mas, para prová-lo, ela ainda ficava quase ruborizada. Descubro
agora o que ele deve ter feito na escola. E, em sua humilde perspicácia, ela fez um gesto de
desapontamento quase engraçado. Ele roubou!
Refleti um pouco procurava ser imparcial. Bem talvez.
Ela olhou-me como se estranhasse minha calma inesperada. Ele roubou cartas!
Ela não conseguia adivinhar as razões da minha calma, que era, afinal, apenas
superficial; então, expliquei-as como pude. Espero que tenha sido por um propósito melhor
que nesse caso! A carta que pus ontem na mesa, de todo modo, continuei vai lhe dar tão
pouca vantagem porque continha apenas um pedido de entrevista que ele deve já estar
envergonhado de ter ido tão longe por tão pouco, e o que ele devia ter em mente ontem à
noite devia ser, então, uma necessidade de confessar. Por um momento, pareceu-me que eu
dominara, que eu vira tudo. Deixe-nos, deixe-nos! eu já estava dizendo a ela, à porta,
apressando-a o quanto podia. Eu farei com que ele me conte. Ele vai me procurar vai me
confessar. Se ele confessar, será salvo. E se ele se salvar..
A senhorita também se salvará? A boa mulher beijou-me ao dizer isso, e eu aceitei
sua despedida. Eu a salvarei sem ele, se for preciso!, ela bradou, afastando-se. CAPÍTULO 22
Contudo, foi quando ela partiu e senti a sua falta no lugar que o aperto realmente
chegou. O que quer que eu tenha imaginado que seria ficar sozinha com Miles, percebi,
imediatamente, que aquilo me daria a medida. Nenhuma hora da minha estada em Bly foi tão
assaltada por apreensões como aquela em que desci para constatar que a carruagem, levando
embora a Senhora Grose e a menina, já tinha cruzado os portões. Agora eu estava, disse a mim
mesma, frente a frente com a tempestade, e por todo o resto do dia, enquanto lutava com
minha fraqueza, refleti que estava sendo extremamente ousada. O ambiente, agora, era muito
mais opressivo do que eu já conhecera; ademais, pela primeira vez, eu via no aspecto dos
outros empregados um confuso reflexo da crise. O que tinha acontecido, naturalmente, fizera-
os espantar; havia pouco que explicar, embora fizéssemos o que pudéssemos para isso, no
inesperado procedimento de minha companheira. As empregadas e os serviçais pareciam
estupefatos; o efeito disso em meus nervos foi um agravamento, até que vi que tinha a
necessidade de transformar aquilo numa ajuda positiva. Em resumo, foi exatamente por
agarrar o leme que evitei o naufrágio total; e ouso dizer que, para estar à altura do desafio,
tornei-me, naquela manhã, muito imponente e muito seca. Aceitei de bom grado a consciência
de que estava incumbida de grande responsabilidade, fazendo com que todos soubessem que,
deixada a mim mesma, eu poderia me revelar notavelmente firme. Vaguei com esse aspecto
pelas horas seguintes, por todo o lugar, e devia estar parecendo, não tenho dúvida, preparada
para qualquer ataque. Assim, para benefício de quem pudesse se interessar, eu desfilava de
modo magnífico com um coração angustiado.
A pessoa que pareceu menos interessada por minha atitude foi, até o jantar, o
próprio Miles. Minhas andanças pela casa não me deram, no intervalo, um vislumbre sequer do
menino, mas tendiam a tornar mais pública a mudança que houvera em nossa relação como
consequência de, no dia anterior, ao piano, em benefício de Flora, ele ter me mantido tão
fascinada e tapeada. A evidência dos fatos tinha naturalmente se escancarado devido ao
isolamento e à partida de Flora, e a própria mudança era agora anunciada claramente pela
nossa não observância do hábito de nos reunirmos na sala de estudos. Ele havia desaparecido
quando, na minha descida, eu abri sua porta, e soube lá embaixo que já fizera o seu desjejum
na presença de um par de empregadas com a Senhora Grose e sua irmã. Depois disso saíra,
como dissera, para um passeio; refleti que nada melhor que isso para indicar sua franca visão
da abrupta transformação de meu papel. O que ele permitiria agora que esse papel se tornasse
estava ainda por ser resolvido: havia um estranho alívio, em todo caso especialmente quanto
a mim em renunciar a uma pretensão. Se muito disso surgiu à tona, arrisco dizer com
bastante convicção que o que mais ficou evidente foi o absurdo de precisarmos prolongar a
farsa de que eu tinha ainda algo para ensinar-lhe. Salientava-se, por pequenos truques tácitos
nos quais ele mais que eu se encarregava de zelar por minha dignidade, que eu tinha tido que
apelar à sua ajuda para confrontá-lo no terreno de sua própria capacidade. De qualquer
modo, conseguira sua liberdade agora; eu não voltaria a tolhê-la; ademais, isso eu provara
amplamente quando, aproximando-se de mim na noite anterior na sala de estudos, eu não
fizera, quanto ao assunto da tarde que passara longe de casa, nenhuma pergunta ouinsinuação. Pelo momento, minhas outras ideias me ocupavam demais. No entanto, quando ele
por fim chegou, a dificuldade de pô-las em prática, o acúmulo de meus problemas, voltaram
todos, trazidos pela bela pequena presença na qual o que acontecera não deixara ainda, ao
menos não visivelmente, o menor indício de mácula ou sombra.
Para assinalar, diante da casa, a elevada posição que eu cultivava, decretei que
minhas refeições com o menino deveriam ser servidas no andar de baixo, como o chamávamos;
de modo que fiquei esperando-o na pompa maciça da sala junto à janela de qual eu recebera
da Senhora Grose, naquele primeiro domingo assombrado, meu lampejo de alguma coisa que
eu dificilmente chamaria de luz. Ali eu senti novamente pois já o sentira muitas e muitas
vezes como meu equilíbrio dependia do triunfo de minha rígida vontade, da vontade de
cerrar meus olhos o máximo possível à verdade de que aquilo com que eu tinha de lidar era,
de um modo revoltante, contra a natureza. Só podia prosseguir se encarasse a natureza como
coisa toda minha e confiasse nela, tratando minha provação monstruosa como um empurrão
feito numa direção sobrenatural e decerto desagradável, mas que ao fim exigia apenas, para
que o confronto fosse justo, que eu desse uma outra volta no parafuso da virtude humana
comum. Nenhuma tentativa, de modo algum, exigiria mais tato que aquela de uma única
pessoa procurar prover toda a natureza. Como eu poderia pôr um pouquinho de naturalidade
na supressão da referência do que tinha ocorrido? Como, por outro lado, eu poderia fazer uma
referência sem um novo mergulho na obscuridade hedionda? Bem, uma espécie de resposta,
depois de alguns momentos, veio a mim, e foi confirmada quando me deparei,
incontestavelmente, com a visão renovada daquilo que meu pequeno companheiro tinha de
raro. Na verdade, era como se ele conseguisse encontrar mesmo agora como tão
frequentemente encontrava durante as aulas uma nova e delicada maneira de me deixar à
vontade. Pois, não havia luz naquele fato que, enquanto dividíamos a nossa solidão, revelou-se
com um brilho ilusório que, no entanto, nunca se desgastou? o fato de que (com o auxílio da
oportunidade, a oportunidade que agora surgia), seria disparatado, com uma criança tão
bem-dotada, abrir mão do amparo que se poderia arrancar de uma inteligência absoluta? Para
quê lhe fora dada essa inteligência senão para salvá-lo? Para atingir sua mente, não seria lícito
correr o risco de fazer uma desfiguração em seu caráter? Tudo se deu como se, enquanto
ficávamos face a face na sala de jantar, ele literalmente me mostrasse a solução. O assado de
carneiro estava na mesa, e eu dispensara o atendimento da criada. Antes de sentar-se, ele ficara
por um momento com as mãos nos bolsos e olhara para o quarto de carne, sobre o qual
parecera a ponto de fazer algum julgamento cômico. Mas o que ele de fato disse foi: Ouça,
minha querida: a menina está tão doente assim?
A pequena Flora? Não é caso tão grave que não possa melhorar. Londres fará bem a
ela. Bly deixou de ser-lhe conveniente. Venha aqui e sirva-se de carneiro.
Obedeceu-me ligeiro, carregou o prato cuidadosamente para o seu lugar e, uma vez
acomodado, prosseguiu: Bly deixou de ser bom para ela assim tão de repente?
Não tão de repente quanto você possa pensar. Notava-se o que estava
acontecendo.
Então, por que não a mandou embora antes?Antes do quê?
Antes que ela ficasse doente demais para viajar.
Eu me sentia preparada. Ela não está doente demais para viajar: ela podia ter ficado
assim se houvesse permanecido. Foi o momento propício para isso. A viagem vai dissipar a
influência oh, eu era ótima! e eliminá-la.
Entendo, entendo Miles, no tocante ao assunto, também era ótimo. Ele se
compusera para o repasto com as encantadoras maneiras de mesa que, desde o dia de sua
chegada, me dispensaram de lhe passar qualquer descompostura ou lhe fazer qualquer
advertência. Qualquer que fosse o motivo de sua expulsão do colégio, com certeza não fora
por comer sem modos. Naquele dia, estava, como sempre, irrepreensível; mas estava, de modo
inequívoco, mais consciente de desempenhar um papel. Estava visivelmente tentando tomar
como certas mais coisas que aquelas que poderia descobrir sozinho; caíra em plácido silêncio
enquanto avaliava a sua situação. Nossa refeição foi das mais breves a minha nada mais que
pretexto, e pedi que retirassem logo a minha mesa. Enquanto isso era feito Miles se pusera de
novo em pé, com as mãos em seus pequenos bolsos e de costas para mim para olhar para fora
da ampla janela através da qual, naquele dia, eu tinha visto o que tanto me perturbara.
Continuamos em silêncio enquanto a empregada estava conosco tão silenciosos, me ocorreu
de modo absurdo, quanto um jovem casal que, em sua viagem de núpcias, numa taberna,
ficasse inibido em presença do garçom. Só se virou para mim quando o garçom nos deixou.
Bem enfim, sós! CAPÍTULO 23
Oh, mais ou menos, imagino com que pálido sorriso respondi. Não em absoluto.
Não gostaríamos disso!, continuei.
Não suponho que não gostaríamos. Claro que estamos acompanhados
Estamos acompanhados temos os outros, de fato, eu concordei.
Mas, embora tenhamos os outros, ele retornou, ainda com as mãos nos bolsos e
plantado à minha frente, eles não contam muito, não é mesmo?
Procurava ser ágil e brilhante, mas me sentia apagada. Depende do que você chama
de muito!
Sim com toda condescendência tudo depende! Dizendo isso, contudo, ele
virou o rosto para a janela e aproximou-se dela com seus vagos, inquietos e refletidos passos.
Permaneceu ali por um momento, com a testa encostada na vidraça, contemplando os
estúpidos arbustos e a paisagem monótona de Novembro. Eu podia sempre contar com meu
fingido trabalho, atrás do qual me escondia agora, acomodada no sofá. Firmando-me com
ele ali como já o fizera repetidamente nos momentos de suplício que descrevi como sendo
aqueles em que notava que as crianças ficavam à mercê de alguma coisa da qual eu estava
excluída, eu obedecia apenas ao meu hábito de ficar preparada para o pior. Mas uma
impressão extraordinária me tomou quando extraía um significado da atitude do menino, que
estava embaraçado, de costas para mim nada menos que a impressão de que eu não era mais
uma excluída. Essa dedução, em minutos, transformou-se em algo intensamente agudo e
parecia juntar-se à direta percepção de que, nesse momento, o excluído era ele. As molduras e
retângulos da grande janela eram, para ele, imagens de uma espécie de derrota. Senti que o
via, de qualquer modo, fechado por dentro ou fechado por fora. Ele estava admirável, mas não
à vontade: tomei consciência disso com uma palpitação de esperança. Pois ele não procurava,
através da vidraça mal assombrada, uma coisa que não podia ver? e não era essa a primeira
vez na história toda que ele tinha consciência de que a tal coisa lhe falhava? A primeira, a
primeiríssima: achei um esplêndido presságio. A falha o tornava ansioso, embora ele se
policiasse; tinha ficado ansioso o dia todo e, mesmo quando com suas doces pequenas
maneiras se sentara à mesa, precisara recorrer a seu pequeno estranho gênio para dar ao ato
um certo verniz. Quando ele por fim virou-se para falar comigo era como se seu gênio houvesse
sucumbido. Bem, acho que estou satisfeito por Bly ser boa para mim!
Você com certeza parece que aproveitou de Bly, nessas vinte e quatro horas, muito
mais do que aproveitara antes. Espero, continuei corajosamente, que com isso tenha se
divertido.
Oh, sim, nunca tinha explorado tanto o lugar; todas as cercanias quilômetros e
quilômetros longe daqui. Nunca me senti tão livre.
Ele tinha realmente uma distinção toda sua, e eu podia apenas tentar ficar à altura.
Bem, você gosta?Sorriu, nesse momento; por fim, colocou em três palavras E a senhorita? mais
significado do que eu jamais pensei que três palavras pudessem conter. Antes que eu tivesse
tempo para lidar com aquilo, contudo, ele continuou como que consciente de que cometera
uma impertinência que agora precisava atenuar. Nada poderia ser mais encantador que o
modo como a senhorita encara as coisas, pois, naturalmente, se estamos sozinhos agora, é a
senhorita quem o está mais. Mas espero, ele acrescentou, que não se preocupe
particularmente com isso!
Ter que me preocupar com você?, perguntei. Meu querido menino, como poderia
deixar de me preocupar? Apesar de haver renunciado ao direito de exigir sua companhia
você está tão além de mim! é claro que a aprecio muito. Por que outra razão eu teria ficado
aqui?
Olhou para mim mais diretamente, e a expressão de seu rosto, mais séria agora,
atingiu-me como a mais bela que havia nele encontrado. A senhorita fica apenas por causa
disso?
Certamente. Fico como sua amiga, devido ao tremendo interesse que tenho em você,
até que alguma coisa que lhe valha mais a pena possa ser feita. Isso não precisava lhe
surpreender. Minha voz tremia tanto que eu achava impossível suprimir-lhe o tremor. Não se
lembra como lhe disse, quando fui sentar-me ao seu lado na cama, na noite daquela
tempestade, que não havia nada neste mundo que eu não quisesse fazer por você?
Sim, sim! Ele, por seu lado, visivelmente mais e mais nervoso, também precisava
controlar o tom da voz; mas era tão mais bem-sucedido do que eu que, rindo em meio à sua
própria seriedade, podia fingir que estávamos brincando prazerosamente. Só que eu acho
que disse aquilo para que eu fizesse alguma coisa pela senhorita!
Foi em parte para que você me fizesse uma coisa, concedi. Mas você sabe que não
a fez.
Oh, sim, ele disse com o mais vivo e superficial dos ardores, a senhorita queria que
eu lhe contasse alguma coisa.
É isso. Que fosse bem direto. Que me revelasse o que há em seu espírito, como sabe.
Ah, então, é para isso que a senhorita ficou?
Ele falava com uma alegria através da qual eu podia captar o mais leve tremor de
ressentimento passional; mas não posso nem tentar expressar a impressão que me causou esse
sinal de que estava sendo derrotado, embora ele fosse tão débil. Foi como se tudo pelo que eu
tivesse mais suspirado me chegasse finalmente apenas para me deixar atônita. Bem, sim
posso agora confessar. Foi exatamente para isso.
Ele esperou por tanto tempo que supus que o fizera com o propósito de repudiar a
premissa em que minha ação se baseava; mas o que disse finalmente foi: A senhorita quer
dizer agora aqui?
Não poderia haver lugar ou tempo melhor. Ele olhou ao redor com desconforto, e
eu tive a rara oh, melhor dizer, a esquisita! impressão de haver visto nele, pela primeira vez,um sintoma de medo. Era como se subitamente tivesse medo de mim o que me fez pensar que
era talvez a melhor coisa que eu lhe poderia transmitir. No entanto, na própria ânsia do
esforço eu senti que era inútil tentar ser severa, e eu ouvi minha voz, no instante seguinte,
modular-se de modo tão gentil que parecia quase grotesca. Você deseja tanto ir embora
novamente?
Terrivelmente! Sorriu para mim de modo heroico, e a pequena bravura comovente
que havia no sorriso era realçada pelo rubor que o sofrimento lhe infundia. Ele apanhara seu
chapéu, e ficara retorcendo-o de um modo que me dava, mesmo que nesse momento eu
estivesse chegando ao porto, um horror perverso ao que eu lhe estava fazendo. Fazê-lo de
qualquer modo era um ato de violência, pois de que consistia senão da introdução de uma
ideia de vulgaridade e culpa numa pequena criatura indefesa que representara para mim a
revelação de possibilidades de uma relação cheia de beleza? Não seria baixo demais criar
para uma criatura tão primorosa um embaraço que lhe fosse tão alheio? Suponho que hoje leio
nossa situação com uma clareza que não pudera ter naquele tempo, porque eu parecia ver
nossos pobres olhos já iluminados por algum lampejo que pressagiava a angústia que estava
por chegar. Assim, o que fazíamos era andar em círculos, com terrores e escrúpulos, como dois
lutadores que não ousavam aproximar-se. Mas era um do outro que tínhamos medo! Aquilo
nos manteve por mais algum tempo suspensos e incólumes. Vou lhe contar tudo, Miles disse
Quero dizer que vou lhe contar tudo que a senhorita quiser. Ficará comigo e nós dois
ficaremos bem e vou lhe contar juro que vou. Mas não agora.
Por que não agora?
Minha insistência fez com que se afastasse de mim e aproximar-se da janela num
silêncio tal entre nós que, enquanto durou, era possível ouvir o som da queda de um alfinete.
Então, virou-se para mim com o ar de uma pessoa para quem, pelo lado de fora, alguém com
quem deveria entender-se se encontrasse à espera. Preciso ver Luke.
Eu ainda não o tinha reduzido a uma mentira tão crassa, e me senti
proporcionalmente envergonhada. Mas, por mais que isso fosse horrível, suas mentiras
fortaleciam meu desejo de contar a verdade. Dei pensativamente mais alguns pontos no tricô.
Bem, então, vá lá ver o Luke, e eu esperarei pelo que você prometeu. Mas, em troca disso,
vou querer que você satisfaça, antes de sair, a um pedido bem menos importante.
Ele parecia sentir-se bem-sucedido o bastante para ser capaz de fazer ainda um
pouco de barganha. Bem menos importante...?
Sim, uma pequena fração do todo. Diga-me oh, meu tricô me preocupava, e eu
estava muito alheia! se ontem pela tarde, você tirou minha carta da mesa do hall. CAPÍTULO 24
Minha percepção de como ele recebeu o pedido, por um minuto, sofreu de algo que
posso descrever apenas como sendo um feroz desdobramento um golpe que, no início,
quando me levantei, reduziu-me ao simples movimento cego de agarrá-lo, estreitá-lo e,
recuando para procurar apoio no móvel mais próximo, mantê-lo instintivamente de costas
para a janela. A aparição estava lá, de olhos cravados sobre nós, mais perto do que já a vira:
Peter Quint fazia a sua entrada como uma sentinela zelando de uma prisão. O que vi a seguir
foi que, pelo lado de fora, ele tinha alcançado a janela, e então percebi que, grudado à vidraça
e lançando um olhar furioso através dela, oferecia mais uma vez ao aposento a sua face lívida
de danação. Dizer que tomei uma decisão num segundo é representar de forma grosseira o
que me aconteceu; no entanto, acredito que nenhuma outra mulher, tão oprimida como eu
estava, recuperasse em tempo tão breve seu controle do ato. Ocorreu a mim no meio do horror
à presença imediata que o ato seria, vendo e encarando o que eu via e encarava, encontrar um
meio de proteger o menino da visão. A inspiração não posso chamá-la de outro modo era
eu perceber, de maneira voluntária, de maneira transcendente, como eu podia fazê-lo. Era
como lutar com um demônio pela salvação de uma alma humana, e, quando avaliei isso, vi
como a alma humana mantida, no tremor de minhas mãos, ao longo de meu braço trazia
um orvalho de suor na adorável fronte infantil. O rosto que estava tão perto do meu mostrava-
se tão lívido quanto o rosto que estava contra a vidraça, e dele saiu um som, nem baixo nem
fraco, mas como se viesse de muito, muito longe, que sorvi como uma aragem de perfume.
Sim eu tirei.
Ouvindo isso, com um gemido de alegria, estreitei-o, apertei-o ainda mais fortemente
contra meu peito; e enquanto o mantinha ali, onde podia sentir na súbita febre de seu pequeno
corpo a tremenda palpitação do pequeno coração, não tirava meus olhos da coisa que estava
lá na janela, notando, a seguir, que ela se movia e mudava de posição. Comparei-a a uma
sentinela, mas sua lenta rotação, por um momento, parecia-se mais com a ronda de uma besta
frustrada na busca da presa. Mas minha coragem era tão grande naquele momento que, para
não deixá-la evidente, tive que reduzir, por assim dizer, a sua chama. Enquanto isso a
ferocidade do rosto estava de volta à janela, onde o miserável fitava como se vigiasse e
esperasse. Foi a convicção de que podia desafiá-lo agora, bem como a certeza positiva de que
a criança nada percebia, que me fez continuar. Para que você pegou a carta?
Para saber o que você dizia de mim.
Você a abriu?
Sim, abri.
Meus olhos estavam agora, enquanto afrouxava meu abraço, sobre o rosto de Miles,
no qual a cessação da ironia me mostrava como foi completa a ruína feita pela inquietação.
Era prodigioso que finalmente, graças a meu triunfo, seus sentidos tivessem se fechado e a
comunicação cessado: ele sabia que havia ali uma presença, mas não sabia de quê, e sabia
ainda menos que eu também a percebia e conhecia. E que me importava essa fadigaatormentada se meus olhos tinham voltado à janela apenas para constatar que o ar estava puro
outra vez e que por meu triunfo pessoal a influência se extinguira? Não havia mais nada ali.
Senti que a causa disso fora a minha ação e que eu conseguira tudo. E você não achou nada!
pronunciei bem clara a minha conclusão.
Ele balançou a cabeça com a mais melancólica e pensativa das negativas. Nada.
Nada, nada!, eu quase gritava de alegria.
Nada, nada, ele repetiu tristemente.
Beijei a sua testa; estava encharcada de suor. Então, que foi que fez com ela?
Eu a queimei.
Queimou-a? Era agora ou nunca. Era isso que você fazia no colégio?
Oh, que coisas isso despertou! No colégio?
Você pegava cartas? ou pegava outras coisas?
Outras coisas? Ele parecia agora pensar em alguma coisa muito remota e isso o
atingia apenas através da pressão de sua ansiedade. No entanto, o atingia. Quer dizer que eu
roubava?
Senti-me corada até a raiz dos cabelos, pensando se era mais estranho colocar a um
cavalheiro uma tal questão ou vê-lo considerá-la com uma indulgência que dava bem a
medida da queda que sofrera. Era por isso que você não podia voltar para lá?
A única coisa que pareceu sentir foi uma triste e ligeira surpresa. A senhorita sabia
que eu não poderia voltar?
Eu sei tudo.
Ouvindo isso, lançou-me o mais estranho e longo dos olhares. Tudo?
Tudo. Portanto, você...? Mas não pude dizê-lo novamente.
Miles podia, de uma maneira muito simples. Não. Eu não roubava.
Meu rosto devia estar mostrando que eu acreditava nele completamente; contudo,
minhas mãos mas eu o fazia por simples ternura sacudiam-no como se eu quisesse lhe
perguntar por que, se a coisa toda era por nada, ele tinha me condenado a meses de tormento.
O que foi que você fez, então?
Ele olhou com uma dor vaga para o alto do quarto e tomou fôlego, duas ou três vezes,
como se a resposta lhe fosse difícil. Parecia estar no fundo do mar e erguendo seus olhos na
direção de alguma débil luz esverdeada. Bem eu dizia coisas.
Só isso?
Acharam que era o bastante!
Para lhe expulsar?
Nunca, na verdade, uma pessoa expulsa mostrara tão pouco capaz de explicar ofato como essa pequena criatura! Parecia pesar a minha questão, mas numa maneira
completamente alheia e quase desamparada. Bem, suponho que não devia ter feito aquilo.
Mas a quem você dizia tais coisas?
Ele fazia um esforço evidente para lembrar, mas a coisa lhe falhava ele a perdia. Eu
não sei!
Quase sorria para mim na desolação de sua derrota, que era de fato, nesse momento,
tão completa que eu bem que devia ter parado aí. Mas eu estava fanática minha vitória me
deixava cega, tendo por consequência que, aquilo que devia aproximá-lo de mim, acabava
por ser o causador de uma separação maior. Dizia para todos?, perguntei.
Não; disse apenas para...? Mas tremeu a cabeça, enfastiado. Eu não recordo os
nomes deles.
Eram tantos assim, então?
Não só alguns. Aqueles de quem eu gostava.
Aqueles de quem gostava? Eu parecia flutuar não numa zona de claridade, mas
noutra muito mais obscura, e dentro em pouco tinha ocorrido a mim, em meio à minha
compaixão, a apavorante hipótese de ele talvez ser inocente. Era uma ideia confusa e abissal
pois, se ele fosse inocente, que diabos seria eu? Paralisada, enquanto durou, pelo simples roçar
da questão, deixei-o afastar-se um pouco, de modo que, com um suspiro profundo, deu-me de
novo as costas; enquanto ele olhava para fora da janela clara, eu sofria, sentindo que não havia
ali mais nada de que eu precisasse lhe proteger. E eles repetiam o que você dizia?, continuei,
um momento depois.
Ele tomara certa distância de mim, ainda respirando penosamente e com o jeito,
embora sem se revoltar contra isso, de estar confinado contra a sua vontade. Mais uma vez,
como o fizera antes, olhava para o dia fosco como se, de tudo que até aí o alimentara, nada
mais restasse senão uma ansiedade indizível. Oh, sim, ele respondeu, apesar de tudo eles
devem ter repetido. Para aqueles de quem eles gostavam, acrescentou.
Havia, de algum modo, menos revelações do que eu esperara; mas eu insistia. E essas
coisas chegavam aos ouvidos...?
Dos professores? Não meus colegas nunca disseram. É por isso que eu pergunto à
senhorita.
Ele virou para mim novamente seu pequeno rosto febril. Sim, era bem malvado.
Bem malvado?
O que suponho ter dito algumas vezes. Para que eles chegassem a escrever para casa.
Não posso descrever a estranheza patética da contradição entre essa fala e quem a
proferia; só sei dizer que nesse instante ouvi-me retrucar com energia familiar: Bobagem e
absurdo! Mas a seguir devo ter parecido bastante severa. Que coisas eram essas?
Minha severidade dirigia-se toda ao seu juiz, ao seu carrasco; no entanto, fez com queele se desviasse, e esse movimento fez, por sua vez, com que eu me atirasse sobre ele, com um
simples salto e um grito irreprimível. Pois lá estava de novo, atrás da vidraça, como se quisesse
arruinar a sua confissão e estancar a sua resposta, o autor hediondo de nossa infelicidade a
lívida face da danação. Senti vertigens com o desmoronamento de minha vitória e com o todo
o retorno de minha batalha, de modo que o ímpeto de meu verdadeiro salto servira apenas
para me trair. Vi Miles, no meio de meu ato, olhando como se tentasse adivinhar, e percebendo
que mesmo agora ele só tateava, e que, para seus olhos, a janela estava apenas vazia, deixei
que o meu arrebatamento transformasse o clímax de sua decepção na própria prova de sua
libertação. Nunca mais, nunca mais, nunca mais!, eu gritava, enquanto tentava apertá-lo
junto a mim, para meu visitante.
Ela está aqui? perguntou Miles, ofegante, enquanto captava com seus olhos
selados a direção das minhas palavras. A seguir, como seu estranho ela me fizera estremecer
e, arfando, eu o repetira, ele, com uma fúria súbita, exclamou: A Senhorita Jessel, a Senhorita
Jessel!.
Estupefata, aproveitei-me de sua suposição alguma sequela do que fizéramos com
Flora, mas só o fiz por querer mostrar a ele que o que tínhamos ali era ainda melhor. Não é a
Senhorita Jessel! Mas está lá, na janela direto diante de nós. Está lá o monstro covarde,
pela última vez!
Ouvindo isso, depois de um momento em que sua cabeça fez um movimento parecido
ao de um cão que tivesse perdido a pista e balançasse freneticamente à caça de ar e luz,
voltou-se para mim lívido de raiva, aturdido, olhando inutilmente por toda parte e não
encontrando a presença ampla e opressora que eu, nesse próprio momento, sentia encher o
aposento com um gosto de veneno. É ele?
Eu estava tão decidida a obter todas as provas que me transformei em gelo para
desafiá-lo. Quem você quer dizer com ele?
Peter Quint seu demônio! Seu rosto lançou novamente, vagando pelo quarto, uma
convulsiva súplica. Onde?
Ainda estão em meus ouvidos sua rendição suprema ao nome e seu tributo à minha
devoção. Que importa ele agora, meu querido? que importância poderá ter de agora em
diante? Eu tenho você, dirigi-me à besta na janela, mas ele perdeu você para sempre!
Então, como demonstração do meu trabalho, Lá, lá!, eu disse para Miles.
Mas ele já saíra dos meus braços e vagava ao redor, arregalando os olhos, olhando
com fúria, sem ver nada além de um dia tranquilo. Golpeado pela perda de que eu me
orgulhava, ele emitiu o grito de uma criatura arremessada a um abismo, e o gesto com que o
agarrei bem poderia ter sido o de recuperá-lo em plena queda. Eu recuperei-o, sim, eu
abracei-o pode-se imaginar com que paixão; mas ao fim de um minuto comecei a sentir o
que na verdade estava abraçando. Estávamos a sós com o dia tranquilo, e seu pequeno
coração, despossuído, deixara de bater.
FIM
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